Buscando reagir à “perda de qualidade” na poesia brasileira, observável na passagem da geração de 1930 para a geração de 1945, o Concretismo revelou-se um movimento catastrófico

Haroldo de Campos (1929-2003) é um dos poetas da tríade concretista, completada por seu irmão Augusto de Campos, e por Décio Pignatari | Foto: Divulgação

“Quando um poeta vem ajudar o sonhador, renovando as belas imagens do mundo, o sonhador alcança a saúde cósmica.”

Gaston Bachelard, A poética do devaneio

Bernardo Souto
Especial para o Jornal Opção

Guardadas as devidas proporções, a produção poética da chamada Geração de 1930 da Literatura Brasileira representa para o nosso país mais ou menos o que o Siglo de Oro representou para a poesia de Espanha. É que, se no Siglo de Oro de la Poesía Española (≅ 1492 – ≅ 1681) surgiram poetas da grandeza de Francisco de Quevedo, San Juan de la Cruz, Luis de Góngora, Lope de Vega e Calderón de la Barca; em terras tupiniquins, ao longo da década de 1930, também produzimos bardos de valor universal, tais como Carlos Dru­mmond de Andrade, Cecília Meireles, Jorge de Lima e Murilo Mendes (e ainda poderíamos acrescentar o nome de Manuel Bandeira, que, a despeito de ter publicado o seu primeiro livro em 1917, espiritualmente possuía muito mais afinidades estéticas com ideário da 2ª fase do Modernismo Brasileiro). Em nenhuma outra época de nossa Literatura houve tão rica floração de escritores. Em nenhuma outra época a poesia brasileira foi tão respeitada no exterior – e isto é ponto pacífico entre os nossos críticos literários, sejam eles de matriz mais conservadora, sejam de matriz mais progressista.

Já a Geração de 1945, que pretendeu amalgamar o academicismo beletrista e estetizante dos neoparnasianos e penumbristas da década de 1910 ao lirismo existencial – uso tal termo, já bastante deturpado, por falta de outro melhor – de feição rilkeana, não obteve o mesmo êxito da geração anterior, visto que não conseguiu alcançar nem a densidade metafísica do Jorge de Lima do tríptico bíblico (Tempo e Eternidade, A Túnica Inconsútil e Anunciação e Encontro de Mira-Celi), nem se ombrear à maestria técnica de uma Cecília Meireles ou de um Manuel Bandeira como verse-makers, como fabbri di versi (artesãos do verso). É evidente que a floração de 45 produziu alguns poetas verdadeiramente fortes, tais como Mauro Mota, Afonso de Gui­marães Filho, Joaquim Cardoso, Carlos Pena Filho, e mais dois ou três. Mas o fato é que, salvo João Cabral de Melo Neto – que se opôs diametralmente às principais bandeiras do famoso Programa de Fernando Ferreira de Loanda, sendo antes influenciado por Augusto dos Anjos, Jorge Guillén e Drummond –, não há no grupo de 45 vates de grande repercussão mundial. Pelo menos não com a mesma repercussão de um Drummond (que já foi traduzido para mais de treze idiomas) ou de um Murilo Mendes (já vertido para o francês, para o espanhol, para o inglês, para o romeno e para o italiano). Mendes, inclusive, era tido por Giuseppe Ungaretti – considerado, ao lado de Eugenio Montale, o maior poeta italiano do séc. 20 – como um poeta de grande talento.

Foi basicamente contra essa perda de qualidade na poesia brasileira que o Concretismo tentou reagir. O resultado, porém, foi catastrófico.

O poeta e ensaísta anglo-americano T.S. Eliot asseverava que uma das características da grande arte é transpor o filtro do tempo. E não há dúvida de que o Concretismo não o transpôs, pois que é um movimento completamente datado e já superado. Uma estética que elegeu o puro e simples ludismo verbal como principal bandeira, desprezando por completo a dimensão ontológica, transcendental e simbólica do texto poético – sem a qual, segundo ensaístas da magnitude de Ches­terton, Dilthey, Heidegger, Ba­chelard, Emil Staiger, Otto Maria Carpeaux, Benedetto Croce, Roger Scruton, Ângelo Monteiro, Olavo de Carvalho e Bruno Tolentino, a poesia se torna inócua –, não poderia mesmo sobreviver por muito tempo. O que mais surpreende, no entanto, é que até mesmo Haroldo de Campos, líder máximo do movimento, admitiu isto:

“Eu passei do Concretismo, propriamente dito [ver ‘Plano-Piloto para Poesia Concreta’], do pró-concreto, como experiência de limites [ou seja, como projeto vanguardista], à ideia de concreção, uma ideia de que todo poeta, digno desse nome, de qualquer literatura e de qualquer período literário sempre será um poeta da concreção.” (“Programa Roda Viva”, 1996)
Ainda mais surpreendente que a declaração de Haroldo de Campos, no entanto, é a insistência de alguns subcríticos e subpoetas, que, contrariando a lógica e o bom senso, superestimam uma diretriz estética já renegada até mesmo pelo seu sumo mentor. É que, inexplicavelmente, o Mo­vimento Concretista continua a ser supervalorizado nas nossas universidades, sendo inclusive objeto de inúmeras dissertações de mestrado e até mesmo de teses de doutoramento.

Ora, não é preciso ser um profundo co­nhecedor da História da Poesia Ocidental para saber que a valorização semântica da mancha gráfica do poema não foi uma conquista dos chamados poetas concretos. Este tipo de procedimento estético-estilístico já é encontradiço desde a Grécia Antiga (em composições como o technopaignion), ganha novo vigor durante o Barroco (em formas poéticas como o labirinto) para, finalmente, renascer com toda a força na segunda metade do século XIX, especialmente com o poema-partitura de Stéphane Mallarmé. No século XX, poetas como Apollinaire e Cummings já utilizavam com mestria tal procedimento, várias décadas antes do advento do Mo­vimento Con­cretista brasileiro, que teve início apenas no princípio da década de 1950. Portanto, não deixa de ser irônico que o nosso Con­cretismo – escola que proclamou ser a inovação sua viga-mestra – seja uma macaqueação de arranjos poéticos (não muito interessantes, diga-se de passagem) surgidos há mais de dois mil anos. Nem mesmo a teoria da tradução dos concretistas – a chamada tradução-arte ou transcriação – é inovadora, pois que é uma retomada das teorias de Ezra Pound e de Roman Jakobson.

Alguém poderia objetar que o mérito dos irmãos Campos foi a redescoberta de alguns poetas importantes, como o maranhense Sousândrade. Mas quem costuma ler os críticos brasileiros da primeira metade do século XX saberá que o autor de “O Guesa Er­rante” foi redescoberto por Fausto Cunha, crítico conhecido por se aprofundar no estudo do Romantismo Brasileiro, e não por Haroldo e Augusto de Campos, como a maioria das pessoas imagina.

Para não ser injusto, creio que o mérito dos Campos se restrinja a algumas traduções bem-sucedidas, sobretudo dos poemas de R. M. Rilke e de Emily Dickinson, à divulgação de poetas europeus importantes, tais como Arnaud Daniel, Stéphane Mallarmé, Quirinus Kuhlmann e Osip Mandelstam, e a uma dúzia de ensaios de crítica literária que não merecem ser desprezados.

Bernardo Souto é bacharel em Letras/Crítica Literária pela Universidade Federal de Pernambuco e mestre em Literatura e Cultura: Estudos Comparados, pela Universidade Federal da Paraíba.