Carlos Russo Jr.

A oposição entre o processo civilizatório e a barbárie é muito antiga. Na realidade, a palavra “bárbaro” tem sua origem na antiguidade grega. De certa forma, ela denotava um certo elitismo e preconceito por parte dos povos do Peloponeso e da Ática.

Designava civilizações que arrastavam os erres ao falar, consideradas primitivas, logo incultas, atrasadas e brutais. Até mesmo no ato de beberem o vinho, presente dos deuses, diferiam: os povos “civilizados” utilizavam-no misturado com dois terços de água para atingirem o “entusiasmo” em seus “simposia” (reuniões que, muitas vezes, se estendiam noite adentro, com música e discussões); já os bárbaros tomavam vinho puro para se embriagarem e rapidamente.

Entretanto, ao chegamos aos séculos XVII e XVIII, essa diferenciação recebe nova legitimidade e extensibilidade na filosofia dos Iluministas e será herdada pelos jacobinos, a ala esquerda da Revolução Francesa, já na transição para o século XIX,  os termos “barbárie” quanto o “barbarismo” se contrapunham como antípodas processo civilizatório, enfatizando a crueldade e falta de humanidade no “ser bárbaro”.

Michael Löwy e a barbárie civilizada

Michael Löwy: pensador marxista brasileiro | Foto; Reprodução

A história do homem moderno nos obriga a refletir sobre o conceito — aparentemente contraditório, mas de fato perfeitamente coerente — de “barbárie civilizada”, nos ensina Michael Löwy.

“Certamente, a história humana é rica em atos bárbaros, cometidos tanto pelas nações “civilizadas” quanto pelas tribos “selvagens”. A história moderna, depois da conquista das Américas, parece uma sucessão de atos desse gênero: o massacre de indígenas das Américas, o tráfico negreiro, as guerras coloniais. Trata-se de uma barbárie ‘civilizada’, isto é, conduzida pelos impérios coloniais economicamente mais avançados.”

No século XX, entretanto, um limite é transgredido: passa-se a um nível superior de barbárie: a diferença é qualitativa. Trata-se de uma barbárie especificamente moderna, do ponto de vista de seu ethos, dos meios e da estrutura.

A Primeira Guerra Mundial (1914-1918) inaugurou esse novo estágio da “barbárie civilizada”.

Dois autores foram os primeiros a soarem o sinal de alarme, em 1914/1915: Rosa Luxemburgo e Franz Kafka. Apesar de suas evidentes diferenças, eles têm em comum o fato de terem tido a intuição — cada um à sua maneira — de alguma coisa sem precedente que estava para se constituir no curso daquela guerra.

Ao usar a palavra de ordem “socialismo ou barbárie”, Rosa Luxemburgo em “A Crise da Socialdemocracia”, de 1915, rompeu com a concepção da história como progresso irresistível, inevitável, “garantido” pelas leis “objetivas” do desenvolvimento econômico ou da evolução social. O outro lado da alternativa ao socialismo ela sinalizou com um sinistro perigo: a barbárie.

Uma barbárie eminentemente moderna, da qual a Primeira Guerra Mundial dá um exemplo surpreendente: jamais no passado tecnologias tão modernas como os tanques, os gases venenosos, a aviação, tinham sido colocadas ao serviço de uma política de massacre e de morte em escala tão quase universal.

Franz Kafka e a nova barbárie

Por outro lado, as intuições do escritor Franz Kafka são de uma natureza diferente. Sob a forma literária ele descreve a nova barbárie. Desenvolve o tema numa novela absolutamente profética: “A colônia penal”.

Em uma colônia francesa, um soldado “indígena” é condenado à morte por oficiais cuja doutrina jurídica pode ser resumida em poucas palavras, sendo uma espécie de quintessência do arbítrio: “A culpabilidade da vítima não deve jamais ser colocada em dúvida”.

A execução do soldado deve ser cumprida por uma máquina de tortura que inscreve lentamente sobre seu corpo com agulhas: “Honra teus superiores”.

O personagem central da novela não é nem o viajante que observa os acontecimentos com uma hostilidade muda, nem o prisioneiro, que não reage de modo nenhum, nem o oficial que preside a execução, nem o comandante da Colônia. É a máquina mesma.

Toda a narrativa gira em torno do sinistro aparelho, que parece mais e mais, no curso da explicação detalhada que o oficial dá ao viajante, como um fim em si mesmo.

A máquina não está lá para executar o homem, é sobretudo este que está lá para a máquina. Para fornecer um corpo sobre o qual ela possa escrever sua inscrição sangrenta ilustrada de “muitos florilégios e ornamentos”. O oficial mesmo é apenas um servidor da máquina.

Em que “máquina de poder” bárbara, em que “aparelho da autoridade” sacrificador de vidas humanas, pensava Kafka? A história “A Colônia Penal” foi escrita em outubro de 1914, três meses após a eclosão da Primeira Guerra, conhecida, na época, como Grande Guerra.

Há poucos textos na literatura universal que apresentam de maneira tão penetrante a lógica mortífera da barbárie moderna como mecanismo impessoal.

O entre guerras e Walter Benjamin

Esses pressentimentos parecem se perder nos anos de pós-Primeira Guerra, mas não para Walter Benjamin.

Ele é um dos raros pensadores a compreender que o progresso técnico e industrial pode ser portador de catástrofes sem precedentes. Daí seu pessimismo — não fatalista, mas ativo e revolucionário, frisa Löwy.

Em um artigo de 1929, Benjamin definia que uma política revolucionária deveria ser “a organização do pessimismo” — um pessimismo em todas as linhas: desconfiança quanto ao destino da liberdade, desconfiança quanto ao destino do povo europeu.

E acrescenta, ironicamente: “Confiança ilimitada somente no IG Farben e no aperfeiçoamento pacífico da Luftwaffe”. Ora, mesmo Benjamin, o mais pessimista de todos, não podia adivinhar a que ponto essas duas instituições iriam simbolizar, alguns anos mais tarde, a capacidade destrutiva e bárbara da modernidade, produzindo gases para as câmeras de morte dos campos de concentração e matança indiscriminada por bombardeios de civis em mãos nazistas.

Se nos referimos “à barbárie” como atos cruéis, desumanos, como a produção deliberada de sofrimento e a morte buscada de não-combatentes — nenhum século na história conheceu manifestações de barbárie tão extensas, tão massivas e tão sistemáticas quanto o século XX, e que se estendem para o século XXI.

De todos os modos, a ideologia legitimadora da “barbárie de tipo moderna e pós-moderna” é pseudocientífica, racista, eugenista.

Holocausto da Segunda Guerra Mundial

A utilização obsessiva de fórmulas pseudo-medicinais foi característica do discurso antissemita dos dirigentes nazistas, e pode ser observado até mesmo nas conversações privadas entre eles. Numa carta a Himmler em 1942, Adolf Hitler insistia: “A batalha na qual nós estamos engajados hoje é do mesmo tipo que a batalha liderada, no século passado, por Pasteur e Koch. Quantas doenças não tiveram sua origem no vírus judeu… Nós não encontraremos nossa saúde sem eliminar os judeus”.

O genocídio dos judeus e dos ciganos é, como observa Zygmunt Bauman, um produto típico da cultura racional burocrática, que elimina da gestão administrativa toda interferência moral. Ele é, deste ponto de vista, um dos possíveis resultados do processo civilizador como racionalização e centralização da violência e como produção social da indiferença moral.

“Como toda outra ação conduzida de maneira moderna — racional, planificada, cientificamente informada, gerida de forma eficaz e coordenada – o Holocausto deixou para trás todos seus pretensos equivalentes pré-modernos, revelando-os em comparação como primitivos, esbanjadores e ineficazes. (…) Ele se eleva muito acima dos episódios de genocídio do passado, da mesma forma que a fábrica industrial moderna está bem acima da oficina artesanal…” (Bauman).

Conclusão

Voltemos a Michael Löwy: “Levar em conta a barbárie moderna do século XX e XXI exige o abandono da ideologia do progresso linear. Isso não quer dizer que o progresso técnico e científico é intrinsecamente portador de malefício — nem tampouco o inverso. Simplesmente, a barbárie é uma das manifestações possíveis da civilização industrial/capitalista moderna — ou de sua cópia ‘socialista” burocrática’”.

Carlos Russo Jr. é escritor e crítico literário.