“Avatar: o Caminho da Água” — A última utopia, o fim da história e o cinema
01 janeiro 2023 às 00h00
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Diogo Alves
Especial para o Jornal Opção
O cinema já percorreu inúmeras mortes. Desde a popularização da televisão em meados do século XX nos Estados Unidos até o sistema de locações de DVDs e, mais recentemente, o boom dos streamings, a Sétima Arte vem resistindo bravamente a incansáveis tentativas de boicotar aquilo que possui de mais tangível: a sala de cinema e a dialética entre experiência individual e reações coletivas diante de imagens em movimento. Essas que, também, surgem de um diálogo entre a escuridão do ambiente e os feixes de luz do projetor.
A mais recente das mortes do cinema, nessa lógica sucessiva de tragédias, caracteriza-se pela destruição do espaço físico no qual os filmes se passam e, consequentemente, da dimensão de coletividade que as experiências podem alcançar. Além disso, o teor cada vez mais individualizado de domínio psicológico que o neoliberalismo atingiu faz com que os streamings sejam, cada vez mais, um aglomerado de algoritmos baseados em nada além do anseio por lucro, ainda que a arte sofra com hemorragias dolarizadas nesse processo. Assim como, com o fim da Guerra Fria e, posteriormente, o colapso da União Soviética, Francis Fukuyama, pensador estadunidense, teorizou que a humanidade, graças à vitória do capitalismo, chegou ao fim de sua história, o cinema parece ter atingido sua última utopia por meio de sua domesticação pelos streamings.
Curiosamente, todavia, essa dicotômica e abrangente arte, em todos seus abismos, foi capaz de reerguer-se ainda mais forte. Utopias nunca foram seu forte. Ao contrário, são motivos de ojeriza de sua parte. Ainda mais quando se trata de restringi-la a pouquíssimas polegadas. Tais sucessões, contudo, não ocorreram por conta do dinheiro que as movem ou de um caráter de imortalidade de sua dimensão física, mas por aquilo que possui, tal como qualquer expressão artística, de mais precioso. A sensibilidade de seus autores. Dos mais escandalosos e deslumbrados aos mais taciturnos e pessimistas.
Para cada batimento falho da Sétima Arte, há alguém para dar um choque lancinante capaz de levantar mais alguns suspiros de mais pura sensibilidade. De William Wyler a Claire Denis, de Yasujiro Ozu a Bela Tarr, de Chantal Akerman a Lemohang Jeremiah Mosese. Essa característica, todavia, não é fenômeno exclusivo dos filmes que incham festivais repetitivos mundo afora, uma vez que quaisquer dois minutos de Michael Bay e M. Night Shyamalan são profundamente mais sensíveis, a sua própria maneira, do que a ampla maioria dos premiados em Sundance ou de algo dirigido por algum dos queridinhos da terra das palmeiras. Um deles ganhou a maior delas esse ano, inclusive. Em contrapartida, James Cameron é alguém que, por intrmédio de suas megalomanias, parece compreender essencialmente o que é aquilo que faz alguém desejar pagar por um ingresso cada vez mais caro para assistir, por 192 minutos, a um mundo fictício tão dicotomicamente similar com o nosso planeta cada vez mais desigual.
Após mais de 10 anos daquela que viria a se tornar, e posteriormente perder o posto para um dos filmes de super-heróis estadunidenses, a maior bilheteria da história do cinema, Cameron parece cada vez mais interessado em recuperar a noção do cinema como uma experiência sensorial quase primitiva. Só que, ao invés da audiência fugir diante da iminente colisão do trem dos Lumière, maravilha-se quando prostada perante a diversidade de Pandora e a beleza de um mundo ameaçado por uma lógica econômica que almeja destruí-lo. Se, em 1896, as pessoas fugiram da morte iminente em uma sala escura, mais de 100 anos depois, observam boquiabertas o espelho de sua própria realidade desenvolver-se diante de seus olhos.
“Avatar: o Caminho da Água”, entretanto, está longe de buscar uma crítica política profundamente reflexiva, e usa dessa dimensão mais como uma forma de realismo capitalista do que qualquer elemento diferente. Seu autor, entretanto, estabelece curiosos parâmetros com a realidade ao, durante o desenvolvimento do filme, negar a insuportável verossimilhança e centralidade da narrativa com a qual a indústria cinematográfica se autoflagelou ao longo das últimas décadas. Tal qual Fukuyama, parece decretar, dessa vez no cinema, o fim da história, e o nome da obra do equivocadíssimo pensador é, de modo quase poético, seguido à risca por Cameron em sua nova empreitada.
É, entretanto, através da riqueza imagética que “Avatar” almeja perpetuar imagens capazes de despertar os mais distintos sentimentos em uma humanidade cada vez mais incapaz de enxergar seus arredores. Seja através de um domínio magistral da escala interna dos enquadramentos ou de um uso de grandes planos gerais que buscam ressaltar a insignificância dos humanos diante de uma natureza que almejam destruir, toda a dimensão formal da obra parece nos lembrar de possibilidades que são demonizadas no cotidiano. Seja quanto ao cinema, seja quanto à realidade.
Nessa lógica, por meio de uma decupagem que engloba tanto grandes planos abertos até close-ups inspiradíssimos, Cameron parece nos dizer para olharmos os nossos sem nos esquecermos do amplo mundo que nos cerca. E nesse sentido está o principal dos demônios de Jake Sully, agora atormentado por uma encruzilhada entre permanecer no local em que ama tanto ao ponto de abandonar sua própria espécie, ou proteger sua esposa e seus filhos, ainda que isso signifique renegar sua própria essência. Tal dilema é tratado de forma muito acertada ao longo da obra, em especial através da construção imagética e da forma como se dilui nos demais personagens, em especial seu filho mais jovem, Lo’ak. Além disso, a forma como a natureza do planeta é explorada pelo realizador só é magnânima em termos de impacto graças não só aos efeitos visuais, mas também ao extraordinário trabalho de som através da obra.
É justamente nesse sentido em que a obra demonstra sua maior força. Através dessa supervalorização do macro em detrimento de uma centralidade narrativa, é capaz de potencializar todos os méritos de um filme que busca levar a novos horizontes. Tanto para a própria franquia quanto para a experiência cinematográfica de fato. E é nesse ponto em que Fukuyama e Cameron se distanciam profundamente. Enquanto o cineasta compreende profundamente o que faz, e por isso renega frontalmente a noção de utopia, uma vez que, a cada momento no qual as situações se estabilizam, o antagonista ressurge das cinzas para infernizar o núcleo familiar central, o pensador é profundamente ingênuo ao ponto de crer que a ordem liberal cessaria os levantes e insurreições ao redor do globo.
É nesse ponto, entretanto, que os dois se reúnem pela falta. Enquanto o pensador peca pela falta de leitura (no sentido de diversidade) e assim tropeça em, como Jacques Derrida disse, uma noção ingênua de evangelho do capitalismo que explora e destrói incessantemente, Cameron é complacente para com esse na medida em que, nos momentos finais da obra, preocupa-se muito mais em abrir caminho para incontáveis sequências lucrativas do que em fechar uma conclusão para o Caminho da Água. Ainda que a batalha final no navio seja apoteótica, as incansáveis idas e vindas dos protagonistas e antagonistas acabam, no fim das contas, muito mais atuando como um elemento anticlimático do que uma ponte para futuros universos dentro de Pandora.
Ainda assim, “Avatar”, graças à sensibilidade de seu diretor, reafirma-se não só como uma das grandes forças cinematográficas do século XXI, mas apresenta um bem-vindo sopro de ar fresco no mercado de blockbusters americanos, ainda que em seus piores momentos se torne vítima dele. Curioso como, para livrar o cinema das garras, martelos e escudos tenebrosos de suas obras mais recentes, teve de se recuperar um universo que trouxe brilho para os olhos de crianças que se tornaram adultos que hoje gritam com imagens de super heróis. Um bom diretor, contudo, sabe melhor que ninguém que, para que se estabeleça o novo, é inevitável que se olhe com carinho para o velho. Seja ele Godard, Sganzerla ou ele mesmo.
Diego Alves é crítico de cinema.