As diversas vozes do universo inexplorado de José Saramago
19 março 2016 às 11h09
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No livro “Saramago Quase”, o professor Francisco Maciel Silveira reúne ensaios a fim de desvendar a primeira fase literária do Prêmio Nobel de 1998
“Se o homem é formado pelas circunstâncias, é necessário formar as circunstâncias humanamente”
Marx e Engels, em “A Sagrada Família” (1844)
Adelto Gonçalves*
Especial para o Jornal Opção
No prólogo que escreveu para “O Jardim de Caminhos que se Bifurcam” (1941), Jorge Luis Borges (1899-1986) refere-se à “escrita de notas sobre livros imaginários”, a uma época em que já havia publicado o conto “A Aproximação a Almotásim” (1935), que constitui um pseudo-ensaio ou uma resenha ou recensão de um suposto livro publicado em Bombaim três anos antes. Para “enganar” seus leitores e futuros estudiosos de sua obra, dotara o livro imaginário de um editor real e um prefácio que teria sido escrito por um escritor real, mas tanto o autor como o livro, seu enredo e detalhes de alguns capítulos eram de sua inteira invenção.
Mais de 70 anos depois, o professor Francisco Maciel Silveira, se não foi tão longe, lançou o livro “Exercícios de Caligrafia Literária: Saramago Quase” (Curitiba, Editora CRV, 2012), que segue nestas pegadas, pelo menos em parte, ao reunir ensaios que parecem ficções e que seriam de diferentes autores, todos preocupados em desvendar a obra ficcional e o teatro da primeira fase de José Saramago (1922-2010) como autor. Em outras palavras, o ensaísta recorre ao conceito de polifonia utilizado por Mikhail Bakhtin (1895-1975) no estudo da obra de Fiódor Dostoiévski (1821-1881) para reunir vozes e pontos de vistas conflitantes a respeito da obra saramaguiana.
São ensaios que analisam o universo ficcional de Saramago em seu período de formação (1947-1980), até aqui bem pouco estudado, que vai do romance publicado em 1947, “Terra do Pecado”, à peça de teatro “Que Farei Com Este Livro?” e ao romance “Levantado do Chão”, ambos publicados em 1980. Nesse período, como se sabe, o autor publicou ainda a prosa poética “O Ano de 1993”, de 1975, o romance “Manual de Pintura e Caligrafia”, de 1977, o livro de contos “Objecto Quase”, de 1978, e a peça de teatro “A Noite”, de 1979.
Para tanto, Maciel imaginou ensaístas fictícios para que cada um se ocupasse de um determinado livro saramaguiano daquele período. Por exemplo, o diplomata Manuel Pelourinho faz a crítica de “Terra do Pecado”; título que, por sugestão do editor, substituiria o anterior, “A Viúva”, dado originalmente pelo autor, utilizando uma linguagem polida, sempre preocupada em não ferir susceptibilidades, como um bom profissional da área de Relações Exteriores, “de punho de rendas e luvas de pelica” — como disse o próprio Maciel a Daniela Guedes, em entrevista publicada no site www.artedeescrever.com.br. O próprio Saramago comentou o ocorrido em sua autobiografia.
“Em 1947, ano do nascimento da minha única filha, Violante, publiquei o primeiro livro, um romance que intitulei A Viúva, mas que por conveniências editoriais viria a sair com o nome de Terra do Pecado.”
A obra “O ano de 1993” é discutida por Apolo Constantinos Jr., que seria astrônomo e antropólogo, enquanto o microempresário e latinista F. Kohm ocupa-se de “Manual de pintura e caligrafia”. Já José Roberto Jauss Iser, jornalista enófilo e gourmet, interpreta “Objecto Quase”, enquanto o encenador e crítico teatral Ângelo Ruzzante de Pádua discorre sobre a peça teatral “A Noite” e Legenda Vaz Est e Samir Savon, doutores em Letras pela Universidade de São Paulo (USP), estudam a fundo “Que Farei Com Este Livro?”, destacando o diálogo intertextual de Saramago com suas fontes. Por fim, o médico homeopata Romeu Raneman da Silva analisa o hermético romance “Levantado do chão”.
Como pode perceber o leitor, há aqui, para além dos nomes dos ensaístas fictícios, uma explícita ironia com suas profissões e modo de ver o mundo (e não só o mundo saramaguiano) e tentar reproduzi-lo em palavras. O sobrenome Jauss Iser, logo se percebe, trata-se de uma homenagem à famosa Estética da Recepção ou Teoria da Recepção, que propõe uma reformulação da historiografia literária e da interpretação textual. Como se sabe, o alemão Wolfgang Iser (1926-2007), professor de Literatura Comparada na Universidade de Konstanz, na Alemanha, e seu colega Hans Robert Jauss (1921-1997), igualmente alemão e professor na Universidade de Heidelberg, são os maiores expoentes da Teoria da Recepção, que fundamenta suas bases na própria crítica literária alemã.
Para intensificar o conflito, Maciel ainda tratou de inventar, ao final de cada ensaio, a seção “Cartas à Redação: Foro e Desaforo do Leitor” em que leitores, igualmente imaginários, interagem e discutem as formulações críticas aventadas pelos ensaístas fictícios.
“O dono do dinheiro é sempre o dono do poder, mesmo quando não aparece na primeira fila como tal. Quem tem o poder, tem a informação que defenderá os interesses do dinheiro que esse poder serve. A informação que nós atiramos para cima do leitor desorientado é aquela que, em cada momento, melhor convém aos donos do dinheiro. Para quê? Para que lhês demos mais dinheiro a ganhar. Servem-se de nós, e nós servimo-los a eles. […] A quem tudo isto deveria ser explicado, não era a você [Valadares], era a toda essa gente que anda na rua, que compra o jornal e o lê, e acaba por acreditar mais no que ele diz do que naquilo que os seus próprios olhos vêem. Abrir as janelas (aponta para a plateia: supõe haver ali uma parede, a parede invisível do palco, com janelas igualmente invisíveis) e gritar lá para fora esta verdade tão clara e tão bem escondida! (Pausa.) Com certeza, seria a primeira vez que a verdade sairia deste edifício. A única verdade possível.”
Trecho do livro “A Noite”, de 1979.
Causa Mortis
Dos relatos de “Objecto Quase”, Jauss Iser diz apreciar, sobretudo, “Cadeira”, que conta o trabalho de conspiração de um voraz e subversivo caruncho a roer o madeirame da cadeira em que, diariamente, assentava-se o ditador António de Oliveira Salazar (1889-1968), antigo professor na Universidade de Coimbra, que exerceu o mando com mão de ferro por quase meio século, em Portugal.
Obviamente, trata-se de uma alegoria, que procura reconstituir os últimos anos do patriarca celibatário (porque casado com a pátria, como dizia o discurso fascista da época) até a sua derrubada, que antecede em seis anos o fim da ditadura que leva o seu nome. Para o fictício Jauss Iser, o conto pode ser definido como “autópsia de uma queda” (ou de uma época?), ao registrar a causa mortis do salazarismo, ou seja, o acidente vascular-cerebral que levou o ditador para a cova e colocou o seu regime diante de um corredor que só chegaria de fato ao fim em 25 de abril de 1974 com a chamada “Revolução dos Cravos”.
Por aqui, o leitor já pode ter uma ideia do que encontrará neste livro. Recomenda-se apenas que esteja bem preparado e solidamente estruturado quanto aos conceitos literários, além de conhecer com alguma profundidade boa parte da obra saramaguiana porque, muitas vezes, não saberá se o que lê é do original saramaguiano ou inventado pelo estudioso de sua obra, tal a presença de fenômenos de intertextualidade. Com certeza, o Prêmio Nobel de 1998, José Saramago, o único da Literatura Portuguesa, não terá tido até agora um especialista tão conhecedor dos meandros, às vezes até enigmáticos, de sua obra.
O Autor
Professor titular de Literatura Portuguesa na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP, onde obteve os títulos de mestre, doutor e livre-docente, com trabalhos em torno da oratória sagrada dos padres António Vieira (1608-1697) e Manuel Bernardes (1644-1710) e da comediografia de António José da Silva (1705-1739), de alcunha “o Judeu”, Francisco Maciel Silveira é crítico literário, com ensaios e resenhas publicados em periódicos do Brasil e do exterior. Poeta, ficcionista, dramaturgo e ensaísta com mais de duas dezenas de prêmios, Maciel atua na docência, pesquisa e orientação com ênfase no Classicismo, Barroco, Realismo e Teatro Português.
Maciel é autor dos livros de contos “Esfinges” (1978) e “A Caixa de Pandora: Aquela que nos Coube” (1996) e de poemas “Macho e Fêmea os Criou, Segundo a Paixão…” (1983), além de outros ainda na gaveta. Nas áreas didática e ensaística, publicou ainda “Português para o Segundo Grau” (1979; 5ª ed. 1988); “Aprenda a Escrever” (1985; 2ª ed. 1989); “Padre Manuel Bernardes — Textos Doutrinais” (1981); “Poesia Clássica” (1988); “Literatura Barroca” (1987); “Concerto Barroco às Óperas do Judeu” (1992); “Palimpsestos — Uma História Intertextual da Literatura Portuguesa” (1997; 2ª ed., 2008); “Fernando Pessoa(s) de um Drama” (1999); “Ó Luís, Vais de Camões?” (2001; 2ª ed,. 2008); “Saramago — Eu-Próprio o Outro?” (2007); “Eça de Queiroz: O Mandarim do Realismo Português” (2010); e “Canteiro de Obras” (2011). É responsável pelo site “Pinceladas”, onde discorre sobre a pintura alheia: http://www.pinceladas-fms.com.br.
*Adelto Gonçalves é doutor em Literatura Portuguesa pela Universidade de São Paulo (USP) e autor de diversas obras.