A Pediatra, de Andrea Del Fuego, e Chuva de Papel, de Martha Batalha, são grande literatura

21 julho 2024 às 00h01

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Simone Athayde
Especial para o Jornal Opção
Uma boa notícia para os interessados em literatura é que o Brasil conta com uma safra de autoras talentosas que têm conseguido visibilidade para suas obras, entre as quais figuram as best-sellers Carla Madeira e Aline Bei. O texto a seguir tratará dos livros de duas escritoras da atual geração, os ótimos “A Pediatra” (Companhia das Letras) e “Chuva de Papel” (Companhia das Letras) de Andréa Del Fuego e Martha Batalha.
Da escrita produzida por mulheres, comumente se espera uma linguagem mais sensível, recatada, o que acaba por se tornar um estereótipo. Porém, na atual produção, figuram anti-heroínas/heróis cujo caráter está longe do bom-mocismo romântico e que mesmo assim, ou justamente por isso, são capazes de cativar o leitor.
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A Pediatra, de Andrea Del Fuego

Em “A Pediatra”, Andrea Del Fuego demonstra coragem na construção de Cecília, a protagonista-narradora, uma jovem médica que escolheu a pediatria não por vocação, mas por conveniência ao seguir os passos do pai. A obra acompanha um período da vida de Cecília em que ela, após se divorciar de um marido depressivo, começa um relacionamento com um empresário casado. O desenrolar desse relacionamento trará uma mudança inesperada para a vida e os sentimentos da pediatra, uma mulher que bem poderíamos classificar como uma sociopata, que faz medicina seguindo um beabá que inclui simpatia fingida por aqueles que atende e falta de paciência pelas mazelas alheias.
À medida que a narração avança, ao mesmo tempo em que Cecília vai se desenhando uma personagem utilitarista e odiosa, da qual pode-se esperar as piores atitudes, ela vai pincelando aqui e ali, como quem não quer nada, os elementos de sua vida que a tornaram essa pessoa fria e essencialmente solitária: uma mãe que não demonstrava afeto, um pai ausente, a infância vivida entre babás. Quando, acostumada a uma rotina profissional sem sobressaltos, se vê preterida por um pediatra “alternativo” e empático, começa um processo de segui-lo para descobrir “podres” em sua vida: “Eu sabia que o neonatologista simpático era uma onda, não ia durar muito (…) Logo a obstetra retomaria com a profissional antiga que apenas entregava aos pais o recém-nascido limpo e embrulhado na manta, sem excessos. Ninguém notava que eu tinha pouca vocação e paciência para ser médica, a boa formação garantia que eu não fosse processada, fazia bem-feito o feijão com arroz”.

Em boa parte da obra, a protagonista cria sua própria narrativa sobre a vida e a personalidade dos outros personagens. A partir de sua versão, possivelmente distorcida, acaba revelando o lado podre de uma sociedade doentia da qual ela é apenas um exemplar entre tantos iguais a ela: médicos sem caráter, maridos infiéis, mães vaidosas que entregam seus filhos para serem criados por babás, donas de berçários que sedam crianças. Quando o amante pede que Cecília assista o parto da mulher e cuide do filho recém-nascido, o teor dramático cresce, colocando o leitor num lugar em suspenso sobre o que irá acontecer.
É justamente nesse passeio entre o que se esperar dessa protagonista e os seus pensamentos sobre a vida, as pessoas, a medicina e a vida social é que está a parte mais interessante da obra. Há na protagonista uma espécie de personificação do que a mentalidade burguesa pensa sobre os seus subalternos e como os trata. O desprezo que Cecília tem por Deise, sua empregada, é um retrato brasileiro. Por outro lado, as atitudes de Deise, muitas delas duvidosas, também revelam o panorama de um país miserável. Os problemas estruturais do nosso país são escancarados através dessas duas personagens, cada qual ocupando um lugar na escala social, e isso revela a força da autora Andrea Del Fuego, premiada em seu romance de estreia, “Os Malaquias”, com o importante prêmio literário José Saramago.
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Chuva de Papel, de Martha Batalha

Já Joel Nascimento, protagonista de “Chuva de Papel”, de Martha Batalha, também é um anti-herói, mas nele temos um tipo mais malandro. Poderíamos classificar o livro como uma tragicomédia, conforme a própria autora se referiu ao seu primeiro livro “A Vida Invisível de Eurídice Gusmão”. Quando perguntada sobre o que tinha achado da adaptação cinematográfica daquela obra, ela disse: “Gostei muito da adaptação que Karim (Aïnouz) fez, mas ele fez um melodrama e eu tinha escrito uma tragicomédia”. Enquanto o melodrama seria uma exacerbação do triste, do trágico em uma obra, na tragicomédia também predomina o exagero, mas nela o autor acaba tornando as tragédias em situações cômicas.
Assim, “Chuva de Papel” nos mostra que seguirá por esse caminho logo no começo, quando Joel, um jornalista velho, alcoólico e falido, tenta o suicídio ao pular de um prédio, mas, por um erro de cálculo, o máximo que consegue é quebrar a perna e as costelas: “Calhou de haver uma Kombi estacionada em frente ao prédio da Santa Clara, e a combinação de quarto andar com capota encurtou o trajeto, transformando Joel num mero susto urbano, composto de uma plateia de batedores de panela aterrorizados, uma Kombi amassada e um velho seminu, levado inconsciente para o hospital. Joel abre os olhos no dia seguinte, para ver um antigo colega de redação e ser informado de que precisa pagar pelo conserto da Kombi”.

No transcorrer da leitura, vamos sendo apresentados ao velho Joel e às suas memórias que passeiam por sua vida pessoal conturbada, cheia de ex-mulheres e filhos abandonados, e por sua vida profissional no submundo carioca. De origem humilde, descobriu no jornalismo sua forma de sobrevivência e nele atuou por mais de cinquenta anos. Trabalhando para jornais sensacionalistas, teve seu auge como repórter investigativo e testemunhou os podres do meio, com mentiras se tornando verdades por interesses e necessidades dos repórteres.
Quando Joel sai do hospital, sem eira nem beira, recebe a ajuda improvável de Leandro, um jovem repórter ingênuo e generoso, que o leva para passar um tempo na casa de sua tia Glória. A mulher, que o recebe interessada em que ele a ajude a escrever um livro de memórias, vai se revelando um contraponto ao protagonista: é ela quem tenta colocar freios e modos naquele homem até então sem limites. Esse embate de personalidades fortes e muito bem construídas é um dos pontos fortes da trama, bem como a forma como a narrativa, irreverente, vai do passado ao presente e das facetas cruéis da vida ao burlesco. É na encruzilhada em que Joel é colocado, entre a total desesperança e a possibilidade de redenção, que ele se torna ao leitor uma espécie de “meu malvado favorito”.
Os dois livros mantêm um bom ritmo narrativo e finais que não decepcionam. Martha Batalha trouxe sua própria experiência como repórter em jornais cariocas e sua vivência com outros profissionais do ramo como matéria para produzir seu livro. Já de onde Andréa Del Fuego buscou inspiração para construir sua pediatra, eis um bom questionamento…
Simone Athayde é escritora e crítica literária. É colaboradora do Jornal Opção.