Biografia escrita por Jason Tércio tenta explicar o múltiplo Mário de Andrade

18 agosto 2019 às 00h00

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O modernista foi poeta, romancista, contista, cronista, crítico de arte, musicólogo, folclorista, fotógrafo, professor e orientador de uma geração de escritores
Marcelo Franco
“Quando eu morrer quero ficar,
Não contem aos meus inimigos,
Sepultado em minha cidade,
Saudade.
Meus pés enterrem na rua Aurora,
No Paissandu deixem meu sexo,
Na Lopes Chaves a cabeça
Esqueçam.
No Pátio do Colégio afundem
O meu coração paulistano:
Um coração vivo e um defunto
Bem juntos.
Escondam no Correio o ouvido
Direito, o esquerdo nos Telégrafos,
Quero saber da vida alheia,
Sereia.
O nariz guardem nos rosais,
A língua no alto do Ipiranga
Para cantar a liberdade.
Saudade…
Os olhos lá no Jaraguá
Assistirão ao que há de vir,
O joelho na Universidade,
Saudade…
As mãos atirem por aí,
Que desvivam como viveram,
As tripas atirem pro Diabo,
Que o espírito será de Deus.
Adeus.”
Gosto de poucos poemas de Mário de Andrade (1893-1945), geralmente os mais simples, como esse aí acima e “Eu Sou Trezentos (leia abaixo). Romances — confesso? Confesso: “Macunaíma” me enfada. Mas há o Mário polímata e epistológrafo (“polímata e epistológrafo” — é cada coisa que escrevo…). O homem estudava tudo e todos, incentivava, criticava, trovejava e ribombava no cenário nacional, e esse Mário merecia ser dissecado para o bem da cultura aqui do Florão da América. Agora ele o foi: Jason Tércio lançou uma minuciosa biografia do autor de “Pauliceia Desvairada”, e Mário de Andrade surge ainda maior do que o supúnhamos. Livro recebido hoje e leitura já iniciada com certa afoiteza — “Só a beleza salvará o mundo”, escreveu Dostoiévski, e eu adiro ao programa (“adiro”!).

De volta à obra do paulistano incansável: aprecio sobretudo sua correspondência¹. Ler cartas é uma forma de continuar espiando pelo buraco da fechadura mesmo sendo adulto. “Epistolae non rubescent”, é o que dizem, e há mesmo muita sinceridade nelas. Como minha sina na vida é espiar por frestas, leio cartas como parte de uma ração diária que me mantém acima de minhas agruras cotidianas, e Mário de Andrade se correspondeu com todos aqueles que um dia seriam gigantes de nossa literatura. Sem seus conselhos, talvez Drummond fosse menos Drummond, Pedro Nava não se tornasse o excepcional Nava memorialista e Fernando Sabino não tivesse escrito o grande bildungsroman de sua geração, o — para mim — soberbo “O Encontro Marcado”, talvez o melhor do gênero que se escreveu entre nós.
Deem uma olhada nas livrarias virtuais e verão que boa parte dessa correspondência já foi publicada, uma ampla troca de cartas com Drummond, Nava, Câmara Cascudo, Alceu Amoroso Lima, Manuel Bandeira, Tarsila do Amaral… Não admira que Mário tenha morrido cedo, com apenas 51 anos: com certeza, o excesso de trabalho o enfraquecera. Há, inclusive, um livro sobre essa atividade, “Orgulho de Jamais Aconselhar. A Epistolografia de Mário de Andrade”², de Marcos Antonio de Moraes, companheiro ideal para a nova biografia.

Quem se ombreia hoje com Mário? Um dos meus novos cacoetes da meia-idade é lamentar antigas “épocas de ouro”, mas, clichê resmungão à parte, os cadernos dominicais de cultura são de uma aridez saariana, salvando-se, claro, os textos sobre decoração e quadrinhos, arroz de festa nos jornais e, ao que parece, obsessão nacional. Que o livro de Jason Tércio, então, nos faça ter orgulho de Mário, sua faina de Sísifo (ou antes: de Prometeu dando aos mortais o fogo dos deuses) e ainda de sua trupe em 1922, tudo isso talvez nos trazendo um pouquinho de fé neste Brasilzão que produz teses de doutorado às pencas sobre letras de funk e jamais nos deu uma biografia decente de, digamos, Manuel Bandeira, Pedro Nava, João Cabral de Melo Neto — salvando-se agora o múltiplo Mário, aquele que era trezentos, trezentos e cincoenta. Tolle lege, meus amigos, que nos desasnar é obrigação moral, e, sim, só a beleza salvará o mundo.
Notas
¹ Lucas Petersen, no livro “El Traductor del Ulises: Salas Subirat — La Desconocida Historia del Argentino que Tradujo la Obra Maestra de Joyce” (Sudamericana, 398 páginas), relata que Mário de Andrade trocava cartas com o primeiro tradutor do romance do escritor irlandês na Argentina. O brasileiro é apresentado assim: “Mário de Andrade, um atento leitor das novidades literárias rio-platenses com quem Salas estabelecerá um vínculo mais ou menos pessoal” (página 58). O autor de “Pauliceia Desvairada” é citado várias vezes no livro (sem tradução para o português).
² “Orgulho de Jamais Aconselhar — A Epistolografia de Mário de Andrade” (Edusp, 248 páginas), de Marcos Antonio de Moraes. O professor e pesquisador é autor do posfácio do livro de Jason Tércio.
Marcelo Franco é crítico.
Eu sou trezentos…
(7-VI-1929)
Eu sou trezentos, sou trezentos-e-cincoenta,
As sensações renascem de si mesmas sem repouso,
Ôh espelhos, ôh! Pireneus! ôh caiçaras!
si um deus morrer, irei no Piauí buscar outro!
Abraço no meu leito as milhores palavras,
E os suspiros que dou são violinos alheios;
Eu piso a terra como quem descobre a furto
Nas esquinas, nos taxis, nas camarinhas seus próprios beijos!
Eu sou trezentos, sou trezentos-e-cincoenta,
mas um dia afinal eu toparei comigo…
Tenhamos paciência, andorinhas curtas,
Só o esquecimento é que condensa,
E então minha alma servirá de abrigo.