A sustentável leveza da paixão por Paulo Mendes Campos e Otto Lara Resende
28 julho 2023 às 12h45
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Marcelo Franco
Conheci os “quatro cavaleiros de um íntimo apocalipse” na versão ligeiramente ficcionalizada do excepcional romance “O Encontro Marcado”, de Fernando Sabino.
Eu tinha lá os meus 14 ou 15 anos e fiquei mesmerizado. Aliás, no livro, os quatro eram três (o próprio Sabino, Helio Pellegrino, Paulo Mendes Campos e Otto Lara Resende).
Viciei-me em Fernando Sabino; seguindo o exemplo do livro, quis “puxar angústia” pelos bancos da cidade, como ele e seus amigos faziam nos bancos da Praça da Liberdade, em Belo Horizonte, hoje território sagrado para mim (e descobri, anos depois, que a angústia boêmia nada tem a ver com aquela real e que nos corrói as entranhas — então puxo angústia, sim, mas lutando diariamente para me alçar um pouco acima do rés do chão).
Salto temporal. Enfastiei-me de Fernando Sabino e descobri os diamantes finamente lapidados de Otto e PMC — Helio Pellegrino partira para a psicanálise e a militância esquerdista, deixando obra literária mínima e solta.
E Paulo Mendes Campos, o “Paulinho”, tinha, além de tudo, um pé bem afundado na depressão, o que me irmana a ele (daí o seu apreço por Baudelaire: “Tu conheces, leitor, esse monstro incruento,/ — Leitor irmão — hipócrita — meu semelhante!”).
Livros autografados e primeiras edições
Outro pulo no tempo: um dos remédios para puxar menos angústia é colecionar brinquedinhos; no meu caso, livros antigos ou autografados, primeiras edições, essas coisas — vale dizer, gasto dinheiro em material perecível e inflamável, o que é, por si só, outra fonte para puxar novas angústias, mas isso é assunto para o terapeuta…
Tenho algumas preferências, como as primeiras edições de Joaquim Nabuco e Jorge Amado — gosto de colocar o sisudo pernambucano e o festivo baiano lado a lado nas estantes.
Confesso, porém: o vício nos autodeclarados cavaleiros de um íntimo apocalipse permaneceu em mim e venho buscando também as primeiras edições de seus livros. É obra para a vida toda e ainda outro motor de angústia — mas quem está com pressa ou deseja saúde mental intacta?
Assim, nas fotos temos uma primeira edição autografada de “O Retrato na Gaveta” (Otto assina mesmo um rabisco estranho) e, de brinde, uma edição mais recente, que é a “da leitura”. Tenho lido e relido, nos últimos dias, a belezura que é “Gato Gato Gato, creio que até postei antes um trecho desse conto magnífico — pois então, mesdames et messieurs, aqui vai outro (o encontro do menino com o gato pode ser muito bem a descrição de um encontro amoroso — dois seres que se esquivam por não serem um…):
“O gato olhou amarelo o menino. O susto de dois seres que se agridem só por se defenderem. Por existirem e, não sendo um, se esquivarem. Quatro olhos luminosos — e todas as coisas opacas por testemunha. O estúpido muro coroado de cacos de vidro. O menino sentado, tramando uma posição mais prática. O gato de pé, vigilantemente quadrúpede e, no equilíbrio atento, a centelha felina. Seu íntimo compromisso de astúcia.”
Otto, Otto, não nos humilhe assim…
Marcelo Franco é crítico literário.