As nuances entre os processos mudancistas de Goiás, Minas Gerais, Brasil e Alemanha
04 dezembro 2022 às 00h00
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Jales Mendonça
Toda análise depende muito da comparação que se estabelece. No interessante livro intitulado “Rio 2º Distrito Federal: Diagnóstico da Crise Estadual e Defesa da Federalização” (Jaguatirica, 2021, 302 páginas), os organizadores da obra, professores Christian Lynch, Igor Souza e Luiz Ramiro Júnior, advogam a tese da transformação do Rio de Janeiro em um segundo Distrito Federal, nos moldes instituídos por alguns países como Alemanha e Chile.
Para justificar a implementação da medida, os pesquisadores apontam vários fundamentos, a exemplo da conexão entre a atual crise fluminense e a perda do título de capital brasileira em 1960, associada ainda à ausência, segundo eles, de “bônus, reparação ou compensação” ao Rio pela União. Em resumo, aduzem que “o governo federal também não previu à cidade do Rio de Janeiro qualquer espécie de indenização, nem simbólica nem financeira, pelo golpe mortal que lhe vibrava”. Ao longo do trabalho aparecem expressões que qualificam o Rio pós-1960 como “cidade devastada” e outras similares.
O Rio de Janeiro ainda hoje possui mais servidores públicos federais civis do que o Distrito Federal (259 mil no RJ contra 181 mil no DF)
Não obstante o suposto desamparo aludido, os próprios autores lembram que, mesmo após mais de seis décadas da efetivação da mudança, o Rio de Janeiro ainda hoje possui mais servidores públicos federais civis do que o Distrito Federal (259 mil no RJ contra 181 mil no DF), além de “ser a maior cidade-sede das Forças Armadas da América Latina”, acolhendo inúmeros militares do Exército, Marinha e Aeronáutica. Só a Vila Militar (bairro carioca) “tem mais de 60 mil conscritos”, registram.
Ademais, até hoje, mais de 1/3 dos órgãos da administração pública federal encontram-se sediados no Rio, bem como várias empresas estatais de grande porte como Petrobrás, Eletrobrás, BNDES e Eletronuclear.
No campo educacional, a Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), maior instituição federal do país, mantém-se na Cidade Maravilhosa e ninguém cogitou deslocá-la para Brasília, onde se construiu, como seria lógico e razoável, outro centro universitário de ponta, a Universidade de Brasília (UnB). De igual forma, o tradicional Colégio Pedro II permanece no mesmo lugar de sua fundação.
Sem embargo, na obra “As Lágrimas do Rio: O Último Dia de uma Capital: 20 de Abril de 1960” (Martins Fontes, 2012, 264 páginas), o historiador francês Laurent Vidal noticia, amparado por matéria veiculada no jornal “O Globo” de 12 de abril de 1960, que o presidente Juscelino Kubitschek assinara na época um decreto concedendo ao novo Estado da Guanabara (sucessor do antigo DF) “a soma excepcional de 3 bilhões de cruzeiros do orçamento da União para enfrentar os primeiros tempos (ele assinou o decreto diante de todos os representantes da Câmara [do DF]).”
Como já dito acima, toda análise depende muito da comparação que se estabelece. No caso em exame, os respeitados professores cotejaram a transferência brasileira de 1960 com o processo de reunificação alemã da década de 1990, onde a “pequenina” Bonn foi “regiamente recompensada” pela mudança para Berlim com o recebimento de “1,5 bilhão de euros e o direito de continuar a sediar dois quintos de todos os ministérios, que lá permanecem até hoje.”
Experiência mudancista de Minas Gerais
No entanto, quando a comparação é confrontada com a experiência mudancista de Minas Gerais, levada a efeito no início da República, vê-se que a condição carioca muda completamente de figura. Após reconhecer o Rio como a capital cultural e simbólica do Brasil, o cientista político Christian Lynch conclui que, para o RJ perder tal situação, “seria preciso acontecer com o Rio o cataclisma que aconteceu com Ouro Preto no final do século XX: perder a condição de capital, cair num abismo de decadência econômica e no completo esquecimento de tudo e de todos”.
Embora sentencie a situação de Ouro Preto como um “cataclisma” após a inauguração de Belo Horizonte, é sabido, porém, que toda a rede de ensino da antiga capital mineira foi preservada, notadamente a destacada Escola de Minas de Ouro Preto, objeto, aliás, de uma substanciosa pesquisa do historiador José Murilo de Carvalho. De mais a mais, o espaço urbano da outrora Vila Rica em 1897 já ostentava os serviços de abastecimento de água, coleta e tratamento de esgoto, energia elétrica e até mesmo transporte ferroviário.
Cidade de Goiás e a nova capital do Estado
Mas existe ainda um outro exemplo brasileiro não mencionado que merece atenção, até por inspirar a construção de Brasília, no dizer do presidente JK. Ele foi posto em prática na mesma unidade federativa onde o atual Distrito Federal encontra-se situado, ou seja, no Estado de Goiás. Na década de 1930 edifica-se a nova capital (Goiânia), sucessora da Cidade de Goiás (outrora Vila Boa), hoje patrimônio da humanidade.
A bem da verdade, se o processo mudancista representou para Ouro Preto, nas condições descritas acima, um “cataclisma”, talvez seja difícil encontrar um qualificativo adequado para a Cidade de Goiás. Isso porque, ao final, todos os servidores federais e estaduais foram transferidos para Goiânia, além da completa rede pública de ensino — a única existente no Estado à época —, inclusive o tradicional Lyceu de Goyaz criado em 1846 e a Faculdade de Direito. Ademais, os consulados também deixaram a cidade e ainda a unidade das Forças Armadas existente (2ª Companhia do 6º Batalhão de Caçadores do Exército), que incorporou-se ao comando superior aquartelado em Ipameri/GO.
Dos serviços públicos acima arrolados presentes em Ouro Preto, apenas o de energia elétrica existia na antiga capital goiana. O abastecimento de água e a coleta de esgoto só seriam efetivamente implementados nas décadas seguintes e o sonho do silvo do trem de ferro ecoando nos contrafortes da Serra Dourada nunca passou de uma imagem projetada nos mapas geográficos.
A realidade é que a transferência da capital da Cidade de Goiás para Goiânia ocorreu sem qualquer compensação ou indenização prometida
Muito embora a legislação (decreto nº 3.359, de 18 de maio de 1933) e até mesmo a Constituição Estadual de 1935 determinassem o amparo e a proteção à Cidade de Goiás, “resguardando-a da decadência”, a realidade é que a transferência ocorreu sem qualquer compensação ou indenização prometida, consoante extrai-se da simples leitura do decreto nº 1.816, de 23 de março de 1937 — a lei ordinária nunca foi aprovada definitivamente pela Assembleia Legislativa.
Guardadas as devidas proporções, resta evidente que a diferença entre a Cidade de Goiás e o Rio de Janeiro é abissal, até porque a compensação do governo federal à Cidade Maravilhosa afigura-se de caráter permanente, já que a presença de inúmeros servidores e órgãos públicos se protrai no tempo há mais de seis décadas, além da manutenção integral da rede educacional e da vigência de uma institucionalidade democrática durante o consulado de JK.
A mudança da capital ‘provocou a ruptura do tecido cultural antigo, urdido na velhice de dois séculos pregressos de história’ — Paulo Bertran
Em relação à Cidade de Goiás, a referida ausência de reparação, como seria humano e natural, gerou ressentimento nos vilaboenses. Como expressão dessa mágoa, Nice Monteiro Daher costumava sintetizar aos seus interlocutores que, a partir da transferência, a “Cidade de Goiás foi se desmanchando”, de acordo com o depoimento do médico Ademir Hamú. Eis, portanto, o mesmo sentido da lição ensinada pelo mestre Paulo Bertran: a mudança “provocou a ruptura do tecido cultural antigo, urdido na velhice de dois séculos pregressos de história.”
E é aí então que aportamos na contribuição do jurista e escritor Antônio Celso Ramos Jubé para assunto em baila. Ao apresentar publicamente o seu mais novo livro intitulado “Notáveis Vilaboenses”, Jubé, como é usualmente conhecido no meio intelectual de Goiás, joga luz nesse mencionado sentimento de insatisfação e sobressalto que assomou o espírito dos moradores da antiga capital ao verem o declínio da então bicentenária urbe fundada pelo bandeirante Anhanguera.
É o que se extrai, por exemplo, da leitura das biografias de Abner de Amur Curado, Alcide Celso Ramos Jubé e Francisco Ferreira dos Santos Azevedo (Professor Ferreira), sem prejuízo de permear, explícita ou subliminarmente, outras passagens do trabalho.
A rigor, a valiosa obra de Antônio Celso Ramos Jubé perfaz um conjunto de mais de meia centena de breves biografias de vilaboenses (de nascimento ou adoção). Apesar de o autor não explicar o critério de sua seleção, certamente pesou para a escolha das personalidades esquadrinhadas o prestígio e a credibilidade delas junto à sociedade, porquanto todas apresentam destaque em determinado segmento da vida social da antiga capital.
De igual modo, várias gerações se interagem nas páginas a seguir, desde o já mencionado consagrado Professor Ferreira (1875-1942) — talvez o mais vigoroso intelectual de Vila Boa até hoje — ao jovem e promissor advogado Rafael Fleury, nascido em 1990 e devotado à causa da cultura.
Diversos assuntos são extraídos das biografias, com destaque para aspectos históricos, geográficos, folclóricos, mas sobretudo genealógicos. A propósito, cumpre assinalar que passou da hora de Goiás (re)criar o seu Instituto Genealógico, dando assim continuidade aos densos estudos desenvolvidos por Jarbas Jaime, Claro Godoy e tantos outros.
Membro de tradicional família goiana, integrante do Instituto Histórico e Geográfico de Goiás (IHGG), atual componente do Conselho Estadual de Cultura, servidor aposentado do Tribunal Regional Eleitoral de Goiás (TRE/GO) e vivamente interessado pelo tema da genealogia, fica consignado, desde já, a sugestão para que o autor agregue pesquisadores à sua inquestionável liderança, considere a ideia e a faça sair do papel.
Desse modo, dará mais uma útil contribuição ao campo intelectual de nossa terra, ora reforçado com o lançamento de outra robusta obra que merece ser lida e detidamente analisada. Lembrando sempre, como dito no início, que toda análise depende muito da comparação que se estabelece.
Jales Guedes Coelho Mendonça é presidente do Instituto Histórico e Geográfico de Goiás (IHGG), doutor em História pela UFG, promotor de Justiça desde 1999 e autor do livro “A Invenção de Goiânia: O Outro Lado da Mudança” (Editora da UFG, 2018, 688 páginas.) É colaborador do Jornal Opção.
Nota da redação: o texto acima é o prefácio de Jales Mendonça para o livro de Antônio Celso Ramos Jubé.