A arte entre o grotesco e o sublime, entre o assustador e o fofinho
09 abril 2016 às 13h24
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As obras da australiana Patricia Piccinini impressionam pela contraditória mistura de realismo e irrealidade
Cezar Santos
O pai deu meia volta assim que se deparou com a primeira escultura, denominada “O tão esperado”, uma criança adormecida em cima de uma criatura híbrida de gente e bicho compósito de sereia e macaco. O receio era que os dois filhos pequenos, de 1 ano e meio e de 7 anos, se assustassem e tivessem pesadelo à noite. Eles estavam visitando a mostra “Com-Ciência”, da artista plástica australiana Patricia Piccinini, no Centro Cultural Banco do Brasil do Distrito Federal, no feriado da Páscoa (o evento terminou na segunda-feira, 4).
Talvez o receio daquele pai tivesse certa razão de ser. As imagens “piccininianas” são mesmo estranhas, capazes de provocar sonhos em mentes mais imaturas ou impressionáveis. As esculturas, pinturas em quadro, instalações, filmetes e áudios da artista causam estranheza e desconforto, pelo menos no início.
Depois, à medida que se vai acostumando, vem a empatia. O que se vê são monstros, seres alados, objetos inanimados dotados de uma estranha biologia em contato sereno, tranquilo, com crianças normais ou quase. Muitas das obras são marcadas pela interatividade entre seres estranhos e gente.
Patricia Piccinini trabalha artisticamente o conceito das mutações genéticas, utilizando-se de uma linguagem do realismo, mostrando figuras mutantes de sereias com rinocerontes, peixes com elefantes, tartaruga com baleia, aves com sapatos. Objetos inanimados prenhes de vida, com duas motonetas abraçadas em êxtase idílico, como um casal em pleno ato sexual.
Essas figuras têm tudo para serem horríveis, mas, contraditoriamente, saltam “fofinhas” aos nossos olhos. Os bichos têm olhos inocentes e doces, como pets. São representações do que existiria se fôssemos capazes de criar máquinas com genes (ainda não, mas estamos caminhando celeremente para isso). É a mecânica orgânica, referida pelo curador da mostra, Marcello Dantas, no folheto de divulgação.
Patrícia trabalha com imagens do nosso inconsciente. Criança — e todos fomos crianças um dia, não é mesmo? — tem medo do escuro. Não exatamente do escuro, mas do que pode estar escondido nele. É o que a artista australiana modela: os bichos estranhos no escuro dos nossos medos infantis.
Repulsa e atração
As criaturas de Patricia Piccinini são desconhecidas, mas palpáveis e surpreendentemente afetuosas, amistosas, graciosas até. Ao nos aproximarmos delas, passado o estranhamento e a repulsa inicial, a vontade é de tocar a textura da pele daqueles seres.
Na plateia, a psicóloga Rosana Moura disse que os personagens com modificações genéticas nos colocam diante da situação de estranheza e de curiosidade. “Os olhares são carregados de expressões de doçura, independente da forma manifestada, o que atrai a atenção para olharmos mais uma vez. Somos solicitados a encarar o amor manifesto, independente da forma, ou principalmente pela forma tão estranha aos nossos olhos.”
A psicóloga observou aspectos da sexualidade em certas peças que lembram vaginas, ânus, sacos escrotais, em detalhes que convivem com outras características humanas, ou não, de forma a ter uma totalidade. “Chocante ou não, faz pensar os preconceitos que temos com os iguais, montando a possibilidade de convivência terna entre diferentes.”
De fato, as peças mexem com a emoção de quem as vê. Em entrevista ao Estadão, a artista disse que a questão emocional é fundamental em sua obra: “É através da emoção que nos engajamos em algo”.
O nome da mostra, “ComCiência”, é um neologismo que carrega sentido duplo, conectando consciente e ciência. Patricia Piccinini é uma estudiosa da engenharia genética e da biotecnologia. Ela cria esculturas gigantes de criaturas bizarras e seres humanos usando fibra de vidro e silicone, cabelo humano, roupas, pele de bicho e outros materiais.
O trabalho da artista tem semelhança com o de seu conterrâneo Ron Mueck, na mistura de hiper-realismo e surrealismo. O estranhamento que Mueck provoca advém do hiper-realismo e das dimensões exageradas de seus modelos, mas Patricia Piccinini dá um passo além na surrealidade de suas figuras.
Entre as obras exibidas estiveram “Big Mother”, um bicho enorme que se assemelha a uma macaca e amamenta um bebê; “The Comforter”, uma menina coberta de pelos, e “The Observer”, um curioso menino que observa o mundo do alto de uma pilha inclinada de cadeiras, num equilíbrio precário.
A mostra promovida pelo Banco do Brasil esteve em São Paulo e Brasília. Certamente deve ir aos dois outros CCBBs, no Rio de Janeiro e em Belo Horizonte. Para quem puder conferir pessoalmente, é uma rica experiência.