Biografia de Billie Holiday traz à tona a brutalidade do século 20

11 novembro 2018 às 00h00

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“For Lady Day – A História de Billie Holiday”, de autoria do italiano Paolo Parisi e lançado pela editora Veneta, lacônico e minimalista, nos envolve na atmosfera fria do blues e cinzenta do jazz

Ciro Marcondes**
Quando fui pegar para ler Blues For Lady Day – A História de Billie Holiday, fiz questão de botar para ouvir, simultaneamente, uma velha coletânea da cantora que saco da minha coleção quando me bate uma “falsa” nostalgia da era do jazz, dos anos dourados de Hollywood, de um século 20 em sua versão mais bruta.
Neste caso, é importante ouvir em vinil, porque as ranhuras combinam com a voz rascante da cantora e o ar de ruínas da narrativa. O quadrinho, de autoria do italiano Paolo Parisi e lançado pela editora Veneta, lacônico e minimalista, prepara esta armadilha: o objetivo é nos envolver na atmosfera fria do blues e cinzenta do jazz.
Esse estilo musical, tão prolífico e carregado com marcas da história, sempre me acompanhou, e acredito que tenha gostado dessa versão limpa e fragmentária da história de Billie Holiday pelas mesmas razões motivadoras do seu autor: a imersão na gravidade da melancolia, seja pela trajetória errática da cantora, seja pelo estado de espírito sorumbático no qual sua música nos submerge. Parisi já experimentara essa atmosfera biografando outro gigante: John Coltrane.
A bem da verdade, não há nada de mais na capacidade artística do quadrinho fora o mérito de nos tragar para uma certa ambiência em que esteve imersa Billie Holiday. O autor vai e vem na história contando flashes e pedaços de eventos da vida da cantora em capítulos que têm o nome de suas músicas emblemáticas. Seu estilo, sem muito sombreamento ou hachuras, é asséptico, mas os tons de cinza ajudam muito na composição soturna da narrativa. É o suficiente para nos trazer Billie de volta à vida por alguns instantes.

Aliás, o que dizer de Billie Holiday? Eu poderia engasgar aqui procurando maquiar meu texto com elucubrações superficiais sobre os efeitos de sua voz na percepção, ou de sua brutal influência na história da música. Porém, melhor é simplesmente fazer ctrl c + ctrl v do clássico crítico de jazz da Melody Maker, Max Jones, falando sobre a maneira de Billie cantar:
“Os influxos não são sempre diretos ou evidentes. Existem campos de influência: o timbre, o fraseado, o controle da divisão rítmica, o vício de alisar sílabas ‘insólitas’, o uso sutil do vibrato, o recurso de fazer cair a entoação no fim de algumas palavras, o relax e a recusa a qualquer truque vocal, e principalmente seu método, de algum jeito derivado de Armstrong, de esmagar os trechos mais incômodos e deselegantes do perfil melódico, de modo que o tema lhe soasse mais sensato e coubesse em sua restrita extensão vocal e – para dizê-lo com Henry Pleasants – em sua voz magra.”
O quadrinho, pensando como uma máquina de editar a vida das pessoas, seleciona momentos decisivos da vida da cantora, porém em circunstâncias íntimas, colocando nos recordatórios suas próprias palavras autobiográficas. A ascensão para o jazz em parceria com o pianista Teddy Wilson (sua fase swing, possivelmente a melhor), por exemplo, após ter se prostituído num bordel e vivido verdadeiro calvário com sua mãe. Depois, Billie cantou nos ombros de gigantes como Lester “Prez” Young (seu eterno amigo e amante) ou Count Basie (com quem se desentendeu).

Autor: Paolo Parisi
Editora: Veneta
Valor: R$ 40,66
Coisas que eu não sabia sobre Billie Holiday: seu pai, Clarence Holiday, era um bom guitarrista de orquestra e tocara na banda de Fletcher Henderson, que alguns (ainda) consideram o “inventor do jazz”. Ele abandonou a família e chegou a demonstrar desgosto pelo fato de a filha ter ultrapassado seu sucesso. O episódio é retratado com frieza no quadrinho. Também não sabia que Eleanora Fagan Gough (seu nome de batismo) havia adotado “Billie” por conta de uma certa atriz de cinema mudo chamada Billie Love (ganhou pontos comigo!).
Billie Holiday conheceu o pior da pobreza e o pior da riqueza. Foi viciada em heroína, internada diversas vezes e isso devastou sua carreira. Posteriormente, sua vida (morreu aos 44, em 1959). Parisi se concentra bastante tanto no desespero de dever dinheiro e no vício em si, quando no de ser presa, internada e sofrer por ser negra e mulher. Sua voz faz estas cicatrizes emergirem, como testemunho da brutalidade do século 20.
Por fim, vale mencionar o episódio da música Strange Fruit, cuja letra foi adaptada de um inspirado e sombrio poema de Abel Meeropol, sobre os constantes linchamentos e execuções de pessoas negras no sul dos Estados Unidos. Holiday foi logo identificada pelo poeta como a voz perfeita para encarnar essa sofisticada forma de protesto. As negociações foram difíceis, mas a gravação da música foi essencial para elevá-la como consciência racial e como uma das maiores cantoras de todos os tempos.
Strange Fruit, em sua estranha forma de trabalhar o tempo e sussurrante jeito de apresentar os hediondos eventos, representa a capacidade do jazz de não estar distante da História, de trilhar uma narrativa que remonta ao nosso passado recente e trazê-lo à tona em toda a sua intensidade. Para terminar este texto no ambiente do mais puro afeto por Billie, deixo aqui minha canção e meus versos favoritos escritos por ela:
Love will make you drink and gamble
Make you stay out all night long
Love will make you drink and gamble
Make you stay out all night long
Love will make you do things
That you know is wrong
***Ciro Marcondes é professor na Universidade Católica de Brasília e pesquisador da área de Histórias em Quadrinhos.
*** Publicado originalmente no Metrópoles