por Simone Athayde*

Solemar Oliveira é pós-doutor em física, escritor, e professor na Universidade Estadual de Goiás (UEG)

O autor anapolino Solemar Oliveira tem demonstrado ser um escritor talentoso, como atestam os prêmios que já recebeu, entre eles o Hugo de Carvalho Ramos de 2019 – categoria prosa. Também é um autor produtivo. Em maio, o autor lançou Breve segunda vida de uma ideia, um livro com 42 contos, a maioria muito bons. Solemar, no seu Preâmbulo magnético explicativo (apresentação do livro), afirma que “Neste conjunto de contos empenhei-me em explorar as várias faces do macabro” e cita seus autores preferidos no que chama universo de mistério, entre eles: Lygia Fagundes Teles, Jorge Luiz Borges, Lovecraft e Humberto de Campos. Ainda diz que apresenta aos leitores o seu “íntimo mergulho às cegas à caverna do absurdo”. Mas Solemar é eclético, e há muito em suas histórias que vão além do macabro e do terror. Na história que dá título ao livro, por exemplo, temos algumas especulações filosóficas a partir de uma listra de camisa que passa por um processo de personificação e adquire vida, saltando para o chão e formando imagens que lembram o desmanchar-se dos relógios de Dali. Nesse conto há também uma citação ao pintor Magritte, representante do Surrealismo.

Em Doçura dos Tártaros temos um diálogo com a mitologia grega, não apenas no que se refere ao nome das personagens, mas no fato de recontar a história das paternidades misteriosas e das personagens que levam uma vida comum até que o inesperado, o grande destino de filhos de um deus, lhes bate à porta, o que nos faz lembrar de Percy Jackson e de Fúria de Titãs. A narrativa é agradável, tem algo de pop. Ao invés do grotesco, temos algo de doce e até um pouco cômico na história criativa que inclui o cuidado distante de um pai que deveria ser terrível, mas não é, e de um cachorro que não é o que parece ser.

Ordem do dia, um conto que começa com a frase “A curiosidade, dizem, é amiga e irmã da fatalidade”, lembra a ambientação de “O senhor dos Anéis”. É como se estivéssemos na toca de um hobbit e de repente adentrassem três misteriosos anões que parecem ter um interesse muito especial no menino-narrador. O clima de mistério e curiosidade da agradável leitura vão aumentando gradativamente, para no final interromper-se bruscamente, deixando no leitor uma sensação de falta, o sentimento de que precisava haver algo mais para completar a história. Parece que o autor conseguiu o feito de ter despertado essa curiosidade citada no início do conto.

Moto Perpétuo é um exemplar de realismo mágico, no qual um cotidiano aparentemente normal é comandado por uma Roda do Destino. O final é ótimo e carregado de fina ironia.

A influência do Solemar físico (o autor é pós-doutor em Física, professor e pesquisador) aparece em alguns contos como em Segunda Vida de Albert Einstein, que me parece ser uma homenagem ao famoso cientista. Nele, Einstein realiza viagens no tempo na tentativa de concretizar um romance com uma mulher mais jovem, mas assim como nos livros e filmes sobre esse tema, nem tudo dá certo. Em Uma questão de ciência temos um cientista negacionista que acha que o efeito da gravidade é meramente psicológico. E em Por Finobacci temos um narrador que pratica um exercício aparentemente dadaísta utilizando o texto bíblico, mas que na verdade segue à risca a sequência de Finobacci para formar um novo texto e uma nova técnica criativa. Em tempos nos quais robôs fazem poemas, a ficção não parece muito distante da realidade.

Já em Ágata, temos uma astróloga gananciosa que descobre seu poder para manipular pessoas e assim chegar ao poder político. Embora seja ficção, é fácil fazermos uma associação com gurus e políticos corruptos que infestam as esferas de poder na religião e nos governos. Nesse conto o macabro aparece na antropofagia, assim como em Zeus palhaço, que nos faz lembrar do livro O Perfume, História de um Assassino, de Patrick Suskind, de que fez muito sucesso em meados dos anos 80. 

Em Confraria, o autor cria um conto no qual os personagens, artistas e amigos de infância, têm uma amizade verdadeira e pura, uma confraria cultural desinteressada que parece ser o protótipo do desejo de todo artista, mas que só poderia mesmo ser possível numa ficção. Talvez algum leitor mais arguto possa descobrir que a história é o reconto livre sobre uma personalidade famosa.

Gêmeo indesejado, um dos meus preferidos, poderia entrar em qualquer boa antologia de realismo mágico, pois trabalha muito bem a questão de se apresentar algum fato que, embora absolutamente anormal ou absurdo, é mostrado na narrativa como algo possível e nem tanto assustador, apenas inconveniente, digamos assim. Observem como começa: “Desde que observei esse pequeno abcesso no meu ombro esquerdo, esse tumor, ele evoluiu para uma nova cabeça falante.” Já Inimigo de toda gente é um dos contos que apresenta um clima de tensão e terror crescentes assim como Isolamento, que nos lembra A Casa Tomada, um dos contos do livro Bestiário, de Júlio Cortazar, mas com o terror mais explícito. O homem que virou abobrinha, embora nos leve a uma comparação com A metamorfose, faz outro caminho narrativo no qual a sátira sobressae.

O universo da ficção científica também tem representantes como no conto Isis, no qual a história de uma Inteligência Artificial que adquire vontades próprias e se rebela, já muito revisitada, sai do lugar comum graças à habilidade do autor.   

Talvez meu preferido entre todos seja Anjos Caídos, um lindo conto no qual Solemar cria um outro mundo (lembrei-me de Avatar) que vai se revelando aos poucos, mágico e impregnado de poesia e estranha beleza. O final é impactante e, embora talvez não tenha sido esse o intento do autor, nos revela muito do que tristemente hoje vivemos no plano ambiental. 

A fábula do deserto é também muito bonito, e como nos diz o título, como toda fábula tem como objetivo trazer alguma moral da história, essa vai se referir a que não devemos matar raposas, e o leitor entenderá porquê. 

E embora Solemar tenha trazido uma fábula em seu livro, as histórias dele em sua maioria não têm pretensão de transmitir nenhuma mensagem edificante, ou doutrinar, pois como ele mesmo diz: é um contador de histórias, e o faz bem. A exceção aparece quando o autor, através da voz de narradores muito críticos, fala sobre o que ele chama de literatura ruim, para a qual parece não ter paciência. É o caso de Transformando setenta poemas em três e de Vocabulário do cínico, no qual diz: “Literatura de verdade é, antes de tudo, subversiva e faz pensar. Incomoda e tira da posição de conforto.” 

Por sua natureza impregnada de estranhamento, o livro de Solemar Oliveira talvez não conquiste facilmente muitos leitores, mas com certeza se insere na seara da prosa muito bem executada.