Branco sai, preto fica: o apartheid velado das periferias brasileiras
09 maio 2015 às 10h27
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O diretor do longa, Adirley Queirós, mistura realidade e ficção com um final esperançoso para o País
Fernando Bueno Oliveira
Especial para o Jornal Opção
Ceilândia, Distrito Federal, 26 de março de 1986, casa de shows Quarentão. Nessa mesma data e localidade, à noite, jovens que frequentavam um baile black passam por momentos de desespero por conta de uma atuação repentina da polícia, que chega com cavalos e até helicópteros, e avança contra todos, culminando no ferimento de dois jovens negros, os quais ficam paraplégicos. Além desses dois protagonistas, um terceiro, o Cravalanças, vem do futuro, do ano de 2073, para recolher provas contra o Estado criminoso. O título do filme brasileiro, explicado logo em seu início, é parte das declarações dos policiais que invadem o Quarentão: “Puta prum lado e veado pro outro! (…) Tô falando que branco pra fora e preto aqui dentro! Branco sai e preto fica, porra”!
São expressões, aliás, reproduzidas pelo próprio Marquim, uma das vítimas que, depois daquela noite, vive preso a uma cadeira de rodas. Além dele, Chockito, o outro jovem ferido, teve uma perna amputada e caminha com uma prótese. Mesmo assim, não sai de suas memórias o ambiente alegre do Quarentão naquela noite, repentinamente rompido com a invasão policial. O relato, verídico, é resgatado em cenas ficcionais com depoimentos reais dos ex-dançarinos que, de uma maneira bem original, demonstram o seu cotidiano e as suas vivências interpessoais. Marquim, diante dos obstáculos que dificultam a sua locomoção, adapta, inclusive, sua residência.
Os espectadores, em geral, não precisarão ter, obrigatoriamente, “olhos de sociólogo” para perceberem que o filme traz à tona temas extremamente vivos em meio à sociedade brasileira, tais como a violência policial nas comunidades de periferias, o preconceito para com as pessoas negras, o apartheid social, dentre outros.
Relacionando o filme com alguns fatos sociais, logo nos vêm à mente certas questões, importantíssimas por sinal: podemos dizer que a questão mais dramática a ser enfrentada pelos jovens na periferia tem sido a violência, fenômeno que possui implicações raciais. Só no ano de 2007, mais de 17,4 mil jovens foram assassinados no Brasil, o que representou 36,6% do total ocorrido no país. As maiores vítimas de violência no país também são os negros. Morrem proporcionalmente duas vezes mais negros do que brancos no Brasil. Enquanto o número de vítimas brancas caiu de 18.852 para 14.308 entre os anos de 2002 e 2007, o de negros cresceu de 26.915 para 30.193. Muitos jovens são vítimas da própria polícia, como o caso da chacina na favela do Cabula, na periferia de Salvador (BA), onde 12 jovens negros foram assassinados num suposto confronto com a polícia, em janeiro deste ano.
Além disso, o preconceito racial, aliás, muito presente no Brasil, configura-se noutra questão trabalhada pelo filme quando se passam a cena em que Marquim reproduz a fala de um policial “Branco sai, preto fica, porra” e a cena da invasão dos policiais num local de festa black. Para o sociólogo brasileiro Oracy Nogueira, considera-se como preconceito racial uma disposição (ou atitude) desfavorável, culturalmente condicionada, em relação aos membros de uma população, aos quais se têm como estigmatizados, seja devido à aparência, seja devido a toda ou parte da ascendência étnica que se lhes atribui ou reconhece. No Brasil, o preconceito se manifesta nos mais diferentes modos e nos mais diversos graus, entretanto, nem sempre percebidos.
Assim, tanto a segregação racial quanto a espacial são questões facilmente perceptíveis no desenrolar desse longa-metragem. Marquim e Chockito vivenciam os seus mundos, formam suas espacialidades e se relacionam com as pessoas que se identificam. Para a historiadora Beatriz Nascimento, a inter-relação entre corpo, espaço e identidade pode ser refeita por aquele que busca tornar-se pessoa (e não coisa) nos espaços em que frequenta. Desta forma, o corpo negro pode ser o jovem que dança sozinho ou em grupo ao som do funk; pode ser a mulher ou o homem que delineia suas tranças ou seu penteado black; pode ser igualmente aquele que se “fantasia” de africano num desfile de escola de samba.
A mesma historiadora considera que os componentes de um grupo de diversão se veem, se percebem, se valorizam, embalados em trilhas sonoras do Atlântico negro, acústicas e/ou eletrônicas: afoxé, congada, samba, blues, jazz, reggae, funk, samba-reggae, rap, drum´n´bass etc. Ambos personagens construíram suas territorialidades, vivenciam os seus espaços e se identificam com os seus lugares, no caso, a periferia.
Podemos dizer ainda que nas cidades, não por um acaso, os espaços de periferia, geralmente, são associados à imagem de marginalidade. Ao longo de suas trajetórias, esses espaços foram estigmatizados e nunca foram bem vistos e aceitos pela sociedade branca, dos ricos. Sobre isso, a arquiteta e urbanista Raquel Rolnik diz que, para a cidade, território marginal é território perigoso, porque é daí, desse espaço, muitas vezes definido como desorganizado, promíscuo e imoral, que pode nascer uma força disruptora, sem limite. Assim, se institui uma espécie de apartheid velado, que, se por um lado confina a comunidade à posição estigmatizada de marginal, por outro, nem reconhece a existência de seu território.
Como resposta a tanta segregação, os fictícios Marquim e Chockito se reencontram e usam seus conhecimentos em música da periferia e eletricidade, respectivamente, para criar uma “bomba cultural” e organizar um ataque ao poder. Por ironia ou esperança, o final é feliz: o governo brasileiro será finalmente acionado na Justiça e as famílias serão ressarcidas.
O original no filme é que não estamos em um documentário ressentido, mas em uma espécie de óvni cinematográfico em que os fatos se misturam à ficção e a ficção à ficção científica. O longa-metragem venceu onze prêmios no Festival de Brasília de 2014, entre eles o de melhor filme, e foi selecionado por vários festivais internacionais. Não é por menos: da paisagem de “feiura” ímpar de Ceilândia às gírias nas falas dos personagens, tudo contribui para criar um pacto firme entre o filme e o espectador.
O seu diretor, Adirley Queirós, vive desde os 7 anos de idade em Ceilândia, cidade-satélite de Brasília, local que ambienta e inspira seus filmes. No Coletivo de Cinema em Ceilândia (CECINE), ele produz curtas e longas-metragens como os premiados “Rap, o canto da Ceilândia” (2005), “A cidade é uma só” (2010) e, agora, “Branco sai, preto fica” (2014). Aliás, este último, uma ótima opção para se repensar questões que discutem a cultura da periferia brasileira.
Fernando Bueno Oliveira é mestrando em Ciências Sociais e Humanidades pela Universidade Estadual de Goiás (UEG).