A poesia refinada de Sônia Elizabeth no livro “A Lírica Poética da Manhã que Chega”

02 outubro 2022 às 00h00

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Simone Athayde
Especial para o Jornal Opção
A poesia, neste mundo duro, parece ter ficado esquecida num lugar pouco acessível, no qual apenas uns poucos, aqueles que têm a “chave” de Drummond, conseguem adentrar. No entanto, quando admitida para apreciação, o ser humano pode encontrar na poesia um alento para tempos difíceis, especialmente quando ela é impregnada de rara beleza, como é o caso dos poemas do livro “A Lírica Poética da Manhã que Chega — Ou um Tango Noturno Para o Anjo Aquiles” (Penalux, 2022), de Sônia Elizabeth.
A obra foi vencedora da Bolsa de Publicações Hugo de Carvalho Ramos-2017, o concurso literário mais antigo do Brasil e o mais importante de Goiás. É justo o merecimento do prêmio, Sônia é uma artista que sabe mesclar a poesia clássica, cheia de lirismo, erudição e esmero formal, com pitadas contemporâneas.
Seus poemas, no conjunto do livro, não contam uma história como se poderia esperar ao se referir a um personagem intitulado Aquiles, que nos remete ao mito grego; sua poesia também não é de fácil leitura, há muitos simbolismos e uma grande riqueza vocabular e imagética, que requer certa afinidade do leitor com as palavras. Mas a sonoridade, o ritmo, a versificação fina e os aforismos que ela tece podem ser apreciados mesmo por leitores não tão treinados, como vemos nos versos “Ai de quem em rocha se desfaz/ Feito o que empurra/ E nada faz” (Poema VI – parte II) e “De alma me abasteci, soturna,/ aliviei o corpo do cansaço, dos ritmos,/ lancei âncoras para salvar náufragos,/ e o anjo ali, como ser de amplitude/ maior do que as próprias asas./ Um suicida.” (poema IV – parte I)
A poesia, entre as artes literárias, tem na liberdade de criação e composição uma das suas características e o seu grande triunfo: o poema não precisa ser compreendido, mas precisa ser experienciado, precisa impactar o leitor, causar-lhe deslumbramento ou estranheza. É o que Sônia Elizabeth faz muito bem.
Dividida em quatro partes, a obra traz como eu-lírico (a voz que expressa os poemas), um ser feminino que recebe a visita de um anjo “torto”, com o qual tem momentos amorosos e a quem reciprocamente modificará. O anjo Aquiles pode ser interpretado de diferentes formas pelo leitor, mas como bem escreve o poeta Francisco Perna Filho, que assina o texto para a orelha do livro, do ponto de vista metalinguístico ele pode ser o próprio “anjo da criação poética”, que seduz a poeta e lhe oferece inspiração para a escrita.

A obra já se inicia com uma bela profissão de fé no poema I, na qual o eu-poético se mostra solitário por natureza, deixado “à margem dos ritos da divindade”: “Não sabem de mim os mortais/ pois que medro em qualquer esquina. Profundamente no caos ou abandono,/ assim destilo rimas/ e sou lírica até os ossos”. Essa visão do poeta como um ser estranho e desprezado pelos homens também perpassa outros poemas, como o V: “Esconderei o poeta dos homens/ que desejam sua precária taça de vinho. Ficará instalado entre os vãos/ e ferrugens das páginas dos livros.”
Mas como não é possível fugir de sua sina, eis que no poema II, na madrugada, vem o anjo da inspiração, “esse pacífico lorde, de cor escura”, e com metáforas e figuras de linguagem a poeta consegue fazer, num enlace simbólico, sua colheita de versos: “Eu tinha maçãs, poemas, cetros, um vestido/ Onde as nuvens se descortinavam./ Eu era todo um palco/ Para a dança angelical e seus precipícios./ Eu era a lama e o lenitivo./ Depois que acordei o anjo se doutrinara,/ Estava pervertido./ Não sobrou-me quase nada,/ Nem pudores, nem vestimenta. Nem estigma.”
No poema VI, um dos mais bonitos, e nos seguintes, a autora desfila suas construções inusitadas e muito bem elaboradas que, com seu talento para a produção de rimas internas, aliterantes e toantes, produzem um festival de imagens poéticas das quais, embora nem sempre possam advir significações práticas, transbordam essa estranha beleza, possível graças à visita do anjo: “Se não houvesse o anjo e asas/ O voo seria um desencanto.”
A segunda parte da obra traz um eu-lírico que vê o mundo como um lugar pouco confortável para aqueles de alma sensível, como nos mostra o excelente poema II: “De um Deus lírico que contempla o sol, / ausento-me. Pouca poesia./ Mas o lamento dos justos sei todos, / As cuias vazias de alimento. […] Nenhuma escravidão foi dilacerada./ Estamos ausentes, perambulando/ pelas escadas./ Nossa pouca gente/ viciada em algozes e mitos./ O chão podre das encruzilhadas./ Precipício.” Também é nessa parte que se descreve melhor o anjo Aquiles “vindo de não sei onde e de longe” e que ocorre um transbordamento de substantivos tão díspares entre si como maremotos, rugas, coqueiro, mas que, cada qual, tem seu lugar muito bem estudado dentro dos versos.
Na terceira e na quarta partes, temos a coroação desse lirismo extravasado de Sônia Elizabeth. O efeito produzido no leitor é o de estar rememorando versos que poderiam ter sido escritos em outras épocas, em escolas literárias das quais vieram um Fernando Pessoa, um Tomás Antônio Gonzaga, um Manuel Bandeira, mas que de anacrônicos não têm nada: “Um perfume demodê/ Do século passado. Meu sonho imaculado, / a lírica das horas mortas, passadas. Aquiles em riste, enciumado/ de alguma coisa que não vivi. / Assim. Silêncio. O palco sem luzes,/ sem público debochado. Sem atores, Só anjos. /E anjos não querem aplausos.”
Enfim, a poesia, entre as artes literárias, tem na liberdade de criação e composição uma das suas características e o seu grande triunfo: o poema não precisa ser compreendido, mas precisa ser experienciado, precisa impactar o leitor, causar-lhe deslumbramento ou estranheza. É o que Sônia Elizabeth faz muito bem.
Simone Athayde, escritora e crítica literária, é colaboradora do Jornal Opção.