Bariani Ortêncio: meu amigo de 100 anos
18 dezembro 2023 às 10h41
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Yuri Baiocchi
Eu tenho uma conhecida que é completamente de lua. Pois explico: às vezes, como agora em dezembro, ela é lua nova, te conhece, acena e esboça um sorriso nervoso; noutras, em abril, ela já é lua minguante e faz de conta que nem viu. Mas tem uma ocasião especial em que, independentemente da época, ela é sempre lua cheia: é quando você ou alguém (não precisa ser próximo) esteja bem debilitado, precisando de força até para morrer (como na roça) ou quando de fato já morreu.
Essa conhecida tem o tipo de quem começa a ler o jornal pela seção de obituário, de quem guarda santinhos de missas de sétimo dia em porta-retratos e tem um guarda-roupa de viúva de antigamente.
Para comprovar isso não foi difícil, um dia ela estava toda minguante, não me reconheceu face a face e eu então emendei essa: você já soube quem está na UTI? Imediatamente ela foi tomada por gestos involuntários e eu pude ver dentro dela um torcedor de futebol como que amordaçado na hora do gol, passando de súbito de mera conhecida a devotada amiga e confidente. Foi assim com um sem-número de pessoas que partiram nas últimas décadas e, por falar em partir, o fetiche da minha conhecida tem passaporte e visto, assim ela viaja lonjuras para acompanhar o sofrimento de um moribundo.
É preciso, pois, deixar a conhecida e seus hábitos mórbidos de lado e justificar o porquê dessa introdução. É que de repente me vi prestes a escrever mais outro obituário e eu não pretendo me tornar sentinela das Parcas, tampouco um cronista de lápides ou um consultor para epitáfios. Não, de fato não quero ser uma versão literata dessa minha conhecida.
Ostecrino Lacerda, Bariani Ortêncio e amizade
Entretanto, é de se esperar que alguém com 24 anos de idade e um círculo de amizades com muitas pessoas na casa dos 80 anos ou mais se depare com a morte com uma frequência um tanto maior do que a de alguém na mesma idade e com amizades mais coetâneas. Aliás, não sou o único nessa situação: o historiador Antônio César Caldas Pinheiro me confidenciou certa vez a respeito da preocupação de sua irmã de que ele chegasse à meia idade totalmente viúvo das amizades. E aconteceu mais ou menos isso, perdeu o Padre Pereira, Paulo Bertran, Marilda Godoy, José Mendonça Teles e outros que, sei, eram-lhe caros. Mas os ciclos se renovam e, vejam só, há uma possibilidade grande dele não ir ao meu enterro.
A minha amizade com Antônio Caldas já tem 10 anos, mais precisamente 41,6% da minha vida até agora. E data dessa mesma época a amizade com Bariani Ortêncio, o amigo mais velho que já tive (e que não era parente). Também mantive uma relação de muita cordialidade e querer bem com Ursulino Leão (que um dia me ligou perguntando se eu tomava uísque, eu tinha 15 anos e dispensei os cubos de gelos), mas amizade mesmo é outra coisa.
Há quase uma década (portanto Bariani já era nonagenário), encontrei-me com ele pela primeira vez durante a posse de nosso amigo Antônio Caldas na Academia Goiana de Letras (na sede do Instituto Histórico e Geográfico de Goiás).
A recepção da posse de Antônio Caldas na AGL aconteceu depois em Palácio, que se encontrava ornamentado com arranjos de flores devido à solenidade ocorrida durante a manhã e, graças à sensibilidade de um governador atento, assim permaneceu até a hora da recepção do mais novo imortal goiano — uma gentileza que reduziu e muito os custos.
O padrinho de minha amizade com Bariani foi o poeta regionalista Ostecrino Lacerda, outro octogenário. Ostecrino e eu temos uma amizade tão bonita que passou também às nossas famílias. Durante um tempo não havia reunião em minha família sem a presença de Ostecrino. E foi justamente atendendo a um pedido dele que incluí o Bariani numa lista de autores goianos que seriam lidos e homenageados pelos alunos das escolas municipais de Jaraguá durante a realização do “I Circuito Cultural Desembargador Augusto Ferreira Rios”, idealizado pela Prefeitura Municipal de Jaraguá e pela Secretaria Municipal de Cultura, então ocupada pelo dinâmico Paulo Vitor Avelar (atual prefeito).
Lembro-me de que faziam parte da lista os seguintes autores: Afonso Félix de Sousa, Aída Félix de Sousa, Domingos Félix de Sousa, Manoel Amorim Félix de Sousa (irmãos e jaraguenses), Nelly Alves de Almeida, José Peixoto da Silveira, Getúlio Targino Lima, José Fernandes (um de meus primeiros amigos a falecer), Edival Lourenço, Maria José Silveira, Maria Lúcia Félix Bufáiçal e Hamilton Carneiro.
Faltava o décimo segundo nome, mais precisamente alguém que tivesse relação com o folclore. A indicação vinda do Ostecrino foi então acatada de pronto e, além do ofício encaminhado pela Prefeitura, houve também o meu telefonema para o Bariani. Conversamos por duas horas: do Bazar Oió e jornal de mesmo nome, passando pelo seu Bazar Paulistinha ao primeiro disco de Ely Camargo, suas viagens com Regina Lacerda por eventos de folclore, o crime do Lindomar Castilho, as crônicas e a indumentária alinhada do Juruena di Guimaães até, por fim, eu lhe fazer o convite que motivara aquele telefonema. Foi amizade à primeira linha.
Como dito, nós só fomos nos conhecer pessoalmente no auditório do IHGG durante a posse do Caldas na AGL. Lá, o Bariani me disse: “Menino dessa idade não costuma ficar até tarde na rua porque tem que dormir cedo, mas hoje foi o menino que me colocou para perder a festa e ir dormir senão não consigo estar em Jaraguá amanhã para a homenagem”.
No outro dia, à hora do almoço e já de volta a Jaraguá, recebemos os convidados em casa antes de irmos para o evento. Getúlio Targino, à frente da presidência da AGL; o desembargador Norival Santomé, representando o TJGO; Px Silveira, o IHGG; o Bariani e etc. Mostrei-lhes os detalhes do nosso casarão: móveis, decoração, cômodos e disse-lhes que, além de Augusto Rios, outro poeta, Antônio Félix de Bulhões Jardim, residiu lá quando também fora juiz de Jaraguá. Havia ainda na lista de moradores da casa o avô de Zoroastro Artiaga e de Leodegária de Jesus, um músico negro. O desembargador Norival Santomé contribuiu para a explicação ao contar para os demais que durante alguns anos minha família alugara o imóvel para o TJGO e serviu de residência oficial para dois juízes amigos dele: Kisleu Dias Maciel Filho e João Waldeck Félix de Sousa, atualmente desembargadores.
Bernardo Élis, Romãozinho e Gelmires Reis
Enfim, os convidados foram envolvidos por minha família e pude conversar a sós com Bariani na primeira sala. Uma conversa comprida, mas rápida, digo, ágil e cheia de informações. Ele sabia trovas caipiras de cor, trovas de todos os cantos do Brasil. Falava de Bernardo Élis como quem fala do vizinho. Contou-me sobre Romãozinho e ouviu de mim a versão jaraguense da lenda. Eis que ele me disse que de alguma forma eu o lembrava o historiador Gelmires Reis, de Luziânia. Então eu lhe contei que era admirador de Gelmires Reis, que já fora professor particular naquela casa e cuja mulher era minha parente. Bariani não poderia ficar mais estupefato por eu saber quem era Gelmires Reis e com o detalhamento genealógico acerca do parentesco e também com o a especificidade de Gelmires Reis ter sido professor particular das mulheres de minha família no início do século XX.
Um mês depois, em junho de 2014, em sua crônica de “O Popular” (“Dois polos de cultura”), fez referência a este seu novo amigo e, além de levar para o texto a semelhança que ele julgou haver entre Gelmires Reis e mim, escreveu: “O enciclopédico Yuri Baiocchi”. Pronto, dali em diante só me chamaria de Enciclopédico.
Retribui-lhe a visita ainda em 2014. Liguei para ele dizendo que passaria um mês em Goiânia para pesquisas e apontamentos. Ele colocou a Izabel Signorelli, que o assessorava, à disposição para quando eu fosse até lá. E quando fui descobri em cinco minutos que a Izabel era casada com um neto de Joaquim Pompêo de Pina, artista pirenopolino que vinha sendo objeto de minha curiosidade. Mais uma vez o Bariani vibrou com os links feitos. Passei semanas ali em sua casa, onde há uma biblioteca goiana muito sortida, que perde talvez apenas para a de José Mendonça Teles — esta comprada pelo filantropo Leonardo Lacerda e doada ao Arquivo Frei Simão Dorvi, sob intermediação e organização do Antônio Caldas e deste que ora redige.
Alheio a futebol, marquei todas as minhas visitas durante os dias da Copa do Mundo de 2014. Foi assim que, após a Izabel ir para casa ao final do expediente e eu continuar sobre os livros, assisti quase a Copa toda ao lado do Bariani, tirando os jogos do Brasil. Na sala vizinha à biblioteca, sentados em cadeiras de fio: eu com os olhos em José J. Veiga e Carmo Bernardes, ele predizendo que a Alemanha seria campeã. Quando isso de fato aconteceu, liguei da Cidade de Goiás para parabenizá-lo pela previsão certeira.
José J. Veja e o “nandei o Bernardo à…”
Guardo dele alguns títulos com os quais me presenteou, bem como um cd do cantor Lindomar Castilho que ele produziu e a foto (original) das Cavalhadas de Jaraguá, de sua autoria, que foi capa de um disco da Ely Camargo.
Tempos depois de me remeter alguns de seus livros, teve a coragem de perguntar para um menino o que achava de sua produção literária. Eu respondi rápido: prefiro José J. Veiga. Bariani não se chateou e riu dizendo: se fosse o Bernardo te perguntando, você tava lascado; ele levava muito a sério qualquer fala; uma vez um jornal me perguntou qual era o escritor goiano mais reconhecido fora de Goiás e, com base no número de traduções para outros idiomas, apontei o José J. Veiga; o Bernardo veio tirar satisfação comigo por isso (e também por ele não gostar do José J. Veiga), então eu mandei o Bernardo à…”.
Se a literatura do Bariani nunca me pegou de jeito, por sua vez o seu jeito de contar histórias fascinava qualquer um e me convertia no bom ouvinte que eu nunca fui. Afinal, não é todo mundo que chamava o desembargador Homero Sabino de “Didiu” (o magistrado foi jogador de futebol), que levava caixetas com marmelada de Santa Luzia pro Guimarães Rosa (por recomendação do Domingos Félix), que sabia o significado de todos os nomes de cidades goianas (até da traiçoeira Itaguaru — Ita de Itaberaí, Gua de Jaraguá e Ru de Uruana), que mandava o Bernardo Élis à… Só mesmo alguém com um repertório de cem anos.
Deus afaste essa conhecida de mim e que eu viva bem e muito, como o Bariani.
Macktub!
Yuri Baiocchi, pesquisador, escritor e crítico literário, é colaborador do Jornal Opção.