A Morte de Jesus, de Coetzee, é metáfora do filho pródigo, mas sem redenção
05 maio 2024 às 00h00
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Carlos Willian Leite
Neste terceiro e último volume — o mais impactante e definitivamente o mais trágico da Trilogia de Jesus —, a realidade descrita aproxima-se perigosamente da nossa. Se nos volumes anteriores J. M. Coetzee transportava os leitores para um universo peculiar, tingido por um racionalismo frio, aqui os limites são testados pelas nossas verdades mais profundas e escondidas. Tudo é envolto em mistério, como se o autor emitisse sinais, convidando-nos a montar as peças de um quebra-cabeça que é, ao mesmo tempo, inverossímil e profundamente humano. A narração sugere mais do que declara, instigando o leitor a juntar os indícios.
David, o protagonista, é um enigmático garoto de 10 anos, adotado por um casal não convencional. Movido por profundas convicções pessoais e pela leitura de “Dom Quixote”, ele opta por fugir para um orfanato, onde busca, entre outros objetivos, uma oportunidade de se juntar à equipe de futebol. Sua decisão não só abala profundamente seus pais adotivos, mas também repercute em todas as pessoas de seu entorno. David, embora decidido a viver como órfão, revela-se também vulnerável. A narrativa adquire contornos trágicos quando David adoece misteriosamente, levando à sua internação em um hospital público, onde uma equipe médica enfrenta desafios para diagnosticar sua condição, considerada extremamente rara.
Paralelamente, seus pais adotivos, professores — cujas reais intenções não são claras — e amigos do orfanato, da academia de dança unem-se em uma vigília angustiante, sob a vigilância de um assassino, da ala psiquiátrica, que trabalha no hospital como faxineiro e nutre um verdadeiro fascínio por David.
De certa forma, o livro é mais do que uma releitura do Jesus messiânico e assemelha-se mais a uma metáfora contemporânea do filho pródigo; contudo, ao contrário da parábola bíblica, não há redenção. O destino de todos os personagens é irremediavelmente alterado por um desfecho trágico, cujas consequências tornam-se cada vez mais evidentes ao longo das páginas.
Definitivamente, este não é um livro para todos, pois ao que tem de terno e humano, soma-se o angustiante e perturbador.
Nota: 9
Carlos Willian Leite, poeta, jornalista e crítico literário, é editor da “Revista Bula”.