Valéria V. Valle (especial para o Jornal Opção)

A estranheza é um luxo para poucos. O leitor da obra “Breve Segunda Vida de uma Ideia” fica estagnado entre a face do assombro e os ecos do sobrenatural abraçados ao crível da narrativa. O livro de Solemar Oliveira, seu “cemitério de palavras”, circula a roda enigmática do destino e impulsiona a leitura abismal de construções místicas, míticas e surreais.

Nessa breve única vida de leitor, saboreia-se a delícia desses contos que se realizam e nos deixam “Exilados” no rolar infinito da rocha de Sísifo, lendo os textos na sequência linear e, em seguida, de trás para frente, perseguindo essa pedra do sem parar. O início invertido, do final para o começo, em nada obstrui o que o leitor deseja ver: as entrelinhas do infiltrado, do estrábico e do inusitado.

Somos convidados desses contos inexplicáveis que se lançam em si mesmos e nos deixam no embaralhamento da busca de sentido real. Como sujeitos da leitura, projetamos nossas sensações e frustrações nesse universo, ao mesmo tempo familiar e desconhecido, na tentativa de remontar o encantamento textual. Ao ler a jornada dos “Viajantes”, esses loucos Marcianos, com a sua tripulação que os acompanha, sempre amantes contagiados pela idiotice, pela inércia e pelo imbecilismo desperta um alvo certo: o leitor e o escritor.

No processo de ler e reler os contos, observa-se uma viagem com personagens sutis, sombreados de mistério e caos. Continua-se essa conversa na disposição contrária ao sumário, destacando o personagem Hugo, distorcido e ensimesmado, que explora uma performance grotesca e colhe o vermelho insano; existe também o “Eu” cínico do escritor que se arrisca e enfrenta a “metralhadora crítica” dos medíocres; há ainda o Bonarda em sua cova patética, trôpego e deformado, na busca um resgate para a sua loucura.

Vários elementos são evocados para a organização da diégese, ora despertando as emoções, ora eclodindo assuntos inquietantes ou temáticas complexas. Essa sucessão de gêneros surpreendentes adentram uma diversidade de esferas bastante curiosas: São personificações de Raposas eloquentes de olhos profundamente  azuis e ardilosos que lutam na trilha do deserto do viver; um extraordinário tumor gêmeo inominado mergulhado na leitura e no silêncio; há também um bloco de poemas ainda “órfãos” que exige um leitor melhor para um escritor ruim e literariamente  mutilado; o nonsense e o niilismo de Fibonacci transcende as miríades que minicontam a criação inusitada de outros escritores; a lástima de Francisco/Poema entre o consolo, as chagas e as cicatrizes do sáurio e ainda Abelardo em seu círculo magnífico e sua pirotecnia: inércia e vivas da criação fantástica!

Em uma breve segunda volta do destino, continua-se a girar na tautologia do sombrio e do espanto. Em “Inimigo de toda gente” a invisível existência de pássaros melancólicos, pousados em fios de arames farpados, coexistem com uma dupla decrépita e sinistra nas ruínas do cotidiano; o conhecimento obscuro registrado no “O homem que virou abobrinha” pode ser comunicado no choro inaudível e conectado na metamorfose do pensar no papel desempenhado na grande ordem; e  nesse caleidoscópio textual apreciamos os elementos sobrenaturais de “O enigma de Lujan” que percorre uma visão taciturna entre dimensões estranhas de diferentes realidades.

O estranhamento e as alucinações podem ser lidos no conto “Nos caminhos da loucura”, se você “sobreviver à primeira página”.  Torna-se difícil mergulhar em um drama denso e demente criado em uma obra que adverte: “só abra se for merecedor”, portanto, cuidado ao abrir; mais que difícil, diria ceifado a sangue, emerge o fado de “Míriam”: um beijo arremessado, cúmplice da terra da foice, na lonjura chorosa dos herdeiros do rubro pesar.

 A hesitação do leitor não é interrompida na estrada derradeira e de pedra dura, ela percorre os dois desertos interdependentes do “Mar Morto”, árdua empreitada de angústia revelada na epifania gratuita de miragens; o leitor viaja em “Marília tem um segredo” constituído de um mistério patético e uma divagação sinistra. “Elementar, vou explicar…”; Em “Samsara” observa-se o colapso infernal da coisa de “eus” que vacilam em reescrever suas histórias e desejam o Samadhi.

Em um breve segundo despertamento observamos em “Isolamento” – O enlouquecer da meia-noite decretado no isolamento entre as chicotadas dos berros e o chocoalhar dos grunhidos que espirra o sangue proibido. A navalha afiada do choro rangido e do silêncio restaurador estripa o monstro purgado em cada ser e em cada um de nós. Em “Isis”, somos passageiros na viagem de um solitário que, com nossos medos geniais e invasivos, recriamos o ambiente inóspito para o tripulante de alma sulcada: “Você me ama?”. A fantástica intimidade impregnada na fissura negra pede o beijo analisado no trono de Isis.

O vacilo entre a explicação e o insólito continuam nas construções mágicas de outras histórias de Solemar Oliveira. Em “O espaço-tempo invertidos”, entre a certeza e a digressão, sempre ouvindo o doce canto e o assobio harmonioso, prossegue inexoravelmente a Morte, sepultando as vozes que são insubstituíveis; percebe-se em “Da Vinci” que a ideia é incrustrada e atarracada no segredo do Nada e do Breu, uma ideia materializada no código que se decifra e na esfinge que lhe devora.

Nas várias faces existenciais mitológicas, filosóficas, literárias e de outras áreas destacam-se crespas de assuntos inquietantes como em “Confraria”, no qual vislumbra-se o tempero entre autor e cultura, banhados a fogo e sangue, o artista sempre acompanhado de aplausos e de loucuras. Também no conto “Condenados” presenciamos uma vivência intrigante que vai desde a muda de um simples manjericão ao um sopro de vela numa narrativa inusitada e imprevista; bebe-se ainda, mais uma vez, no ópio da “Carta ambígua”, um singular delírio nos escritos desvairados.

O barqueiro chegou. Com assombro, ouve-se as águas misteriosas e remadas por Dante. “Caronte” aporta com as “Almas danadas” sob a parca luz do poema; em “Benedito” sente-se a dor da invisibilidade, sempre ancorada na língua e na boca e também no sorriso indelicado do heroico defunto em decomposição. Em “Anjos Caídos”, vive-se o triste janeiro de um “garoto de fé”. Num refrão poemático e reavivado surgem elementos aparentemente desconexos: céu vermelho, chave, ira, túnel, chuva, música, raízes, lagos de lama, pênis, criaturas insinuantes, claustro…  Um poente de vazio seco para muitos anteriormente emprenhados da terra.

Interessante “desvendar” no conto “Ágata” que há uma gradação crescente em busca de controle e poder, mas para isso, precisamos “guardar os olhos”. Solemar seleciona alguns substantivos, adjetivos, verbos e advérbios que traçam um percurso ascendente de atitudes e planejamentos da astróloga: perguntava, acreditava, esperava, questionava, influenciava, convencia, adestrava e alterava destinos; assim intimamente, estrategicamente, sistematicamente, categoricamente, poderosamente ela conquista o poder. Entre o isolamento e o massacre da multidão, o conhecimento encarnou na “Santa Viva” e, pedaço por pedaço, é devorada saciando o discurso da loucura.

Em uma breve e segunda imprecisão, observa-se em “Abismos” uma situação inusitada – irradia-se o morto. Uma lastimosa verdade reverberada com “voz gutural e gargalhada abismal” anuncia: os ratos e morcegos paralisados e o silêncio sulcado no indivíduo. O conto “Moto Perpétuo” torna-se marcante ao apontar, de maneira sutil, a solução para a Roda do Destino: A instauração sorrateira da instabilidade, da imprevisibilidade e da imponderabilidade das coisas e dos seres. Outro texto envolvente é “A curiosidade é a mãe das armadilhas” na “Ordem do dia” que é sugerida entre um mesclado de caras e bocas, de medos e raivas, de disciplina e ordem, de risos e rudezas, pedidos e conselhos que, por sua vez, incognitamente nada dizem.

“E se…” presente no texto “Doçura dos Tártaros” rumina a possibilidade e o questionamento dos possíveis caminhos inesperados vividos por Caos. . O inverossímil e o crível estão presentes na âncora da mitologia. A ironia e a irreverência criam um “stand up canino”, propõem a companhia do cão Tártaro, fantástico/falador e, quem sabe, colocando uma coleira no protagonista.

Em uma “Breve Segunda Vida de uma Ideia”, nota-se que a utilização de elementos fantásticos perpetra esse livro de Solemar Oliveira, degusta-se um sabor tão especial e surreal, temperado com o insano instável e com a realidade fragmentada. Emerge a crítica reflexiva do autor e a sua feitura escrita como uma Cegueira Branca, como um  Memórias Póstumas ou uma Sombra de Poe, ou ainda, como Macunaíma, como Incidente em Antares, como Pirotécnico Zacarias ou Metamorfose, por inúmeras vezes, contrariando a nossa noção de realidade. Realmente, uma “cria do Nada” que habita a “Caverna do Absurdo”, como sugere o autor.