Alexandre Nobre é um estreante com a segurança dos veteranos
17 maio 2014 às 09h37
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A prosa de Alexandre Nobre é permeada por uma linguagem sutil, sem adereços, sem contorcionismos, porém essa singeleza e cristalinidade narrativas não negligenciam a densidade dos temas que suas histórias albergam
Ronaldo Cagiano
Especial para o Jornal Opção
Nos contos que integram “A Mangueira da Nossa Infância” (Editora Ficções, 112 páginas), de Alexandre Nobre, encontramos uma narrativa que captura os instantes do quotidiano na vida de personagens que são encontradiços na vida real, com seus dilemas e perplexidades.
Pela lente do autor, nada escapa ao seu flagrante, os pequenos acontecimentos diários, as situações corriqueiras, o banal que muitas vezes ao largo de nossas percepções, mas que sob sua ótima adquire um acento lírico pela leitura que faz do mundo e das pessoas que o cercam.
É a rua, as cidades, as pessoas, os objetos, os animais e outras situações e nuances, com suas peculiaridades e seus detalhes, que transformam-se em matéria e circunstância de sua delicada construção literária.
Os contos de “A Mangueira da Nossa Infância” (re)visitam o imaginário do autor, mas as dimensões geográfica, social, histórica e humana, flertando com uma certa cartografia interior, mergulhando nos escaninhos psicológicos, a partir do que tudo adquire uma projeção que transita do plausível ao onírico. Do seu particularíssimo observatório do homem transcende a mirada crítica, a reflexão, às vezes inflexão metafísica.
A prosa de Nobre é permeada por uma linguagem sutil, sem adereços, sem contorcionismos, porém essa singeleza e cristalinidade narrativas não negligenciam a densidade dos temas que suas histórias albergam. Ele tangencia a solidão do homem contemporâneo nessa sociedade que nos insulariza e apequena; os dilemas das paixões, das perdas, dos lutos; o espelho dos nossos desatinos, em que é tênue a fronteira entre lucidez e loucura, os limites entre vida e morte, entre paixão e amor; ou a falta de dialética na convivência nessa sociedade ainda atormentada pelas misérias morais e pelo preconceito.
Nesse sentido, seus contos (muitos deles premiados em importantes concursos nacionais, como os prêmios “Luiz Vilela” e “Ignácio de Loyola Brandão”) refletem sobre o mundo cão, sobre as (nossas) relações, sobre o desconforto e o despertencimento do ser nesse tempo e nesse universo povoado de inquietações. E entre o real e o imaginário, no confronto e a invenção e a memória, entre a verdade exterior e a ficção, a pulsão metafórica e o impulso poético predominam em sua prosa, conferindo-lhe uma plasticidade e uma sutileza singulares, algo não muito comuns numa certa prosa utilitarista hoje em voga em nossa literatura, escrita apenas para atender aos apetites do mercado.
Alexandre não simplifica seu ofício poético, pois não se preocupa apenas em contar uma história, mas em dotar o texto de tal rigor e harmonia, pois o que conta leva em conta a arte de saber contar, o lirismo amalgamando as histórias comuns. Em contos como “Babuska”, “A mangueira da nossa infância” e “Acampamento”, por exemplo, destacam-se o talento e a versatilidade do autor, cujo projeto criativo percorre desde o diálogo à reflexão, mapeando o inconsciente pessoal e coletivo, instâncias que fornecem a Alexandre o leitmotiv de uma verdadeira f(r)icção: aquela que nos dá um soco no estômago e não nos deixa indiferentes após sua leitura.
Prestem atenção nesse paulistano radicado em Ribeirão Preto, que se divide entre a literatura e a música com a mesma intensidade (guitarrista e compositor): não é um estreante promissor, mas uma realidade no cenário de nossa literatura, tão redundante de obviedades. É um nome que já nasce com o tutano dos escritores estabelecidos.
Como disse Paul Auster, “um escritor só pode ser bom se tiver a honestidade de ir ao fundo, ao céu, ao inferno, doa o que doer”. Alexandre atingiu esse patamar.
Ronaldo Cagiano é escritor e crítico literário.