Marina Teixeira da Silva Canedo

Especial para o Jornal Opção

“Eros me trespassa e agita, como o vento que, dos altos montes, desaba sobre os carvalhos.” — Safo

Durante a antiguidade clássica, tão rica em suas expressões culturais, os poetas se sobressaíram como os mais legítimos representantes da alma de seu povo, e deixaram um importante legado para o mundo. A esse legado, essencialmente masculino, juntou-se uma voz, cálida, delicada, sensível e absolutamente apaixonada: a voz de Safo. Ela é, dentre as poucas poetisas conhecidas do mundo grego, a mais relevante e a mais brilhante. Safo nasceu em 612 a.C na ilha de Lesbos, importante ilha do Mediterrâneo, na cidade de Eresos, uma das cinco cidades da ilha, mas viveu principalmente em Mytilene, a maior delas.

Safo capa de tradução de Joaquim Brasil Fontes

Pertencia a uma família aristocrática, e consta que se casou com um rico comerciante e teve uma filha, Cleis, o mesmo nome de sua mãe.

Seu amor, lírica e habilmente cantado em sua poética, era eclético, dirigia-se tanto a homens como a mulheres. A homoafetividade sempre foi aceita na sociedade greco-romana como uma expressão legítima nos relacionamentos amorosos. Os termos “lesbianismo”, “lésbica” e derivados provêm de Safo e sua origem em Lesbos, uma poetisa que viveu há 2.600 anos e que deixou sua marca, não só na poesia, mas também no registro linguístico de neologismos. Sua paixão por várias mulheres ficou indelevelmente gravada em seus poemas.

Safo capa de tradução de Pedro Alvim

Suas poesias não eram épicas, à maneira de Homero, de Ovídio e de todos os poetas clássicos; não cantavam as glórias heroicas nem os mitos, nem os deuses do Olimpo e nem as façanhas de grandes guerreiros. O que era regra como tema e objetivo entre os poetas, para Safo não serviu como fonte de inspiração.

Safo cantou sua alma, seus desejos, seus relacionamentos amorosos e eróticos de uma maneira sutil e delicada, mas ao mesmo tempo intensa. Seus poemas refletiam momentos, o pathos da dor e da paixão, sem a preocupação em enquadrá-los dentro de tempos históricos. Eros, tão decantado por Safo, foi por ela chamado de tecelão de mitos e de “o deus que nos quebranta os corpos, invencível serpente”. Sua poesia foi livre, e serviu como exemplo para poetas de várias épocas. O poeta latino Caio Valério Catulo, ou simplesmente Catulo (87 a.C. – 57 a. C.), foi seu grande admirador e seguidor (Contando Estrelas, Helen Dunmore, 2008, 317 págs.). Catulo também fugiu a estas regras temáticas e iniciou uma quebra nos paradigmas da poética latina, fazendo poesia mais intimista e menos longa, com temas do cotidiano, muitas vezes considerada epigramática. Safo foi a musa que guiou e inspirou Catulo.

Safo capa de fragmentos completos

Ele teve um grande amor, Clódia, que era casada com uma alta autoridade romana, e para quem Catulo escreveu inúmeros poemas. Nesses poemas ele a identificava como Lésbia, homenagem e referência à poetisa Safo. Lésbia, nos poemas catulíneos, era a personificação de Clódia, que foi, juntamente com Safo, as duas mulheres mais admiradas por Catulo.

Infelizmente muito pouco ficou dos escritos da poetisa grega.

A ação destruidora do tempo, aliada à condenação da Igreja Medieval, reduziram sua obra a ruínas. Poucos poemas completos e uma quantidade razoável de fragmentos, foi o que restou da inspiradora poesia sáfica.

Segundo Joaquim Brasil Fontes (“Variações Sobre a Lírica de Safo”, Editora Estação Liberdade, 220 páginas) sua obra compunha-se de nove livros, que foram compilados no século III d. C. e pertenciam à biblioteca de Alexandria, dos quais restaram três ou quatro poemas, além de ruínas, farrapos de palavras.

Safo capa de livro traduzido por Giuliana Ragusa

De acordo com Joaquim Brasil, a poesia de Safo encontra-se em completo desamparo, fora do contexto que lhe assegura sentido. No entanto, seu dom criativo está imbuído de tal poder de sedução, que encontra, no que restou de seus versos, um abrigo de beleza e de luz, de prazer e de dor, de canto e de lamento. 

No final do século XIX foram descobertos os papiros de Oxyrhynchus, no Egito, nas areias do deserto, envolvendo múmias de animais e em montes de lixo. Foi uma glória para os arqueólogos. 

As traduções, esmeradas e meticulosas, encontram-se nas clássicas edições dos helenistas Lobel & Page (1955), J. M. Edmonds (1934) e na Campbell (1982), onde se acha toda, ou quase toda, a produção encontrada de Safo de Lesbos.

Chegou-se a duvidar da existência da musa grega, devido aos poucos poemas encontrados, mas seu nome é citado por dezenas de escritores em suas obras, como Virgilio, Hesíodo, Apolônio de Rodes, Maximus Tirius, Libanius, Euphorium, Píndaro e muitos outros da era clássica. Recentes descobertas foram feitas (poema “Tithonius” e outros) em 2004 e 2014, o que vem enriquecer seu espólio.

Safo capa de tradução de Eugénio Andrade

A grafia do nome Safo se dá como Psappho e Sappho, que é a grafia em grego antigo. Sua reputação e sua obra transcenderam os séculos. Platão e Plutarco a consideraram como a décima musa, e não apenas como a protegida das nove musas, filhas de Zeus, tão grande foi a admiração que lhe votavam.

“De ti, Áttiis, me enamorei um dia

no amor que passa

— e tão criança me eras,

tão pequena,

e tão sem graça.”

Safo reunia à sua volta um círculo de mulheres jovens, às quais ensinava a sua arte – a música, a poesia, a dança. Comumente, mantinha com elas relações amorosas, que serviam de inspiração para seus poemas.

Uma coleção dos poemas de Safo encontra-se no livro “Safo de Lesbos”, tradução do grego de Pedro Alvim (Ars Poetica, 103 páginas.). 

Ao pensar em poetisas cujos poemas refletem intenso lirismo e forte carga emocional, vem-me à mente Emily Dickinson (1830-1886) e Florbela Espanca (1894-1930). Sem querer estabelecer outras conexões, além das já expressas, creio que Safo de Lesbos, Emily Dickinson e Florbela Espanca formam uma tríade de mulheres que engrandecem a poesia lírica universal e a elevam ao seu mais alto patamar.

Marina Teixeira da Silva Canedo, poeta e crítica literária, é colaboradora do Jornal Opção.