Segundo longa de ficção de Kleber Mendonça Filho vale mais que a polêmica política que o está alavancando nas bilheterias

Sonia Braga ilumina a tela em “Aquarius”, interpretando a jornalista aposentada Clara | Foto: Divulgação
Cezar Santos
Antes de começar a sessão de pré-estreia do filme “Aquarius”, em Goiânia, na noite de quarta-feira, 7, no Lumiére Bougainville, ouviu-se um “fora, Temer”. Era a senha que acompanha essa obra com o acirramento de ânimos na política brasileira. Também ouviu-se um “fora, Dilma”. E por mais que gritem, Dilma já era, foi tirada do poder pela lei e pela Constituição, mesmo que gente como o bandido Eduardo Cunha tenha sido instrumento para tanto.
Cessados os gritinhos, começa o filme, o mais recente trabalho do pernambucano Kleber Mendonça Filho, uma das maiores revelações do cinema brasileiro nos últimos anos. O tom de seu trabalho é o toque fundo nas feridas da classe média brasileira. O que ficou evidente já em seu primeiro longa de ficção, “O som ao redor”, de 2012, um retrato agridoce da classe média brasileira e seus problemas, como o medo da violência, relação com empregados, solidão em família, consumo de drogas no sacrossanto lar, briga entre vizinhos, etc. Numa chave que o próprio diretor chamou de “realismo mundano”, ele traça um painel do Brasil com famílias de uma rua de Recife, com suas misérias e grandezas.
Agora, com “Aquarius”, Mendonça repisa o tema, em tom menor. O alvo dessa vez é a especulação imobiliária. Os construtores, incorporadores e empreiteiras são os vilões, e o mocinho, no caso, a mocinha, é a jornalista aposentada Clara, vivida por Sonia Braga. Clara se recusa a vender seu apartamento em um prédio antigo, de dois andares. O problema é que o prédio tem excelente localização, na valorizadíssima praia de Boa Viagem, no Recife. Local excelente para se construir mais um espigão com centenas de caros apartamentos.
A construtora compra todos os apartamentos do lugar, menos o de Clara, que resiste às generosas ofertas — ela não tem problemas financeiros; antes de enviuvar, fez com o marido um bom patrimônio. A resistência carece um tanto de lógica. Presa às reminiscências da vida, Clara se apega a um capricho. Ouve discos de vinil – muita gente hoje em dia “curte” vinis e, por isso, se arroga o reconhecimento de cool, descolado.
O entrecho dramático se dá na falta de lógica de uma mulher já idosa — a fabulosa beleza de Sonia Braga com seus 66 anos de idade nos leva a relevar esse dado — que faz questão de não perceber que não tem sentido morar sozinha num prédio sem segurança, sem elevador. Como se não bastasse, para infernizar a vida da moradora resistente, a construtora cede os outros apartamentos para festas de suruba e cultos evangélicos – sexo e religião a serviço da calhordice.
O filme é construído nesse embate e a vida de Clara é exposta aos poucos. Mãe de três filhos adultos — um deles gay às voltas com amores de ocasião —; sobrevivente a um câncer de mama; ainda ardente de desejo sexual que às tantas contrata os carinhos de um garoto de programa; à espera de um amor maduro que não virá… Clara se apega ao seu apartamento e às memórias de um tempo que não voltará, ouvindo seus vinis.
O jornalista Jerônimo Teixeira, de “Veja”, em sua resenha, faz uma observação interessante ao destacar o caráter conservador da personagem central e do próprio filme, pois nada do que acontece com Clara tem o dom de transformá-la. “Do início ao fim, Clara é sempre a mesma rocha impenetrável, que resiste. Contra o quê, afinal?”
A imutabilidade da personagem faz com que os fatos girem em falso, como um parafuso espanado. Nada do que acontece vai mudar Clara. Consequência é que o filme de duas horas e 20 minutos se arrasta em muitos momentos. Um probleminha de ritmo se evidencia — menos uns 20 minutos não daria nenhum prejuízo à dramaturgia da obra.
Mas a presença forte de Sonia Braga ilumina a tela. A atriz, hoje uma abstêmia radical assumida, preocupadíssima com o que come, exala saúde, graça e beleza, para além da carnalidade da “tigresa de unhas negras e íris cor de mel” de outrora.
A discussão proposta por “Aquarius” é válida. A especulação imobiliária é uma praga e invectivar contra ela é uma bandeira que facilmente angaria aplausos. O problema é que o maniqueísmo não explica tudo e uma questão não é tocada pelo filme, num país em que a população urbana é crescente, notadamente nas grandes cidades: onde vão morar os novos casais e seus filhos? Predinhos de dois andares não serão suficientes, por certo.
Diretor se revela exímio marqueteiro

Colocar elenco para protestar contra um “golpe” foi pura marquetagem de Kleber Mendonça
“Aquarius” permitiu a Kleber Mendonça Filho, crítico de cinema e jornalista, se revelar um oportuno marqueteiro. Foi marquetagem pura colocar seu elenco para exibir cartazes denunciando um suposto “golpe”, em referência ao processo de impeachment de Dilma Rousseff, em Cannes, em maio — por sinal, não ganhou nada, quando a ufanista imprensa brasileira dava de barato que traria pelo menos umas 15 premiações.
Mendonça sabia que a jogada nas escadarias do Grand Théatre Lumiére, em Cannes, teria destaque na imprensa, como realmente teve. E isso seria bom para a bilheteria, como realmente está sendo. Sacramentado o impeachment, o discurso de golpe micou, mas as “viúvas” de Dilma têm um consolo ideológico no filme.
Para muita gente, ver “Aquarius” é um ato de protesto, quando na verdade o filme merece ser visto pelo que propõe, pela obra artística que é, embora não tão boa quanto “O Som ao Redor”, um filme excepcional, que lembra Robert Altman, principalmente o Altman de “Short Cuts”. O segundo longa de ficção de Kleber Mendonça atesta o talento do diretor, que é também o roteirista — “… o melhor roteiro que já li na minha vida”, disse Sonia Braga.
Se em “O Som ao Redor” o elenco brilha, em “Aquarius” Sonia “engole” os colegas, é praticamente um filme-solo para ela. Mas há que se destacar o talento excepcional da brasiliense Maeve Jinkings, que faz Ana Paula, filha de Clara, vivendo uma mãe recém-separada, atônita pelo encargo de criar o filho sem o companheiro e seguir em frente, principalmente como profissional.
Maeve, que em “O Som ao Redor” rouba a cena como uma mãe de família entediada, que se compraz na maconha e na masturbação, atormentada pelos latidos do cachorro do vizinho, dá intensidade dramática na medida exata nas cenas que lhe cabem em “Aquarius”.
O filme, independentemente do viés ideológico marqueteiro que Kleber Mendonça o embalou fora das telas, serviu também para confirmar o diretor pernambucano como um dos mais interessantes cineastas brasileiros de sua geração. Vale ser visto, mesmo que se tenha de ouvir os gritinhos de “Fora, Temer” antes e depois.
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