A mente que se expande com uma nova ideia jamais volta ao seu tamanho original
09 dezembro 2024 às 15h11
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Abílio Wolney Aires Neto*
Sou juiz de uma Vara Cível em Goiânia, mas os plantões na área criminal têm sido um laboratório intenso das contusões dos encontros humanos, nas rachaduras de uma sociedade brutalmente desigual. Entre interrogatórios sobre condições de prisão e graças a Deus, raras denúncias de algum abuso de policiais nas perguntas que faço nas audiências de custódia, onde o que mais me marca são as histórias de vida dos interrogados. São narrativas de vidas fragmentadas, atravessadas por ciclos de pobreza, abandono e exclusão num país onde temos mais de 70 por cento de pobres entre os milhões de brasileiros. Recentemente, deparei-me com um jovem dependente químico que perdeu os laços familiares após longos períodos encarcerado. Outro, já mais velho e com um membro amputado, confessou ao ser interrogado estar preso ao tráfico em um bairro de Goiânia, incapaz de romper com o ciclo que o devora. Nem casa, nem família, nem qualquer suporte social que lhes permitisse sonhar com outro destino.
Essas histórias nos transportaram às páginas do grande gênio das línguas neolatinas, Victor Hugo em sua obra Os Miseráveis, onde o protagonista Jean Valjean encarna a miséria social e a luta pela sobrevivência diante de um sistema que sufoca os mais vulneráveis e os criminosos, muitas vezes partidos pelo próprio sistema. As narrativas que ouço nas audiências não são ficção; são reflexos reais, um espelho contemporâneo da obra de Hugo. A miséria dos “miseráveis” vive nas periferias, nas calçadas, nos presídios brasileiros e nas sombras de um mundo que vira o rosto para eles.
A jornada de Jean Valjean, condenado por roubar um pão para alimentar a família, é emblemática. Ele passa anos tentando superar o estigma de ex-presidiário. Em cada história que escuto nas antessalas das cadeias de Goiânia, há ecos de Valjean: pessoas marcadas pela pobreza, pela exclusão e por um sistema que se apressa em punir, mas raramente se empenha em reabilitar. O jovem que recorre ao furto para sustentar seu vício em drogas não é apenas um caso isolado; ele é o reflexo de comunidades brasileiras onde a ausência de políticas públicas efetivas, o colapso familiar e a dependência química formam um círculo vicioso. Como Valjean, ele encontrou a condenação, mas não a compaixão.
Por outro lado, o homem amputado que sobrevive no tráfico é um retrato dos que, além de suas limitações físicas, são tragados por sistemas de exclusão. Sua história revela como a falta de suporte – seja na saúde, na moradia ou na reintegração – transforma seres humanos vulneráveis em “miseráveis” contemporâneos. Ambos são exemplos de como, enquanto sociedade, falhamos em trazer-lhes a oportunidade ou a “vara de pescar”. E, enquanto isso não ocorre, resta apenas o que Madre Teresa de Calcutá tão bem disse: “Enquanto vocês não trazem a vara de pescar, eu vou dando o peixe para que eles não morram de fome.”
As periferias da nossa capital são ecos das ruas descritas por Hugo: tanto aqui quanto lá, há migrantes, refugiados e moradores excluídos pela falta de políticas públicas eficazes. A distância entre a Goiânia de hoje e a Paris do século XIX se dissolve quando observamos as mesmas falhas estruturais, a mesma rejeição aos marginalizados.
Do ponto de vista político, ideologias de direita apresentam soluções centradas em iniciativas individuais e na redução da interferência estatal na economia. Para muitos políticos alinhados a essa visão, o fortalecimento do empreendedorismo, a criação de empregos por meio da iniciativa privada e a capacitação profissional são os caminhos para combater a pobreza. Acreditam que um mercado forte e dinâmico, aliado a incentivos fiscais e à redução da burocracia, pode oferecer às pessoas oportunidades para crescerem por conta própria. Essa abordagem, no entanto, muitas vezes é criticada por não considerar suficientemente as barreiras estruturais que limitam o acesso a essas oportunidades.
Tomara que tragam um dia, pois desde a Roma antiga, os
miseráveis da Via Apia vicejam, como milhões de pobres se encontram nos Estados Unidos, o país mais próspero do mundo, que tem sob as marquises ou debaixo dos seus complexo e arrojados viadutos centenas de viandantes e funâmbulos de rua, um retrato da pobreza da desigualdade do liberalismo econômico que libera para ins e deixa outros sem a graça de Deus na terra.
Numa visão de esquerda, Karl Marx enxergaria a raiz do problema na estrutura econômica do capitalismo, que, em sua visão, é incapaz de oferecer justiça social verdadeira. Para ele, a solução estaria na transformação radical do sistema, substituindo a propriedade privada dos meios de produção por uma economia coletiva e igualitária. Apenas eliminando a exploração de uma classe sobre a outra seria possível romper o ciclo de pobreza e exclusão que condena milhões à condição de “miseráveis”.
Por outro lado, o filósofo francês Allan Kardec, ao codificar o espiritismo, sugere que a solução deve unir a transformação espiritual e material pelas vozes de alem túmulo, que se levantaram do “inferno” ou do “céu” para dizer que a vida confia. A vida não cessa e a morte é jogo escuro das ilusões, daí porque nós ensinam que é por meio da caridade, da fraternidade e da justiça que a sociedade pode superar suas desigualdades e a revolução é a violência nunca resolveram o problema das desigualdades, ao contrário, as potencializaram e geraram novas guerras ou rumores de guerra no capítulo do egoísmo.
A mudança deve começar no coração humano, mas também se estender ao coletivo, promovendo ações concretas que garantam dignidade e inclusão. Acredita, assim, que o progresso moral e o material caminham juntos: sem a reforma íntima e o amor ao próximo, qualquer tentativa de transformação externa será insuficiente.
Contudo, há um agravante que não pode ser ignorado: o descrédito que muitas igrejas têm sofrido ao priorizarem a arrecadação em nome da “teologia da prosperidade”. Muitas instituições religiosas se preocupam mais em encher os “cofres dos pastores que pregam Jesus” do que em distribuir para os “filhos de Jesus” nessa loucura fanatizante da teologia da prosperidade, onde os trabalhadores do chão de fábrica pagam o dízimo, mas a prosperidade só chega para os “apóstolos” que marram em palacetes, moram em mansões, compram aviões e se enriquecem à custa do dízimo de pessoas ingênuas e manipuladas, empresariado sem freio e em franco mercado de comoditties da fé.
Essa inversão de valores desvia a missão da caridade para a acumulação, falhando em oferecer amparo aos necessitados. Essa postura não apenas fragiliza a credibilidade dessas igrejas, mas também perpetua a exclusão social, deixando os vulneráveis ainda mais desamparados.
Em Os Miseráveis, o bispo Myriel representava a luz da compaixão e a possibilidade de recomeço. Na vida real, precisamos de políticas públicas que substituam o desprezo pela inclusão, e de um esforço conjunto – de governos, instituições e indivíduos – para transformar as páginas dessa realidade. Victor Hugo nos legou um chamado à ação, um apelo para que a justiça vá além da punição e comece na dignidade e na inclusão. Resta a nós decidirmos se seguiremos o exemplo do bispo Myriel ou a rigidez do inspetor Javert. Afinal, fora da compaixão, não há salvação – nem para os miseráveis, nem para a sociedade que os ignora.
*Abílio Wolney Aires Neto é Juiz de Direito da 9ª Vara Civel de Goiania.
Cadeira 9 da Academia Goiana de Letras, Cadeira 2 da Academia Dianopolina de Letras, Cadeira 23 do Instituto Histórico e Geográfico de Goiás-IHGG, Membro da União Brasileira de Escritores-GO dentre outras.
Graduando em Jornalismo.
Acadêmico de Filosofia e de História.
15 titulos publicados