A viagem com o filho de Apolo, o poeta Gabriel Nascente

21 junho 2025 às 21h01

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Durval Aires Filho
No último Encontro Nacional de Memória do Poder Judiciário, realizado em Goiânia, no Estado de Cora Coralina, tive a satisfação de encontrar o poeta Gabriel Nascente, aproximação proporcionada pelo escritor e desembargador Itaney Campos e nos abraçamos com muita poesia.
O encontro poderia ter acontecido nos anos 1980, mas não faz mal, como explico, vivemos numa eternidade. A sua lira já era conhecida nacionalmente a partir de um poema — “O Dia do Julgamento” — que circulou entre nós, jovens escritores na época, passado de mão em mão, algo da geração mimeógrafo.
Porém, garanto, foi nos anos em que eu escrevia resenhas para os suplementos literários em jornais físicos de Fortaleza. Era tempo em que todos liam todos e, agora, tantos anos passados, esse reconhecido “reencontro” festejo como troféu o recebimento de sua obra completa (“Galáxias dos Dias”) e de seu livro mais recente “O Cálice de Orfeu”, portador de afetuosa dedicatória, motivadores de leitura e reflexão.
Seguro na posse de toda poesia reunida do amigo, junto com o mais novo empreendimento poético, não preciso ir muito longe para observar que a produção desse santo Gabriel, anjo torto de que falou Drummond, simbolicamente, povoaria por inteiro uma catedral como Duomo di Milano, pelo volume com que produz poesia, pela excelente qualidade estética e pela aceitação crítica.
Distinguido por estudiosos de sua obra, “como o mais ativo poeta do Brasil Central e, também, o maior produtor de imagens líricas na poesia brasileira da atualidade”. Fazer versos, para esse filho de José, constitui seu jeito único de entender as coisas, talvez razão existencial para estar no mundo. Ele confessa essa comunhão cotidiana entre o fim da noite e o amanhecer: “toda madrugada/ eu caso com a poesia” (O Conúbio).
Ao começar a ler esses poemas no Aeroporto Santa Genoveva, percebi, na sequência, ao apertar os cintos, depois de me acomodar na nave, que a transcendência de seus versos para o mundo encantado da poesia se nutre essencialmente de três elementos afins: do insólito, da surpresa e do sugestivo, numa alquimia de muitos próximos, pois o que é estranho pode aprontar espantos. E estes pontos repentinos podem mostrar caminhos e, mais ainda, ao desvendar enigmas, constroem outros mistérios.
Todos esses elementos, vale observar, depois de reagidos, passam para outro estágio e parecem, inopinadamente, pela elasticidade ou vibração, sair das páginas onde estão os versos para significar ou ressignificar passagens ou momentos. Essa energia não interfere para modificar a realidade que o cerca. Ao revés, talvez até a dimensione, dentro de uma assinatura pessoal escorreita, vestida com um “paletó de corte adequado”, como diriam os críticos mais exigentes, expressando através de uma linguagem econômica, direta, exígua, enxuta, que, na maioria das vezes, espeta consciências, traz reflexões, produz sustos, risos e sérios arroubos pelo inesperado diante da força mágica de seus versos.
Na utilização desses elementos há um diálogo inusitado, uma conversa franca, possibilitada apenas no mundo próprio de Orfeu, que seleciono ao fazer anotações, como se ouve no poema Gratidão: “Obrigado, copo d’água/obrigado, pão com manteiga”. Prossegue nessa gentileza produzindo momentos de lirismo e intensa beleza: “obrigado, alma simples/ chinela que partilha comigo/ a viagem dos meus ossos”.
Nesse monólogo de afeto e reconhecimento, o poeta agradece também ao “pedreiro das trevas/ tuba dos trovões”, porque, sem a existência desse “construtor sombrio e tenebroso”, não haveria o bem. Ademais, os deuses precisam dos homens imperfeitos para fazer cumprir suas palavras mágicas de correção.
Sem enaltecer a funcionalidade pura do gênero poesia, em Filosofia do Trapo (poema pertencente à Esfera Celeste I, Descantes) não há exatamente um diálogo, mas um pedido que remete diretamente ao criador, após a morte, partida final. Ali, o poeta formula uma solicitação, por onde, certamente, terá um encontro face a face com o divino. Vaticina o seu tombamento, quando ele deixa de ser o seu “eu” e pede: “se no dia seguinte/ não houver dia seguinte/ e eu me tombar/ ao sono dos meus sonos/ Deus, por favor / dê pão de poesia/ para os homens”.

Essa naturalidade pela busca da oferta de Deus diante do sentido e da referência não são opostas, nem contraditórias. Aliás, uma questão intrincada e sugestiva, então enfrentada pelos filósofos da matemática através do Teorema de Frege, que, entre os seus ensinamentos, demonstrou que uma disposição pode ser construída por uma lógica de segunda ordem.
Assim, uma oração ou sentença podem estar corretas, mas as representações sobre referências e sentidos nem sempre estão alinhadas. Pontificam os seguidores do teorema: referência é aquilo que o objeto denota, e o sentido constitui o modo como é apresentado esse objeto.
Nessa complementariedade, é possível garantir um conceito baseado em sua extensão, mas com o risco de gerar um entendimento incompleto, o que não é o caso, por se tratar de especulações poéticas bem estruturadas, no tipo, se não articulados pela lógica, inimiga do encantamento, que seja pela plausibilidade.
Ainda na mesma Esfera Celeste, Gabriel Nascente, no poema Vestíbulo, aponta o início de uma viagem com muitas tribulações, mas navegar é preciso ( ). Canta: “Farol da minha proa, zarpemos/ O clarear finca pregos na pretidão”. E, prosseguindo viagem, navega: “Remo/meu barco de vime/ entre as espumas/do soluço”.
Ossos do ofício
Gabriel Nascente, dentre os diversos recursos literários e dialéticos, aborda seu labor, “como tarrafeiro de palavras”(Alquimias), passando a questionar o ofício de poeta para testificar a validade dessa tarefa, em nível de poesia. Na verdade, questiona-se a si mesmo, não em busca de um promo ou reconhecimento, mas a procura de afirmação e eficácia.
Nessa temática, defende que o produto de seu trabalho é livre: “o poema solto/ as aves do pensamento/ no papel”. Ou seja, em Os Garfos do Ofício tem a sua criação como uma espécie de alimento que desprega da celulose, voa e, no ato de escrevê-los, o considera eterno ou “imortal/ enquanto crio”. Mas não é tão fácil assim. Em Estuários deVersos ele se compara ao obreiro da escultura que moureja com persistência: “manhãs inteiras/ eu te esculpo/ — poesia –/ nas rochas do meu cérebro”.
A propósito da referência desse último verso, observa-se que a apropriação da linguagem poética em todos os seus aspectos e funções, pretendendo gerar expressividade estética, constitui um trabalho duro do poeta, porque ele se vale de referências, dos cardápios literários, das emoções, sentidos fabricados ou sentidos mesmos, das sonoridades e dos fatos, coisas e cenários ao redor, além da metalinguagem de si, num caleidoscópio que visa despertar sentimentos e transmitir significados profundos, uma proposição que não é uma tarefa comum nesse elaborar e fazer, na obrigação de projetar e entregar poesia certa. Por isso, clama: “ó leitura de pedras/ ó voar de garfos”.

A par de todo esse trabalho, do pensamento e do obreiro, há que se dizer que a linguagem poética é realizada com diuturno empenho, à custa de um trabalho metódico, trazendo à luz certas ideias e palavras que, segundo Octávio Paz, afloram nossas consciências, ativando as partes mais intimas e secretas de nós mesmos, justamente porque a poesia reflete transcendência, capturação e essência da experiencia humana.
Isso porque essa opção literária tem uma forma de dizer, ou cantar, circulada, opaca, turva, reflexiva, no sentido de evocação, com o movimento intensamente poético no sentido de retirar determinados temas de seu sono letárgico e causar impacto ou redimensionamento de coisas que não podem ser silenciadas. Afinal, inspirado na fé do poeta Carlos Nejar, “há uma voz tão imperiosa” em poesia, “que nada ou ninguém poderá calar”.
Lamentavelmente, em Cartilha do Ócio há um descredenciamento desse curioso oficio, na verdade uma maldição, onde os incautos e maliciosos acusam o poeta de não ter imunidade, com “o corpo dizimado pelo vitiligo”, ou ser um “traste”, e por o considerarem um indivíduo duvidoso, mal educado e “tratante”, lhe indicam tratamento cruel, como “camisa de força” caso permaneça nesse caminho de escrever poemas, enfim, a triste confissão do próprio Gabriel: “se sou poeta/ exorcizam meu/ registro de nascimento”.
A questão é que o poeta, visto injustamente como um ocioso, não sabe fazer outra coisa ( ) senão produzir sua arte e, para azedar ainda mais o equívoco dos insensatos, tomam esse fazer artístico como um produto anticapitalista, sem utilidade nenhuma, “completamente inútil”, superado,“passou de moda”, como dizia Flaubert, partindo para a comparação com outros gêneros como o romance, que, alguns deles, batem recordes de vendagem, motivo para eleger a poesia — devido a sua linguagem específica, atemporal e com uma natureza essencialmente figurativa — como uma forma obscura e inacessível. A ponto do Marques de Maricá, por causa das fantasias, dizer que ela é prejudicial à sociedade, transformando o poeta numa espécie de “profissional da discórdia”, devido ao seu inconformismo, pelo qual testemunha as deformações das coisas, os destinos incertos e os declives sociais.
Por outro lado, resiste o estereótipo de que o poeta é uma espécie de imigrante sem cidadania, porque normalmente age em divergência com o senso comum, emitindo opiniões que não são comuns aos outros, “com a falsa ideia de que o poeta é um ser à parte, alguém desligado do húmus onde prolifera a raça vil dos homens”. Mas, mesmo não sendo um ser diferente, “o poeta jamais poderia estar imune à safadeza universal”.
Incompreendido ou perseguido, Gabriel Nascente não desiste dessa vocação onerosa, ou “maldição de nascença”, como avaliou um escritor, “uma doença da alma, uma religião sem esperança” ( ), não importa. Ao contrário, afirma com desdúvida: “A poesia e eu/ somos / uma só carne”. Pontifica, além da intimidade: “ser do meu ser/ chávena de sangue”. Desce às profundezas como “candelabros das/minhas trevas”. Extravasa, derramando sentimentos e, ao tornar essa intimidade manifesta, vai ao extremo: “por tua causa, eu sigo/ os caminhos da metáfora/ até esvaziar as prateleiras/ do meu pranto” (Os Garfos do Ofício).
Circulando no purgatório da racionalidade, define outra vez sua poesia em A Fonte de Piéria, agora como um ser extraordinário, uma “fada maluca/ das minhas insônias”, ou, ainda, uma “noiva núbil” (O Conúbio) e, revelando seu receituário, trabalho árduo que pode consumir manhãs inteiras, numa ação insólita, com uma beleza estética infrequente, ele canta: “amarrei a paisagem na/ costela de um poema” /E segui a desordem das coisas” (Mistifório).
Continuo hipnotizado pela leitura desses poemas, como inescapáveis insetos presos aos olhos dos lagartos, e já estamos há tempos nos domínios do Distrito Federal, quando o pássaro de alumínio produziu um solavanco enorme, um tranco em virtude da mudança do ar pela terra, mas, mesmo com o desembarque, continuo agarrado a esse Cálice, para um novo voo de conexão.
Narcisismo, platonismo e práxis erótica
Sem ser machadiano, ou seguidor do austríaco Sigmund Freud, em Espectro Urbano, o poeta, em seu labor nada convencional, faz conhecer e lembrar que todos nós possuímos duas faces. Normalmente, um rosto é apresentado, sai com ele abraçando o cotidiano, as relações do dia a dia, e o outro é ocultado no porão. Nesse contexto, hipocrisia e a falsidade são comuns e, não raro, as pessoas se escondem atrás de máscaras para proteger vulnerabilidades. Por isso, revela a si mesmo, nesses versos: “o que sou/ não sou”, por que “no espelho/ outro espelho/ ri de mim”.
Curiosamente, nesse momento de embate com os seus “eus”, mesmo reconhecendo a transitoriedade do ser humano — “sou trapo/alojo/ da carne”, ou “a terra é condomínio/ das carnes passageiras” (A Face Oculta dos Desejos) — se vê narcisista, ao proclamar de forma sutil o amor que tem a si mesmo a partir da claridade. Complementando os versos anteriores, confessa: “Luz miserável/ eu te amo” (Espectro Urbano).
Noutro poema, verseja uma Canção Para Montar um Sonho, como se fosse organizar um brinquedo, utilizando sua narrativa pessoal como um ajuntamento de peça por peça, como um lego dinamarquês, por exemplo. Entretanto, arma um sonho romântico, diga-se de passagem. Observem: há um convite à musa, “antes que fane/ o ramo de luz”, ou seja, a solicitação de presença é preliminar ao corte de energia sedutora do amante.
O fato é que, ao montar esse desejo baseado em expectativas amorosas, sua poética avança e parte à procura do corpo, abandonando o platônico, anunciando o que são capazes de fazer quando estão voltados para o contato físico: “incendiar nossos lábios/ com um vendaval de beijos”. Aliás, uma projeção contida na proposta: “eu te uso/ tu me usas/ somos fogo” (Cerimonias Para o Coito).Pelo poema, a musa se veria em um cenário alegre, festivo, natural, e seria bem-vinda porque “a varanda está/ repleta de bem-te-vis”. Mas, prosseguindo em outro caderno, intitulado de Molhados de Amor, esse sonho pode ser virado em algo prático e deixar de ser mera pretensão, onde o brinquedo do sonho já não é mais sonho, sim, realidade.
Evidentemente, o primeiro endereço para essa virada de chave é a excitação, mas antes, sem cair no obsceno, destaca a mulher, com o objetivo de saciar seus ímpetos, ao cantar: “teu corpo, ó/ santuário de/ volúpias! / – por que não/ apagas a brasa/ dos meus desejos?”
A resposta poderá ser encontrada ao seguir o modelo proposto em A Cartilha de Eros e praticar essas lições que sugerem, por fim, visitar a “fenda de veludo/ que me suga até/ o esguicho”. Ou, bem explicado, sem influências diretas da poesia fescenina, realizar o promo das Cerimonias Para o Coito quando “eu me plano: teso/ a gruta está úmida e/ engole o meu licor”.
Galos, tardes e novenas
Nos versos finais de “As Perguntas”, Gabriel Nascente quer saber “quantos alarmes/ tem o galo/ para arrancar o sol/ das catacumbas do teu sono”. Nesse poema, as indagações são próprias da poesia, por isso, ainda que produzam reflexões, não fazem parte da filosofia cujas perguntas tensionam o desenvolvimento de suas teorias e conceito, enquanto complemento das ciências humanas.
Mas, tanto quanto necessário, essas aves são objetos de outra especulação do poeta, quando, ao ouvir seu cocoricó, marca o tempo presente, a altura do dia, como se vê em “Bucólico”: “Galos epifânicos/ às três da tarde/ o mundo ali/ vai de carroça”.
Explicando: pela manhã, despedindo da madrugada, com o sol em vista já despontando, sinalizando a aurora do dia, o canto do galo tem-se como despertador, mas à tarde, seu canto constitui um aspecto comum da vida no campo, repleto de bichos e aves que vão simplesmente compondo a paisagem, os cenários e os costumes campestres.
Mas nem tudo é insólito ou surpresa nessa poesia, porque o poeta apresenta também situações burlescas e hilárias que reconstroem cenas de um lugar bucólico e religioso. Entre vários ajudantes mirins e sacristãos Na Novena de São Sebastião”, o padre, dirigente desse modelo de devoção, escala cada um deles, diretamente pelo nome: — Clóvis/ arruma o licor/ — Israel/ solta os foguetes! / — Filé/ desfralda o mastro! / — Meninos/ parem de peidar/ oremos”.
No caderno Esferas Celestes III, o poeta Gabriel adota uma linha despressurizada de uma poesia mais leve, sem o propósito de produzir tensões, criando diversas imagens sensoriais de poetas famosos, com os quais nutre um sentimento de aproximação. Ele os nominou como subtítulo de Os Cavaleiros da Névoa, o que, na verdade, são poemas que podem ser lidos, ora como homenagens, perfazendo perfis, ora como aprendizagens, ora identificando a sua extenuada
Desde o primeiro caderno, o poeta do Cálice de Orfeu sugere a reflexão de um trabalho duro do ofício, voltado também para os repositórios mais profundos de seus autores. Vejamos “Num Shopping, Com Anacreonte”, ainda constante do caderno inicial. O poeta revela esse trabalho de colheita, voltado â memória dos repertórios, quando a “tarde esbarrondava” e ele “imerso na turva/ solidão das ideias, lia/ engolia/ o bardo de Teos/ de suspiros eólicos/ anacreônticos”, fazendo referência a um antigo poeta lírico que se expressou em dialeto jônico e um cenário novo de um shopping.
Perfis de outros poetas
Quando Gabriel Nascente faz alusão em seus poemas às “leituras de pedra” e ao “voar de garfos”, ele está, certamente, se referindo ao repertório dos poetas, a suas avaliações, o que eles cantaram, ensinaram ou ensinam, e não há outro léxico senão a linguagem da poesia, através das suas metáforas, como chaves mestras para abrir as portas e as janelas de um mundo de versos, porque ler os outros poetas é “inventar/ escritas pelo avesso” (Lautréamont).
Ao mesmo tempo, essas portas e janelas são lições (balizas) para que os poetas prossigam na sua produção e concluam seu processo de amadurecimento, consistentes em benéficas trocas, posto que as influências primevas, buscadas nesses acervos, acabam sendo incorporada em intertextos, diluídas e cambiadas por uma nova individualidade, agora, com marca própria que se impõe e passa a ser vista como característica única e inconfundível da criação de sua poesia.
Essas leituras e construções de perfis, compondo uma representação de traços e habilidades, misturam-se entre celebridades e poetas, são bem diversificadas, observando Drummond, Vinicius de Morais, Alvares de Azevedo, Keats, Haroldo de Campos, Tristan Corbiere, Mario de Andrade, Shelley, Rimbaud, Aristóteles, Pound, Lorca e outros nomes apresentados em cadernos anteriores.
É o caso do líder revolucionário Che Guevara, cujas “baforadas de seu charuto/ ainda trescalam fumo de Havana” (Che, o Fuzil e a Boina).
O poema “Lautréamont”, por exemplo, traz uma fotografia que deve ser realizada pela imaginação poética, portanto, sem traços fisionômicos. Como se o marquês já fosse um conhecido de antemão (às vezes o é, pela sua poesia, é claro), e por ela fabrica seu retrato, a partir de seus versos. Assim, ninguém vai saber se o conde era alto, magro, moreno, se “cultivava um bigode fino e vestia-se com roupas escuras”, além de apresentar “profundas olheiras, causadas pela irregularidade dos sonos”, mas poderá senti-lo como “lírico monomaníaco/ niilista e soturno”; ou “sátrapa da verdade?”; estrangulador do/ ledo siso das virtudes”; e “pianista das trevas”, porque “escrevia todas as noites, até de madrugada, depois de dedilhar as teclas do piano”, segundo biografia do poeta Márcio Catunda.
Assim, também Rimbaud, profeta de toda juventude febril, entusiasta e rebelde, em todas as gerações que vieram depois, conhecido com o “enfant terrible”, é visto por Gabriel com traços mais externos, como “barregã dos demônios/ harpas dos ladridos”, apresentando-o como alguém que pudesse ser desposado no paraíso, com “cabelos flavos, esgalgado/ com olhos de huri, selvagem”, doente porque “a frágua da Abissínia / lhe premiou com / um câncer no joelho” (Uma Flor de Absinto Para Arthur Rimbaud).
Ainda que admita um Drummond misterioso “sisudo atrás dos óculos”, também traz imagens com traços exteriores: “o lábio superior sempre nu/ barbeado / como se luzisse por toda a tez / uma rosa de alabastro”. Indaga sobre essa claridade epidérmica: “de nariz folheado a ouro”? (Sua Majestade o Drummond). Evolui, a seguir, cuidando em apresentar outro poeta, não mais como imagem, mas colocando-o em cena de um encontro: “E agora somos nós, Vinícius / na valsa dos copos” (À Mesa, Com Vinícius).

Talvez o melhor poema, entre todos os perfis que também homenageiam, seja “Búfalo de Óculos”, dedicado a Jorge Luís Borges. A partir do título elaborado “pelo maior produtor de imagens líricas na poesia brasileira” —o que já damos “conta de um processo que inicia no portal” do título, assim, ofertando, “logo de entrada, o sentido de um mundo poético a haver”, como acentuou Gilberto Mendonça Teles, o poeta cego parece caminhar indelevelmente pelas ruas da capital portenha.
Realmente, antes desse poema-homenagem, é interessante observar que o poeta faz uma ronda nos arredores boêmios de Buenos Aires. Era “um tango suado de vinho” e, como integrante indissociável do cenário, ele vê Borges, com a grandiosidade de um búfalo de lentes escuras, gigante e cauteloso com suas bengalas: “ruminando poesia/ em seu exército de punhais” (Buenos Aires, a Lembrança Exposta) e retrata-o como “o cego e/ sua lapela”, conduzindo o “seu torno de polir textos” “e a semelhança de sentinelas, os “seus faróis/ de guiar espadas / no labirinto” (O Búfalo de Óculos Escuro).
A tarde cai, já é noitinha no meu destino, desembarco da conexão conduzindo minha mala de rodinha no hall do Aeroporto Pinto Martins, com uma bolsa a tiracolo que porta essa obra poética e, somente em casa, depois de um banho e um café com torradas, vou retornar à leitura, quase finalizada desse belíssimo Cálice de Orfeu.
Finalmente, reflito à evidencia de que, nesse último poema, não há nenhuma influência com a poesia de Wislawa Szymborska, no tocante a “A Cortesia dos Cegos”, mas se fosse possível – e não é mais – a leitura desses versos de quem lê, “porque é tarde demais para não ler”, ao próprio Jorge Luis Borges, provavelmente, como supôs a poeta polonesa, seria uma aventura audaciosa para Gabriel Nascente, posto que, “ao torno de polir textos”, cada frase, cada verso seria apreciado meticulosamente ao brilho da escuridão.