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O documentário “Apocalipse nos Trópicos”  da diretora Petra Costa, narrado com apelo simbólico, propõe uma visão crítica e histórica da instrumentalização religiosa como tecnologia de poder no Brasil contemporâneo. 

Seu mérito, alheio a questões ideológicas, que não interessa a este artigo, reside na análise do fenômeno neopentecostal e na revelação de arquétipos do imaginário religioso – particularmente a narrativa apocalíptica – que terminam ressignificados em projetos políticos concretos e lamentáveis. A presente reflexão articula as teses da produção com uma análise histórico-comparativa dos fundamentalismos religiosos, demonstrando como a fé, enquanto tecnologia de poder, segue padrões recorrentes ao longo da civilização ocidental.

A história do povo hebreu revela o primeiro grande modelo de religião como marcador identitário político. Os eventos macabeus (167–160 a.C.) ilustram como a resistência religiosa pode se transformar em projeto nacionalista. Como bem observado no livro, esse padrão se repete hoje quando movimentos evangélicos brasileiros constroem uma narrativa de “cristianismo ameaçado”, instrumentalizando-a para fins políticos.

A expansão do Islã nos séculos VII–VIII demonstra como uma cosmovisão religiosa pode se tornar projeto imperial. 

Hoje, o conceito de uma (comunidade de fiéis) transcenderia fronteiras étnicas, antecipando em séculos a suposticia “transnacionalização evangélica” – fenômeno visível na atuação de igrejas brasileiras, inclusive na África e outros locais no exterior.

Na Grécia antiga, por exemplo, se revelava um paradoxo: uma sociedade que produziu o pensamento racional mais sofisticado de sua época mantinha uma religião estritamente vinculada à polis. O julgamento de Sócrates por “impiedade” (399 a.C.) ecoa nas contemporâneas “cruzadas morais”, onde discursos de defesa da tradição mascaram disputas por hegemonia cultural com finalidades de poder temporal.

A Idade Média cristã representou o ápice da institucionalização religiosa do poder. A Inquisição (séculos XII–XV), frequentemente mal compreendida, foi menos sobre fé do que sobre controle social – mecanismo que Apocalipse nos Trópicos detecta na atual produção de “inimigos morais” pela bancada religiosa brasileira, o que corroboramos, longe de nos vincular às ideologias da direita ou da esquerda com os seus temperamentos polarizados.

Apocalipse nos Trópicos nos faz lembrar que, assim como os teólogos medievais desenvolviam sofisticados sistemas doutrinários para justificar o status quo, hoje think tanks evangélicos produzem intelectuais orgânicos que traduzem o dogma em linguagem política aceitável no espaço público secular.

A produção demonstra como o neopentecostalismo brasileiro opera em duas frentes: enquanto mantém um discurso escatológico para as massas, desenvolve uma atuação pragmática nos corredores do poder. Essa dualidade lembra a atuação dos papas renascentistas, que combinavam discurso espiritual com cálculo político refinado.

O documentário revela como megairgrejas brasileiras criaram verdadeiros impérios midiáticos e financeiros. Esse fenômeno encontra precedentes históricos nas ordens mendicantes medievais que, pregando pobreza, acabaram por controlar vastas riquezas – mostrando a perene tensão entre ascetismo e acumulação na história das religiões.

A produção nos oferece mais do que uma análise do presente; fornece uma chave hermenêutica para entendermos a recorrência histórica de determinados padrões. Desde os zelotes judaicos até os telepastores brasileiros, passando pelos inquisidores medievais, o que vemos não é a mera repetição, mas a contínua ressignificação da fé como:

1. Dispositivo de identidade em tempos de mudança acelerada

2. Instrumento de disciplinamento social

3. Capital simbólico conversível em poder político e econômico

A grande questão levantada – e que permanece em aberto – é se as sociedades secularizadas serão capazes de desenvolver anticorpos contra a instrumentalização política do sagrado, ou se assistiremos a novas encarnações desse eterno retorno.

Subscrevo este artigo como iniciado numa faculdade de Teologia, divisando o Cristo numa visao cristã espírita.  Há quem tenha afirmado que Jesus foi um preso político que terminou crucificado (não para salvar com o seu sangue aqueles que não quiseram se salvar, renunciando a si mesmos e carregaram a sua própria cruz), mas como vítima do poder politico do Templo de Salomão, hoje delicado em São Paulo.

Dizia Ghandi: “Apedrejar profetas e mais tarde erguer templos em sua memória tem sido a prática da humanidade durante eras. Hoje adoramos o Cristo, mas o Cristo encarnado, nós o crucificamos”.

E para tantos presos ao fanatismo político-religioso, diria Castro Alves no poema O Século:

“Como o Cristo, a liberdade sangra no poste da cruz”.

Crucificado em novo Apocalipse ao tropical modelo brasileiro.