A poesia alada e livre de Maria Helena Chein: voos de primeira classe
03 novembro 2024 às 00h00
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Jô Sampaio
Especial para o Jornal Opção
“Todos os Voos” é o título do mais recente livro que a poetisa, contista e cronista Maria Helena Chein ofereceu ao seu público leitor, no dia 4 de outubro, em um lançamento superprestigiado na Escola Superior de Advocacia (ESA), juntamente com Lêda Selma (“Ou Casa, ou Desocupa a Noiva”) e Ademir Luiz (“Por um Punhado de Prólogos”). Esse lançamento triplo reuniu em um só lugar, os deuses mais cultuados do Olimpo goiano. E, claro, leremos os três livros, começando pelos poemas de M. H. Chein.
O livro da citada poetisa (“Todos os Voos”) tem prefácio feito por Darcy França Denófrio e Moema de Castro e Silva Olival, na primeira edição. Como se vê, o livro de M. H. Chein está ungido e sacramentado por duas das melhores sacerdotisas da crítica literária entre nós e respeitadas em todo o Brasil.
O que poderia alguém acrescentar à obra comentada por essas duas renomadas conhecedoras dos meandros e artimanhas de qualquer texto, seja lá quais forem os gêneros e estilos?
Mas… mas… uma obra literária é um vasto celeiro, que oferece grãos das mais variadas espécies, formatos e sabores. Quem os prova, adapta-os ao seu próprio paladar, numa degustação que lhe permite sentir novos cheiros, novos gostos palatais, novas texturas e novos nutrientes.
Assim justificado, ouso tecer meus humildes comentários sobre o livro de Chein. Ademais, cada leitor capta uma forma especial do eu-lírico, do eu-sujeito na construção do poema, sob aspectos vários, como na seleção e combinação das palavras, no ritmo, na imagética, na estilística etc.
Da rigidez formal para o verso livre
Abrindo o livro temos “Insubmissão”: Hoje não me submeto/ às neuras do não devo/ Querer pode? Não desejo reter soluções adiáveis. Sofrer faz parte do drama. O instante é meu/ e é dele que me sirvo/ para unir decências/ e é nele que me ardo/ para dissolver loucuras.
Nesses versos são visíveis a consciência da transitoriedade do tempo e o desejo de romper as amarras, libertar-se dos grilhões aos quais a mulher sempre foi submetida.
Maria Helena se libertou, e esses versos carregam a carga poética da mocinha-poesia que, unida ao Grupo de Escritores Novos (GEN), deu seus primeiros gritos líricos. Há neles a rebeldia contra as portas fechadas do enquadramento poético, das formas fixas, da erudição, do academicismo literário.
Não quero me drogar de solidão/ Nem me esquivar às ardências/ de fantasias anímicas/ O momento se contrapõe/ à minha crença de ser lótus. Não me prendo às raízes/ Destravo a porta/ e solto-me para o salto.
Simples trocas vocálicas (“o” e “a”) respondem pelo plano sonoro extraído de um plano fechado (o) para o aberto (a): liberdade. Maria Helena deu o salto da rigidez formal para o verso livre, da obrigatoriedade das rimas para a sonoridade do estrato fônico liberto da cadência metrificada e captado na carga semântica da pluralidade da língua. Saltou do tom retórico para o coloquial, com linguagem reduzida, com surpreendentes intervenções de imagens diretas, como declara no verso final: “Não me prendo às raízes”.
Em “Aleluia”, segundo poema, temos: Vim tomar do teu vinho/ Dá-me de beber/ enquanto é noite/ e sou estrela. Consome minha sede/ para que amanhã/ eu não seja só aquário, / mas rio de peixes/ e desovas […] Dá-me de beber/ enquanto há um reino/ e sou rainha.
Aqui temos a inspiração em versículos bíblicos e a força positiva do louvor, da alegria e do agradecimento contida no vocábulo ‘aleluia’, louvor associado a uma súplica “dá-me de beber, tenho sede”.
Esse pedido nos remete à agonia de Jesus na cruz, a sede nos remete ao desejo insaciável da aquisição de saber, de entendimento, de discernimento e sede de justiça.
“Sou estrela, sou rainha”. Nesses versos, pela mimese interna, típica da lírica, encontramos a fusão entre sujeito e objeto. Os termos (sintaticamente predicativos) assumem, no campo semântico do poema, a função de objetos do eu-sujeito. Fundem-se no mesmo amálgama da conotação do poema.
Esse tipo de estrutura sintagmática é usado por muitos poetas, inclusive por Vinícius de Moraes, em seu lirismo de dar formas diversas ao eu-lírico, emissor do discurso onde predomina a função emotiva da comunicação verbal: Sou o mar! Sou o mar! Meu corpo informe/ Sem dimensão e sem razão me leva/ me leva para o silêncio onde o Silêncio dorme (versos de um dos quatro sonetos de Meditação de V. M.).
Nada fica sendo o que é: a dialética da arte
Ainda, no poema Aleluia, salientamos o condicionamento do eu-emoção, a certeza da efemeridade do tempo, representada por “enquanto”, conjunção que subordina a ação verbal às circunstâncias temporais.
Ninguém pode banhar-se duas vezes no mesmo rio, disse o filósofo Heráclito. Assim, nada fica sendo o que é, tudo muda, tudo entra em contradição com o que era antes, logo, a noite e o reino da poetisa podem acabar a qualquer momento.
“Amado”
Anjo tangível/ com promessas de céus/ tira meus véus.
Nessa estrutura poética que se aproxima do haikai, temos um apelo erótico a um anjo, percebido pelo contato corpóreo, com truques de sedução divinal.
É um poema enxuto, sintético, donde não se extraem possibilidades de diversificações semânticas, vez que a simples troca de consoantes (céus / véus), além de dar musicalidade ao poema, mostra uma linha de dicção enxuta, concisa, precisa e geométrica.
Há, nesses versos, a forte carga do DNA do GEN, cuja proposta era propagar os novos postulados da poesia, com o advento do Modernismo, do qual Oswald de Andrade, autor dos versos abaixo, tornou-se o grande (e incompreendido) divulgador das ideias do Manifesto Futurista de Felippo Tommaso Marinetti: “América do Sul, América do Sol, América do Sal” (observe a sequência dos fonemas vocálicos).
“Todos os Voos”, como indica o título, consta de poemas com decolagens e aterrissagens em variados temas. Há voos diretos, voos com escala e voos com conexão em aterrissagens calmas, tumultuadas, horizontais e verticais. O avião (poesia) de Maria Helena Chein só possui a primeira classe.
Nas paradas Stopvar, a poetisa desembarca e leva os passageiros (leitores) ao conhecimento de atrações com múltiplas variedades de tempo e espaço, num tour em que passageiros diversos, tripulação, lembranças, evocações, amor, morte, alegria, tristeza e dor saem do comando do piloto, sem necessidade de catapulta, para, em piruetas nos céus “turquesa e anil”, deleitar o leitor.
Esses voos passam por preocupações existenciais: Deram-me o ano para nascer/ Uma cabeça cheia de pensamentos/ E uma figura ágil, tensa…/ Agora me deram você/ O que faço com o tempo/ as ideias desordenadas/ e meu corpo que desconheço? (Caos).
Reflexão da poesia sobre a própria poesia: O poema é/ esse instante vertical/ em minha essência (Profundidade).
Imagens arrojadas ou oníricas: No meu abismo de chamas/ te aprofundavas/ sem resistência/ pássaro ferido/ pelas lâminas/ de teu decálogo (Hora da entrega).
Erotismo: …E te recebo voraz/ testemunhando tua geografia/ de picos e sulcos/ nos meus cantos e muros,/ enquanto me dispo/ para beber teu beijo […] Tomas posse dos meus respiros/ das certezas e perguntas/ do meu ventre de lua/ se liquefazendo em suores/ Tomas posse do meu corpo/ e em tua concavidade/ em me solto e me vou/ em voos de primavera (Testemunhos da paixão).
Enfim, o certo é ler o livro e voar com a poetisa MHC, cuja imaginação revela e cria o infinito do céu da poesia, confirmando o que disse o poeta e ensaísta mexicano Octavio Paz em “O Arco e a Lira”: “A Poesia é conhecimento, salvação, poder, abandono. Operação capaz de transformar o mundo, a atividade poética é revolucionária por natureza; exercício espiritual, é um método de libertação interior”.
O conceito acima de Octavio Paz é o conteúdo do continente poético de MHC, o que me leva a pensar que fragmentar sua poesia em um ensaio que mostra apenas algumas partes, é como servir uma fina iguaria de deliciosos sabores em ínfimas porções a comensais de paladar variado e insaciável fome. Vamos, pois, ao todo, ao livro.
Maria Helena Chein voa, voa alto nas asas da poesia, confirmando palavras de Sócrates, repetidas por Platão no Íon: “O poeta é um ser alado, leve, sagrado, incapaz de produzir quando o entusiasmo não o arrasta e o faz sair de si”.
Há religiosidade, aura mística e tom litúrgico em MHC. Esse matiz de transcendência cristã resulta do hilozoísmo grego. Anjos, espíritos, pedras, flores, águas, estrelas, montes e vales mostram a consistência da realidade exterior nos estágios anímicos da poetisa. Há sempre elementos da natureza correspondendo aos sentimentos expressos pela poeta, mostrando uma poesia bem integrada às correspondências de Charles Baudelaire: A natureza é um templo onde vivos pilares,/ deixam ouvir confusas vozes / e estas fazem o homem passar/ através de florestas de símbolos.
[…]
Perfumes frescos como carnes de crianças/ Doces como o oboé, verdes igual ao prado/ Mais outros, corrompidos, ricos, triunfantes.
À semelhança de Baudelaire, os poemas de MHC têm sabor, perfume, maciez, aspereza, cor, cheiro, por conseguinte, são correspondências de variadas sinestesias que tocam, além da sensibilidade do leitor, também as sensações sensoriais.
Maria Helena Chein inicia seu livro com versículos bíblicos extraídos do Cântico dos Cânticos e de um Salmo de Davi. A preferência por essa parte lírica das Sagradas Escrituras nos remete, outra vez, a Oswald de Andrade em “Cântico dos Cânticos para Flauta e Violão”, embora ambos os poetas (Chein e Oswald de Andrade) usem essa coletânea de poemas amorosos atribuídos ao Rei Sábio sob aspectos totalmente diferenciados, com abordagens focadas em pontos que em nada se assemelham. Apenas a fonte de inspiração é o traço de união entre os poemas dos dois. O poema “Bendito você nas estações” (p. 41) exemplifica as acentuadas marcas do lirismo de Salomão.
No prefácio, Darcy França Denófrio diz: “Os poemas dessa autora goiana nos fazem lembrar considerações de Virginia Wolf em um ensaio de 1929: “A Room of One’s Own” (“Um Teto Todo Seu”). Vi como oportuna e pertinente essa observação da prefaciadora, embora nossa poeta goiana não se entregue às ideologias exacerbadamente feministas. Seus poemas revelam a consciência do papel da mulher como ser ativo e partícipe da construção do mundo, com engajamentos sociais, artísticos políticos e com direitos, inclusive o de expressar seus desejos.
O ensaio de Virginia Wolf repercutiu em todo o universo feminino, trazendo noções de conceitos, ainda em formação, de alteridade, de misoginia, de sexismo e outros preconceitos. Percebemos, portanto, que MHC, como pessoa sempre engajada em seu tempo, também entendeu essas aberturas a que homens e mulheres jamais haviam buscado e questionado
Ao concluirmos a leitura de “Todos os Voos” (segunda edição), podemos sentir nos versos de Maria Helena Chein a força das palavras de Hugo Friedrich em “Estrutura da Lírica Moderna”: A poesia quer ser uma criação autossuficiente, pluriforme na significação, consistindo em um entrelaçamento de tensões de forças absolutas, as quais agem sugestivamente em estratos pré-racionais, mas também deslocam em vibrações as zonas de mistério dos conceitos.
Voemos, pois, com Maria Helena Chein.
Jô Sampaio é poeta, contista e crítica literária. É colaboradora do Jornal Opção.