Carlos Augusto Silva

Especial para o Jornal Opção

A História enquanto ciência tem se aproximado cada dia mais de um aspecto cronístico. Depois do advento da Nova História — movimento dentro da ciência historiográfica que revisou o horizonte de expectativa da História enquanto ciência —, tornou-se comum textos com lastro científicos que se detêm na análise do cotidiano, das peripécias da vida comum, extraindo da simplicidade e da microanálise um saber com estatuto de verdade.

Assim, nada mais comum que a estreia de um historiador no mundo das letras se dê por via da crônica, gênero livre e com diversas possibilidades de experimentação, no qual o autor pode burilar a sua linguagem em busca da forma que vai caracterizar a sua obra. Este é o caso do historiador Dias Almeida em sua obra de estreia, “A Morte do Fogão” (Editora Nova, 101 páginas), cujo prefácio é de um dos poetas mais importantes de Goiás, Delermando Vieira.

Goiás é terra de bons e grandes cronistas. Dentre os maiores nomes que temos estão, sem dúvida, os de Marcelo Franco, Euler de França Belém (que se apenas um jornalista de política), Edival Lourenço e Adalberto de Queirós. Marcelo Franco — de inteligência genial, que transita entre o mordaz e o confessional — é capaz de tornar a compra de um livro matéria para um texto por tudo e em tudo hipnotizante, e faz de suas críticas literárias diários de leitura carregados de erudição de um leitor raro, pelo volume, pela sensibilidade e pela memória prodigiosa, espécie de Samuel Johnson. Euler de França Belém, jornalista de alta credibilidade, liberta-se da objetividade do texto jornalístico quando narra suas aventuras pelo mundo dos livros, em feiras internacionais que frequenta com a sanha e gula do garimpeiro em busca de pedra preciosa. Adalberto de Queirós dialoga, com uma erudição da qual — ainda bem — não consegue se desvencilhar, jamais escorregando para o pedantismo, escreve em camadas: quem puder, verá a fonte sólida de sua linguagem, quem não puder ver, terá uma ótima leitura. Edival Lourenço — ao lado de Heleno Godoy, o maior escritor vivo de Goiás — faz o que quer, quando quer e onde quer quando o assunto é escrever, seja lá o que for, de que modo for.

Edival Lourenço: poeta, romancista, contista e cronista | Foto: Fernando Leite/Jornal Opção

A crônica e a crítica literária brasileira

É na seara do gênero literário crônica que se localiza a obra de estreia de Dias Almeida, goiano de 50 anos, conhecido e reconhecido professor de história na cidade de Goiânia há quase três décadas, além de empresário do setor educacional de Goiás.

Vale pontuarmos a respeito das características teóricas e históricas da crônica no Brasil antes de nos determos na obra de Dias Almeida. 

O gênero crônica é um estilo literário que se caracteriza por sua brevidade e foco em situações cotidianas. São textos curtos, geralmente publicados em jornais, revistas ou na internet. A linguagem é acessível e muitas vezes próxima da fala cotidiana, facilitando a identificação do leitor com o texto. Elas abordam temas do dia a dia, situações corriqueiras e pequenos acontecimentos da vida comum. O autor da crônica costuma inserir suas opiniões, emoções e impressões pessoais, tornando o texto subjetivo. Muitas crônicas usam o humor e a ironia para comentar sobre os acontecimentos do cotidiano, muitas vezes de forma crítica.

Apesar de serem textos curtos, as crônicas frequentemente induzem o leitor a refletir sobre a vida, valores e comportamentos sociais. Algumas crônicas têm uma estrutura narrativa, contando uma pequena história ou anedota. As crônicas são marcadas pelo tempo presente, muitas vezes registrando um momento específico do dia a dia. A crônica é um gênero versátil, que pode abordar uma vasta gama de temas e provocar diversas emoções no leitor.

Antonio Candido: um dos mais importantes críticos literários brasileiros | Foto: Reprodução

O estudo do gênero crônica tem sido abordado por diversos teóricos e críticos literários. Antonio Candido, um dos mais influentes críticos literários do país, analisou a crônica em seus estudos sobre a literatura brasileira, destacando a importância do gênero na cultura e na imprensa.

Massaud Moisés, em sua obra “A Crônica”, oferece uma análise detalhada do gênero, abordando suas características, evolução histórica e papel na literatura. Afrânio Coutinho também fez considerações sobre a crônica, especialmente no contexto da literatura brasileira, enfatizando a sua função social e cultural.

Davi Arrigucci Jr. explorou a crônica, particularmente em relação à obra de grandes cronistas como Rubem Braga. Hélio de Seixas Guimarães contribuiu com estudos específicos sobre a crônica, abordando aspectos como a linguagem e a temática. João Adolfo Hansen explorou a crônica em relação a outros gêneros literários, analisando suas particularidades e interações.

Esses críticos e teóricos ajudaram a consolidar a crônica como um importante gênero literário, especialmente no contexto brasileiro, destacando sua relevância cultural e literária.

Antonio Candido postula que a crônica possui um papel vital na cultura brasileira, sendo um meio de registro e reflexão sobre o cotidiano. Ele argumenta que a crônica permite um diálogo direto com o leitor, refletindo a vida urbana e suas nuances. Candido vê na crônica um espaço onde o escritor pode explorar a realidade imediata, os pequenos acontecimentos e as particularidades do dia a dia, muitas vezes com um tom pessoal e subjetivo.

Para Candido a crônica é um gênero literário híbrido, que se situa entre o jornalismo e a literatura. Segundo ele, a crônica tem a capacidade de transcender o mero relato factual, transformando-o em literatura através do estilo e da sensibilidade do autor. Ele ressalta que, apesar de sua natureza efêmera e ligada ao presente, a crônica possui um valor literário duradouro quando escrita por autores talentosos.

Um ponto central na análise de Candido é a combinação de simplicidade e profundidade na crônica. Ele observa que a aparente simplicidade do gênero, com sua linguagem coloquial e temas cotidianos, esconde uma profundidade significativa. Os melhores cronistas são aqueles que conseguem capturar a essência da vida diária e transformá-la em uma reflexão profunda sobre a condição humana.

Antonio Candido frequentemente cita autores como Rubem Braga, Paulo Mendes Campos e Carlos Drummond de Andrade como exemplos de grandes cronistas brasileiros. Esses escritores, segundo Candido, elevam a crônica ao nível de arte literária, usando sua habilidade com a linguagem e sua sensibilidade para transformar o ordinário em algo extraordinário.

Para Antonio Candido, a crônica é um gênero essencial na literatura brasileira, oferecendo uma janela para o cotidiano e uma plataforma para a reflexão social e cultural. Sua análise destaca a importância do gênero não apenas como um registro do dia a dia, mas como uma forma de arte que combina simplicidade e profundidade, jornalismo e literatura. Candido celebra a capacidade da crônica de capturar o espírito de uma época e de um lugar, fazendo dela uma parte vital da tradição literária brasileira.

Rubem Braga: um dos maiores cronistas do Brasil | Foto: Reprodução

A história da crônica no Brasil é rica e evoluiu significativamente desde seus primórdios até os dias atuais. A crônica no Brasil começou a ganhar forma com a chegada da imprensa no século XIX. Inicialmente, era um gênero predominantemente jornalístico, encontrado em jornais e revistas. Os primeiros cronistas eram jornalistas e escritores que comentavam sobre a vida social, política e cultural do país. Machado de Assis é um dos primeiros grandes nomes a se destacar, utilizando a crônica como um veículo para suas observações agudas sobre a sociedade carioca.

Durante o Romantismo, a crônica ganhou popularidade como uma forma de comunicação literária. José de Alencar, por exemplo, escreveu crônicas que misturavam ficção e realidade, trazendo elementos da vida cotidiana para o público leitor. A crônica se consolidou como um gênero literário importante. Autores como João do Rio e Lima Barreto utilizavam a crônica para retratar a vida urbana, especialmente no Rio de Janeiro. Eles abordavam temas sociais, comportamentais e culturais com um olhar crítico e muitas vezes irônico.

Durante essas décadas, a crônica continuou a evoluir e a ganhar relevância. Autores como Rubem Braga emergiram, trazendo um estilo mais pessoal e introspectivo. Braga, considerado um dos maiores cronistas brasileiros, era conhecido por sua habilidade em capturar momentos do cotidiano com lirismo e sensibilidade.

A era dourada da crônica no Brasil

A dita Era Dourada da Crônica Brasileira se deu entre os anos 1950 e 1960. Autores como Carlos Drummond de Andrade, Paulo Mendes Campos, Fernando Sabino e Clarice Lispector enriqueceram o gênero com suas contribuições. Eles abordavam uma ampla gama de temas, desde o mundano até o existencial, com uma linguagem acessível e poética.

Durante essa época, muitos cronistas publicavam regularmente em jornais e revistas. Isso ajudou a popularizar o gênero e a torná-lo parte do cotidiano dos leitores brasileiros. A crônica se tornou uma maneira de refletir sobre a vida e os acontecimentos de uma forma imediata e íntima.

Fernando Sabino, Paulo Mendes Campos, Helio Pellegrino e Otto Lara Resende | Foto: Reprodução

A partir dos anos 1970 em diante a crônica continuou a evoluir, adaptando-se aos novos meios de comunicação e às mudanças na sociedade. Autores como Luis Fernando Verissimo, Martha Medeiros e Moacyr Scliar mantiveram a tradição viva, cada um com seu estilo e abordagem únicos.

Com o advento da internet, a crônica encontrou novos espaços de publicação. Blogs, sites de notícias e redes sociais se tornaram plataformas para novos cronistas, ampliando o alcance e a diversidade do gênero. Podemos dizer que estamos na era da crônica digital.

A crônica no Brasil evoluiu de uma forma jornalística simples para um gênero literário complexo e multifacetado. Ao longo dos anos, cronistas brasileiros têm capturado a essência do cotidiano, refletindo sobre a vida, a cultura e a sociedade com sensibilidade, humor e crítica. Esse gênero continua a ser uma parte vital da literatura brasileira, adaptando-se e prosperando em novas formas e plataformas.

A estreia literária de Dias Almeida

“A Morte do Fogão”, de Dias Almeida, enquadra-se com êxito na proposta da crônica e dialoga firmemente com o que almeja este gênero despretensioso. Como diz o seu autor, é um livro que deseja fazer divertir e refletir, e vimos, a reflexão e a diversão são preceitos concernentes ao gênero que envolve os textos de “A Morte do Fogão”.

O livro também dialoga com tudo o que marca a crônica brasileira, que é diferente das crônicas francesas, inglesas, norte-americanas. Isso o enquadra com tranquilidade dentro de uma tradição sólida.

O título é curioso, aponta para um traço que vai marcar grande parte dos textos do livro: o flerte com o humor e a piada leve, que Dias Almeida já deixa claro na introdução, quando brinca e faz troça com o seu nome, que é um na certidão de nascimento, outro na vida profissional — na qual é conhecido como Professor Batalhione — e agora o nome de escritor, Dias Almeida.

Percebemos na escrita de Dias Almeida uma reflexão empírica, calcada sobretudo na experiência, da qual extrai matéria para servir às suas elaborações literárias. Sua linguagem é simples e despretensiosa, almejando despertar no leitor mais do que uma facilidade de leitura, mas também uma intimidade, certa cumplicidade. A sensação de intimidade entre leitor e texto é tamanha que em certos momentos temos a sensação de se tratar de uma conversa segregada entre dois amigos. E não será a literatura a nossa maior amizade, como queria o gênio francês Marcel Proust?

Para ilustrar, vejamos a crônica que dá título ao livro, “A morte do fogão”.

Dias Almeida: sua linguagem é simples e despretensiosa, almejando despertar no leitor mais do que uma facilidade de leitura, mas também uma intimidade, certa cumplicidade | Foto: Divulgação

Dias Almeida, partindo de um ato prosaico e fatalmente repetido em todo e qualquer lar, reflete a respeito do ato de cozinhar. Irônico, pergunta-se se sabe mesmo da alquimia da cozinha e abre uma porta de diálogo com o leitor em busca de certa cumplicidade e intimidade que o gênero costumeiramente pede, explorando os lugares vazios da leitura, como quer a Estética da Recepção, dando ao leitor a liberdade de se perguntar também se sabe cozinhar.

A crônica, a partir daqui, ganha ares de narrativa, vira quase um conto. Como vimos acima, para Antonio Candido a crônica é um gênero híbrido e permite este contato com outras formas de escrita. Uma conversa de WhatsApp entra em cena, marcando a temporalidade na qual se passa a história. Lembremo-nos que “crônica” deriva de “cronos”, é o texto de seu tempo, não existe cronista de época, situado no século XXI escrevendo sobre o século XIX. ​

Usando termos da oralidade, como “matar a cobra e mostrar o pau”, vemos o texto escorrer para um terreno de intimidade, típico dos grupos do aplicativo de conversas. O leitor se sente, neste momento, alguém que olha esta conversa pelo buraco da fechadura, acompanhando a intimidade desses amigos. Cada um se coloca a dizer o que está cozinhando. De repente, uma das personagens diz que está fazendo uma galinhada em uma panela elétrica, pois o seu “fogão morreu”. Um silêncio no grupo se instala de repente. e o narrador da crônica se pergunta, novamente dialogando com o leitor, se o silêncio se deu porque todos estavam comendo o que estavam cozinhando, ou se era em memória do falecido fogão, cuja morte se dera porque o gás acabara.

Durante o livro, percebemos que Dias Almeida, em alguns momentos está em busca de sua linguagem, em busca de sua identidade literária, o que é perfeitamente normal para uma primeira obra. Mas o que mais aponta para o saldo positivo de “A morte do fogão” como um projeto vencedor e bem-sucedido, é a sua leveza, sua naturalidade, autenticidade e franqueza de ser aquilo que pretende ser, um instrumento de leveza e de diálogo próximo com o leitor contemporâneo, esmagado por um mundo tenso que perdeu e tem perdido, cada dia mais, a delicadeza.

O livro não esbarra em um rótulo de superficialidade. Sua linguagem moderna e ágil não escamoteia temas delicados, como os da sexualidade ou do preconceito racial, ou ainda uma fina ironia com a febre do coach, profissional capaz de resolver tudo sem ter formação em nada. Claro que questões como essas não escapariam da pena de um historiador, e ainda mais de um professor, que lida diariamente com os mais variados estratos sociais que montam a colcha de retalhos que é o Brasil.

É neste estilo, entre a brincadeira e o posicionamento da linguagem enquanto questão e instrumento de reflexão, que se desenvolve a crônica de Dias Almeida, que tem tudo para se firmar como aquilo que já é, um legítimo cronista.

Carlos Augusto Silva, crítico literário, é professor de Literatura e de História da Arte. Bacharel em Literatura pela UFG, licenciado em História e Língua Portuguesa pela Unijales-SP, especialista em História e Estética da Arte pelo Masp, mestre em Estudos Linguísticos e Literários pela UFG, doutorando em Teoria Literária e Literatura Comparada pela USP. Autor dos livros “Dicionário Proust”, “Opção Crítica” e “Proust e a História”. É colaborador do Jornal Opção.