Autobiografia de Bernardo Élis é corajosa e aborda inclusive a questão do suicídio
03 maio 2020 às 00h00
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Em “A Vida São as Sobras”, o escritor mostra seu apego à filosofia do suicida como forma solucionadora da problemática do ser
Mário Vasconcelos*
Especial para o Jornal Opção
Prezado Bernardo,
Acabo de ler essa sua autobiografia (“A Vida São as Sobras”, Editora Kelps, 228 páginas) e devo admitir que me identifiquei com você numa série de pontos.
Inicialmente, não sei se teria a sua coragem, ou tamanha coragem, de me despir de corpo e alma como você fez ao responder a todas as perguntas que lhe foram direcionadas pelo professor Giovanni Ricciardi. Mas, uma vez respondidas, pude me ver refletivo no mínimo nuns 80% delas.
Começo por lembrar nossas semelhanças: brancos, altos, compridos e mal-acabados, professores de Língua Portuguesa e Literaturas Brasileira e Lusitana, advindos do interior, pobres, tímidos (aqui acho que você sofreu mais do que eu), complexados com os dentes (nisso eu dei um jeito), sempre metidos a escrever (nesse ponto você me deixou no chinelo), alvos de diversas discriminações e vai por aí afora.
Veja, meu caro Bernardo, que escrevo com predomínio de verbos no presente, visto ser você um imortal, não apenas pela Academia Brasileira de Letras, mas acima de tudo por ter legado a nós, pobres mortais, tantas obras de arte na forma de seus escritos.
Tive o grande prazer de conversar pessoalmente com você em três momentos. Provavelmente deve não se lembrar, mas faço questão de citá-los: em 1969, recém-chegado a Goiânia e já iniciado no magistério, encontrei-o no então Instituto Rio Branco, na Rua 8, Centro, e, descobrindo minha paixão por nosso idioma, você me pediu opinião sobre um artigo que escrevera para o jornal “O Popular”.
Teci algumas considerações (veja que atrevimento o meu) e você ouviu com muita atenção, fazendo inclusive anotações sobre coisas que eu lhe disse; outra vez, quando eu já era consagrado como professor do Colégio Objetivo, tendo caído no vestibular da UFG seu conto “O Engano de Seu Vigário”, voltamos a nos encontrar e você inclusive ajudou nossa equipe na resolução das questões de texto, a convite do professor José Maria Souto, seu vizinho e amigo pessoal; e, por último, durante a exibição daquele filme “The Day After”, sobre a hecatombe provocada por explosão nuclear, numa sessão cultural promovida pelo Shopping Flamboyant.
Todavia, sem embargo (expressão que você adora usar), posso afirmar que continuei e continuo a encontrá-lo toda vez que leio suas coisas e em especial agora que me tornei membro do Instituto Cultural e Educacional Bernardo Élis dos Povos do Cerrado (Icebe), momento em que passei definitivamente a contemplar de perto a sua imortalidade.
Refletindo neste momento acerca de tantas declarações sobre si mesmo na obra “A Vida São as Sobras”, confesso ter ficado muito impressionado em vários momentos e poderia até me atrever à análise de algumas delas, porém seria querer muito se você próprio deixa claro que em verdade não gosta da vida e preferiu se desabafar por meio da literatura, que considera um recurso meio que irresponsável de driblar a existência. Diante disso, que ponderação mais profunda eu faria sobre sua psique? Prefiro calar-me e ficar é mesmo com sua autoanálise, numa forma de mergulho perdido na complexidade da alma.
Mas que me seja permitido aqui abordar, entre as muitas respostas dadas por você, o seu grande apego à filosofia do suicida como forma solucionadora da problemática do ser. Isso é chocante, meu amigo, e digno de admiração e perplexidade, pois como pode um imortal pensar, durante toda a existência, no processo mais imediato e infalível de se morrer?
Acho, todavia, que essa tese sua já me encabulara bem antes, desde quando juntos analisamos o conto “O Engano de Seu Vigário”, que tem um trecho no qual você escreveu: “A ciganinha desconfiou que a vida fazia com ela o mesmo que ela fazia com os outros — pura tapeação. E, heroicamente, ingeriu uma colherada de formicida tatu…”.
Lembra que, depois das respostas que nos ajudou a dar para as questões de texto em cima do referido conto, eu lhe perguntei o que pensava sobre o suicídio e você prontamente respondeu “que era o modo mais eficiente de fazer cessar as agruras da vida”?
Pois é, meu escritor, ainda bem que não se valeu de tal forma de sair da vida, para sorte nossa, seus fãs e admiradores, nem em “1972 ou 1973, como você próprio escreveu, naquele momento agudo de perseguições ditatoriais, quando resolvido a não aturar nenhum tipo de tortura, descosturou parte da bainha da barra da calça e dentro meteu uma gilete nova, o mesmo fazendo na manga do paletó, da camisa e no cós da cueca. Se o despissem, pelo menos a cueca sobraria e com a gilete ali existente você cortaria os pulsos ou as carótidas”.
Um grande abraço do professor e meio atrevido a escritor
*Mário Vasconcelos é professor e escritor