Simone Athayde

Especial para o Jornal Opção

São relativamente raros os livros que, lidos uma segunda vez, encantam mais e revelam ao leitor novas perspectivas. Tal é o livro “Histórias da Terra e do Mar” (Assírio & Alvim, 129 páginas) da escritora portuguesa Sophia de Mello Breyner Andresen, que se trata de um compilado de cinco histórias escritas pela autora entre as décadas de 60 e 80.

Um primeiro aspecto que chama atenção nessas histórias é que a autora utiliza bastante o tipo descritivo, sendo que dois dos textos, segundo atesta o prefaciador da obra, nem podem ser chamados exatamente de contos, visto que “quase nada acontece”, ou seja, não se desenvolve um enredo com começo, meio e fim. O problema das descrições é que, se feitas de uma forma convencional, podem tornar a leitura tediosa, mas isso não acontece nos textos da autora, pois ela as constrói com rico uso de metáforas, personificações, paradoxos e comparações, o que torna a escrita agradável de se ler.

Se fosse somente pela linguagem bem construída, já seria um motivo para se ler o livro, mas o ponto forte da obra é como essa linguagem se configura para formar as belíssimas histórias que a compõem, das quais destaco “A História da Gata Borralheira” e o magistral “Saga”. No primeiro, temos uma releitura do conto de fadas “Cinderela”, no qual podemos identificar personagens e situações que apresentam características daqueles do conto original, e no qual um baile e o famoso sapato também têm um papel crucial, mas tais elementos estão num arranjo novo no qual prevalece um tom dramático. A protagonista, Lúcia, na história de Andresen, é uma moça pobre cuja tia, uma mulher rica e sem empatia, a leva a um baile para apresentá-la à sociedade, mas a faz usar um vestido feio e fora de moda. Para piorar a situação, Lúcia não tem sapatos de salto e tem que se conformar em calçar velhos e largos sapatos que encontra no porão de casa. 

Sophia de Mello Breyner Andresen: poeta lusa | Foto: Reprodução/Comunidade Cultura e Arte

O conto tem dois vieses importantes: a crueldade da sociedade burguesa, que humilha alguém pela roupa que veste, e a mudança na percepção da jovem Lúcia que era relativamente feliz até ser confrontada com esse mundo de luxo, poder e riqueza, o que a faz se sentir inferior, desdenhosa e ansiosa por transcender sua condição humilde. Inebriada pela vontade de pertencer a esse mundo e humilhada por duas jovens ricas de vestidos maravilhosos, Lúcia não percebe as sutis advertências feitas pelos dois únicos personagens que não parecem pertencer àquele mundo cheio de malícia e soberba. Uma moça que a trata com empatia lhe diz: “Sabe, não sabemos ao certo o que querem os maus reflexos, os maus olhares, as más palavras. Talvez a perdição da nossa alma. E temos que manter a nossa alma livre.” 

E o rapaz, talvez a releitura do príncipe da história original, parece alertá-la para como aquela vida “deslumbrada”, mesmo que pareça ser a “verdadeira vida”, traz o “pressentimento de que vamos nos despistar, nos vamos distrair, nos vamos enganar e não vamos nunca ser capazes de reconhecer e agarrar essa vida que é a nossa verdadeira vida.”

Por três vezes, Lúcia, para se esquivar do olhar zombeteiro das jovens ricas, tenta se esconder em salas reservadas, mas sempre há nelas espelhos, que aparecem para mostrar a ela sua inferioridade, são como símbolos do seu problema de identidade, do desajuste. É triste ver como a personagem desenvolve um ódio por si mesma a partir do olhar dos outros, algo tão universal e atual em tempos de internet.

O conto atravessa um período de vinte anos e ao final dele aparece um outro personagem, com um quê de místico. Ele afirma que “viver é escolher” e vem cobrar de Lúcia o “preço do mundo”. São nessas nuances entre o escrito e as leituras que dele depreendemos, entre o desejo da protagonista e o que ela alcança de verdade, que está a grandeza do conto.  Por exemplo, é muito simbólico que Lúcia, mesmo odiando o vestido do seu primeiro baile, o guarde por muitos anos e de vez em quando o pegue com intenção de queimá-lo, mas nunca o faz, o que pode representar as mágoas que inutilmente guardamos ou a nossa impossibilidade de perdoar e esquecer acontecimentos do passado.

Já o conto “Saga” é também simbólico, belo do começo ao fim e cheio de paradoxos. Conta a história de Hans, um menino que vive na ilha nórdica de Vig e que tem o sonho de ser marinheiro, assim como os seus antepassados, mas esse sonho está proibido de se realizar pelo pai que, após perder dois irmãos num naufrágio, ficou para sempre traumatizado. Mas a paixão de Hans é tão grande por esse destino que um dia ele foge num navio, torna-se proscrito pelo pai e depois de passar por algumas atribulações consegue seu intento de ser capitão. O problema é que Hans, mesmo alcançando seu sonho, acaba por trocá-lo por outro caminho não escolhido, mas que lhe é ofertado por seu protetor, uma espécie de pai de adoção. Ou seja, se antes, na adolescência, o menino rebelou-se contra a vontade autoritária do pai que queria que ele estudasse “medicina, leis ou engenharia”, carreiras tradicionais e seguras, Hans deixa-se levar docilmente para uma vida na qual se torna homem de negócios.

A vida de Hans passa por três viradas. Na terceira, já como um homem rico e influente e não mais o marinheiro que sempre desejou ser, compreende que “como todas as vidas, a sua vida não seria mais a sua própria vida, a que nele estava impaciente e latente, mas um misto de encontro e desencontro, de desejo cumprido e desejo fracassado […] e que suas grandes vitórias seriam as que não tinha desejado e que, por isso, nem sequer seriam vitórias.”

Este conto tem também algo de biográfico, pois um antepassado da escritora veio da Dinamarca para Portugal e se estabeleceu no Porto como homem rico e dona de uma grande quinta.

A tragédia e o destino são elementos comuns aos textos do livro, e nesse ponto, tanto em “Saga” quanto em “A história da Gata Borralheira” a tragédia mais marcante não é a da morte, mas a da vida não vivida, aquela que acontece pelas escolhas erradas e pelas “distrações” que nos tiram do caminho certo. A impossibilidade de viver a vida sonhada e de fazer escolhas de acordo com o que nos pede a alma é talvez um dos grandes dramas humanos, e nos contos a mão do destino aparece como um fator contra o qual nada podemos fazer.

Em “Saga” outra interpretação possível é a do poder castrador dos pais sobre as escolhas dos filhos, pois ao tentar dar a eles um caminho mais “seguro”, acabam por tolher a individualidade deles.  O filho só seria aceito se fosse o que o pai esperava dele, e o pai, que tinha tanto medo de que o filho morresse num naufrágio, acaba por matá-lo simbolicamente ao nunca mais querer vê-lo. A presença de três naufrágios nessa história é uma alegoria dos naufrágios de nossos sonhos, e aí vale uma comparação com o poema “Canção”, de Cecília Meireles, que também trata de sonhos destruídos, desfeitos pela própria pessoa que os sonhara, também um texto magnífico, triste e trágico em toda sua concepção.

A autora parece nos mostrar que a saga humana seria cada um realizar o chamado da sua alma no tempo que lhe é dado, mas é nessas distrações da vida, nos descuidos, que nos desviamos. Num certo ponto, já idoso, Hans se apercebe de que não compareceu à própria vida. “E não sabia bem como tanto se atrasara, encalhado em hábitos, azaferes e demoras sem jamais surgir, assomar, à proa do navio, no horizonte de Vig”. Outra leitura possível é a que não é no acúmulo de riquezas e de bens que encontramos a felicidade.

Os outros contos do livro são mais curtos e diferentes na estruturação. No conto “O Silêncio” temos novamente a presença de um paradoxo narrativo, no qual, apesar da aparente harmonia, ordem, limpeza e paz de uma casa, no exterior prevalece a feiura e a ruína de um mundo imperfeito, e haverá um instante em que esses dois mundos entrarão em contato, trazendo um conflito para a dona da casa.

Já em “Vila D’Arcos” e “A casa do Mar” o texto descritivo predomina, mas como foi dito antes, não é um texto descritivo comum, conforme atesta o seguinte fragmento: “A casa está construída na duna e separada das outras casas do sítio. Esse isolamento cria nela uma unidade, um mundo. O rumor das ondas, o perfume do sal, o vidrado da luz marinha, o ar varrido de brisas e vento, a cal do muro, os nevoeiros imóveis, o arfar ressoante do mar estabelecem em seu redor grandes espaços vazios, tumultuosos e limpos onde tudo se abre e vibra. A casa é construída de pedra e cal e a sua frente está virada para o mar.”

A beleza da descrição poderá lembrar ao leitor a famosa história sobre o anúncio escrito por Olavo Bilac para um amigo que queria vender uma chácara e ao ver a linda descrição realizada por Bilac desiste da venda ao perceber a joia que possuía. A escrita de Andresen, escritora pouco conhecida no Brasil, primeira mulher portuguesa a ganhar o prêmio Camões de Literatura, é isso, uma joia rara, no estilo e no conteúdo, oferecida gentilmente a nós, seres humanos.

Simone Athayde, escritora e crítica literária, é colaboradora do Jornal Opção.