Brasileiro Edson Amâncio escreve “biografia” diferenciada e criativa de Dostoiévski
31 dezembro 2023 às 00h02
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Adelto Gonçalves
“Meu Dostoiévski — Os Minuto Finais” (Letra Selvagem, 256 páginas), de Edson Amâncio, é uma biografia que vai muito além dos estreitos limites do gênero. Em suas páginas, constata-se que é resultado de uma admiração que já passou de meio século por Fiodor Mikháilovitch Dostoiévski (1821-1881), o romancista e contista russo que, hoje, ombreia com grandes autores universais, como Dante Alighieri (1265-1321) e Miguel de Cervantes (1547-1616), ou outros gigantes da literatura russa, como Nicolai Gógol (1809-1852) e Alexandre Púchkin (1799-1837), ou o nosso Machado de Assis (1839-1908).
Talvez impedido por muitos obstáculos — que incluiria a distância dos arquivos russos —, em vez de construir uma extensa biografia semelhante à que o norte-americano Joseph Frank (1918-2013) fez, que resultou em quatro volumes e mais de três mil páginas, o autor desta obra, o romancista, contista, cronista e neurologista Edson Amâncio (1948), preferiu, em muitos momentos, recorrer à ficção para tentar traçar alguns ângulos da personalidade de Dostoiévski e daqueles que conviveram com ele, além de documentar o percurso de sua paixão literária, que teve início em 1962 quando se deparou na biblioteca pública de sua cidade natal, Sacramento, no interior de Minas Gerais, com “Recordação da Casa dos Mortos” (saiu com o título de “Escritos da Casa Morta”, com tradução de Paulo Bezerra, pela Editora 34), obra basilar do currículo dostoievskiano.
Essa admiração pelo escritor russo aumentou quando o autor, já então estudante de Medicina, passou a ouvir os professores de neurologia citarem Dostoiévski, que sofria de epilepsia e que, por isso mesmo, criou vários personagens que padeciam do mesmo mal, cujo exemplo mais significativo é o príncipe Michkin, do romance “O Idiota” (1869). Depois, já formado, conheceu uma biografia de Dostoiévski e, desde então, nunca deixou de ler os livros do autor russo e ensaios, artigos e outras obras que se referiam a ele.
Desde então, sempre que pôde, não deixou de tentar reconstituir o périplo de Dostoiévski pelo mundo, procurando rastros do autor em Paris, Londres, Basel, Dresden, Genebra, Vevey, Florença, Milão, Moscou, São Petersburgo e outros lugares. Viagens que incluíram não só uma visita ao túmulo de Dostoiévski como um encontro com um tataraneto do escritor no Museu Literário-Memorial F. M. Dostoiévski, em São Petersburgo, dia em que, a caminho daquele local, sofreu um acidente no metrô que quase lhe custou a perda da perna direita, que ficara presa entre o vagão e a plataforma, depois de uma queda provocada por um atropelo de uma multidão de usuários. Desse tataraneto de Dostoiévski, Dmitri, o biógrafo-itinerante receberia algumas cópias da correspondência inédita que o escritor trocara com o poeta Apollon Máikov (1821-1897), seu fiel amigo.
Gigante literário e homem de muitas mulheres
Na obra, além de passagens registradas ao longo dessa busca de possíveis rastros deixados por Dostoiévski, obviamente, há muitas referências à permanência do escritor na Fortaleza de Omsk, na Sibéria, por uma década, ou seja, quatro anos como preso carregando grilhões de cinco quilos de ferro, por delito político de conspiração contra o czar, e outros seis como soldado forçado do exército russo.
No Museu Dostoiévski, que está instalado exatamente no prédio em que o escritor passou a última etapa de sua vida e escreveu o seu derradeiro romance — “Os Irmãos Karamázov” (1879) — e o célebre “Discurso sobre Púchkin” (1880), Edson Amâncio teve também a oportunidade, a convite dos diretores da instituição, de ler sua versão para “O crocodilo”, o conto inacabado de Dostoiévski.
O Museu fica no cruzamento da Rua Kuznetchny com a Rua Dostoievskogo, antiga Iamskaïa que teve o nome alterado em sua homenagem, não muito distante da igreja do Ícone de Nossa Senhora de Vladimir. Lá o escritor morou, sempre de aluguel, primeiro, por um curto período, na década de 1840, e, depois, com a família, de outubro de 1878 até o dia de sua morte, em 1881.
Foi naquele apartamento que Dostoiévski, quando ainda solteiro, escreveu “Gente Pobre” (Biédnie Liúdi), que ganhou nova edição em português, em 2011, em tradução de Luís Avelima, pela editora Letra Selvagem. É de se lembrar que, publicado em 1846, este romance epistolar, gênero que teve seu auge no século XVIII, mas que já declinava à época, foi recebido de maneira entusiástica por Vissarion Belinsky (1811-1848), renomado crítico literário russo, que previu com acerto que o seu autor, então com 25 anos de idade, seria um dos gigantes da literatura russa.
Mas que espécie de homem foi Dostoiévski? O homem da mansarda, como se autodefinia? Soturno, raivoso, perverso, de poucas palavras e gestos comedidos? Ou um homem cercado de familiares e amigos, que sempre tinha uma palavra de encorajamento a quem o procurava?
Por este livro de Edson Amâncio, o leitor vai perceber que Dostoiévski, se foi tudo isso, foi também homem de muitas mulheres, pois, depois de Maria Dmitirevna (1824-?), sua primeira esposa, casou-se com Anna Grigórievna Sinitkin (1846-1918). Em São Petersburgo, obrigado a sustentar também a família do irmão falecido, Mikhail, acabou por ditar o romance “O Jogador” para sua secretária, Anna, com quem acabaria por se casar, embora ela fosse 25 anos mais jovem. Mas antes de se casar com Anna teve como amante Appolinaria Súslova, contista também conhecida como Polina Súslova (1839-1918).
Epilepsia e fumante inveterado
Se este prefaciador pode acrescentar algo a uma obra tão bem imaginada e delineada é para recordar a visita que fez, em 2011, ao Museu Dostoiévski. Trata-se de um típico prédio de apartamentos da São Petersburgo oitocentista, simples e ordinário, sem nenhum mérito arquitetônico em particular, que começou a ser restaurado em 1968 já com o objetivo de se preservar e reconstruir o apartamento de Dostoiévski. Hoje, todos os dias, exceto nas segundas-feiras, quando está fechado, o apartamento-museu atrai turistas e estudiosos de todas as partes do mundo, sendo um dos locais mais visitados de São Petersburgo, cidade que pode ser definida como um museu a céu aberto. E todo dia 2 de julho, desde 2010, em frente ao apartamento-museu, é comemorado o Dia de Dostoiévski, com encenações que rememoram personagens da obra do escritor.
Entra-se no Museu por um hall no rés do chão em que estão um boxe para a venda de livros de Dostoiévski e souvenires e um reservado de cabides em que todos os visitantes são obrigados a deixar os seus sobretudos em dias de inverno, o que é comum durante pelo menos dez meses do ano. Depois, sobe-se por uma escada de poucos degraus para o espaço onde ficavam a sala de visitas e, provavelmente, a cozinha. Acima, estão os quartos, hoje todos transformados em espaço dedicado à memória do escritor. O museu comporta ainda uma exposição literária consagrada à vida e à obra do autor.
O apartamento foi restaurado não só com base em documentos de arquivo e anotações deixadas por contemporâneos do escritor como nas memórias deixadas por sua segunda esposa, Anna Grigórievna, autora de “Meu Marido Dostoievski” (Editora Mauad, 1999, tradução de Zoia Prestes), além de fotografias que foram tiradas um mês depois da morte de Dostoiévski. Logo à entrada do apartamento, chama a atenção um sinete que funcionaria como campainha para anunciar a chegada de visitas. Se não é o original da casa, é exatamente o sinete que se usava à época.
No primeiro andar, pode-se ver a mesa de trabalho do escritor em cima da qual, dentro de uma redoma de vidro, está a pena de metal que ele costumava usar para escrever suas obras. Há ainda fotocópias de manuscritos dostoievskianos. No segundo andar, formado por seis quartos, depois do hall de entrada, há a biblioteca e uma cozinha. Sete janelas dão para a rua Kuznetchny. De uma delas, é possível contemplar a cúpula da igreja de Vladimir.
No quarto que teria sido do casal, vê-se igualmente dentro de uma redoma de vidro uma receita médica que lista os medicamentos que o epiléptico Dostoiévski usou para combater o mal que o atacou nos últimos dias. Detalhe: a receita médica tem a data exata do dia em que o escritor morreu. No quarto está ainda a cama, acima da qual há uma fotografia do quadro “A Madona Sistina”, de Raphael (1483-1520/21), pintado em 1513, símbolo da cidade de Dresden, capital da Saxônia, na Alemanha, onde Dostoiévski viveu um período de sua vida. Numa pequena mesa próxima à janela, um relógio marca o dia e a hora da morte do escritor (28 de janeiro de 1881, 8h36).
Naquele andar, dois quartos são dedicados à mulher do escritor. Entre o mobiliário, há uma escrivaninha que lhe pertencia, além da sala de jantar em que se reunia toda a família todas as noites. Em lugar de destaque, uma curiosidade: uma pequena caixa de latão em que o escritor, fumante inveterado, costumava acondicionar o tabaco.
Ficção psicológica X marxismo
O Museu dispõe de uma vasta coleção de gráficos e objetos de arte e decoração, além de um fundo considerável de fotografias de São Petersburgo da época em que viveu Dostoiévski. Na sala de fotografias, pode-se ainda ver a máscara mortuária de Dostoiévski. Por ali, o visitante pode imaginar as ruas de edifícios baixos e regulares que o escritor costumava percorrer até chegar a sua casa. Mais adiante, há um chapéu de feltro negro que seria aquele com o qual Dostoiévski costumava enfrentar as noites frias de São Petersburgo.
O Museu comporta igualmente uma coleção de cartazes de teatro, programas de adaptações de obras do escritor e um fundo de manuscritos. Boa parte do material foi fornecido por uma sobrinha de Dostoiévski, filha de seu irmão mais velho Mikhail (1820-1864), contista e crítico literário. Além disso, há uma biblioteca que guarda mais de 24 mil volumes, reunindo não só edições em russo dos livros do escritor como outras publicadas em numerosas línguas, inclusive “Gente Pobre”, edição da Letra Selvagem.
Ao lado do apartamento, está o Teatro Dostoiévski, que constitui uma parte independente do Museu e costuma levar à cena, durante o ano, várias adaptações de obras de Dostoiévski, que, aliás, era grande amante da arte cênica, tendo sido amigo de diretores, atores e atrizes. Nicolai Gogól, Henrik Ibsen (1828-1906) e outros contemporâneos de Dostoiévski também já tiveram suas obras ali encenadas.
Antes da Revolução Russa (1917), artigos apareceram em jornais defendendo a necessidade de se abrir um museu em homenagem à memória de Dostoiévski em São Petersburgo. Mas o máximo que se fez foi a colocação de uma placa comemorativa no prédio, já em 1956. O primeiro Museu Dostoiévski surgiu em Moscou em 1928, num prédio que abrigara o Hospital Mariinsky, onde Dostoiévski nascera e passara boa parte da infância, já que seu pai, o médico Mikhail Andreevich Dostoiévski (1788-1839), ali clinicava.
Durante os anos de regime soviético, pouco se fez em São Petersburgo, então Leningrado, porque as convicções religiosas e a ficção psicológica de Dostoiévski seriam incompatíveis com a ideologia do marxismo-leninismo. Mesmo assim, muitos escritores e estudiosos de sua obra não hesitaram em defender a criação de um museu na cidade onde ele havia passado a maior parte de sua vida.
Por recordar tudo isso e muito mais, este livro, antes de uma biografia como tantas que já foram escritas sobre o autor russo, é uma reconstituição da trajetória do seu autor em busca do perfil perdido de Dostoiévski. Em outras palavras: é uma biografia reinventada, pois constitui também um exercício de ficção, como o relato de Pavel Issáiev, enteado de Dostoiévski, filho de Maria Dmitirevna, ou a imaginada viagem do escritor russo a Índia.
Sem contar que, como é um renomado médico e neurocirurgião, com mestrado e doutoramento na Escola Paulista de Medicina da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), o seu autor conhece à exaustão o que provoca um ataque de epilepsia, a sensação de conviver com a morte iminente, como deixou claro em seu recente livro “Experiências de Quase Morte (EQMs): Ciência, Mente e Cérebro” (Summus Editorial, 2021).
Por tudo isso, o que o leitor vai encontrar aqui não é mais uma biografia de Dostoiévski, mas, como o título da obra já anuncia, é o Dostoiévski, que a partir de muitos fatos verídicos, saiu da imaginação de Edson Amâncio. Seja como for, o mais importante aqui é o conhecimento que se ganha do ser humano, ou seja, de seus sentimentos, suas expectativas de vida, suas alegrias e suas tristezas.
[Prefácio do livro “Meu Dostoiévski — Os Minutos Finais”, de Edson Amâncio. O livro conta com apresentação de Aurora Bernardini, tradutora e especialista em literatura russa.]
Adelto Gonçalves, jornalista, é mestre em Língua Espanhola e Literaturas Espanhola e Hispano-americana e doutor em Letras na área de Literatura Portuguesa pela Universidade de São Paulo (USP) e autor de “Gonzaga, um Poeta do Iluminismo”, “Bocage — O Perfil Perdido” e “O Reino a Colônia e o Poder: O Governo Lorena na Capitania de São Paulo – 1788-1797”.