Recebi uma série de documentos e, no meio deles, escritos da consagrada autora de romances históricos

Yuri Baiocchi

Especial para o Jornal Opção

A autora goiana Sonia Sant’Anna lança mais um livro — “Rondó” (Penalux, 140 páginas). Autora de romances históricos e artesã de joias — trabalhou algum tempo com Caio Mourão (1933-2005) —, Sonia Sant’Anna se revela agora como contista refinada.

Natural de Goiás Velho, mineira por adoção e carioca por paixão, consegue misturar em sua personalidade e deixa transparecer, no seu jeito envolvente de conversar, um pouco dos três lugares. O interesse e o orgulho goiano-mineiro pela história dos seus se mescla com um jeito matreiro e descolado de se expressar, como o do carioca.

Sonia Sant’Anna: escritora | Foto: Reprodução

Por mais restritos que os ambientes de seus temas sejam, Sonia Sant’Anna sabe falar para o mundo. É daquelas que vendem areia no deserto. E é também muito crítica com a própria obra, prova disso é que apenas agora — depois do incentivo de muitos e talvez do reconhecimento próprio — publica seus contos.

Para Sonia Sant’anna, publicar um livro é um ato que requer dignidade. E, claro, coragem, por mais que se saiba de sua qualidade. Ser irmã de Sérgio Sant’Anna (1941-2020), um dos maiores contistas brasileiro e mesmo assim debutar na seara dos contos com mais de 80 anos? A pergunta é autoexplicativa.

Como conheci Sonia? Pela forma de comunicação mais fácil e primitiva para os goianos: o parentesco. Não podia ser diferente. Ela é neta de dona Iaiá, famosa professora de Catalão, que tinha por irmãos o jornalista Moisés Sant’Anna, os poetas Joaquim e Josias Sant’Anna (Joaquim é o autor da letra da música “Noites Goianas”) e também Zaira Sant’Anna Rios, minha tia por afinidade.

E foi Nádia Rios Vellasco, neta de tia Zaira e nossa prima em comum, quem me recomendou para Sonia e vice-versa. Soube tempos depois que Nádia ajeitara um encontro entre nós numa de minhas idas ao Rio, onde Sonia residia à época. Não cheguei a ficar sabendo do tal encontro, Sonia foi taxativa ao dizer que não iria.

E aí, não sei bem como, conheci Sonia por outras vias. Tempos depois, ao ver que éramos amigos, Nádia me contou que ela teve a intenção de nos apresentar, mas Sonia não quis. Quando falei para Sonia, ela se lembrou da história e me contou o porquê. Por quê? Ah, ela pensou que se tratava de um encontro amoroso e não estava a fim de namorar ninguém. Ela não imaginava que mais de 60 anos a separavam da pessoa que ela iria encontrar. E, como escrevi acima, eu nem soube do tal arranjo.

Numa outra ida ao Rio e já amigo de Sonia, fiquei pensando em chamá-la para sair. Fiquei cheio de cerimônia e resolvi perguntar qual lugar ela preferia. Respondeu-me: “Ah, você pode escolher qualquer um aqui por perto, mas tem que ter chopp gelado!”

O arquétipo de senhorinha octogenária, que havia começado a se desmanchar após o décimo “porra” que falou ao telefone, na primeira vez que conversamos, ruiu de vez.

No dia que combinamos de sair, fecharam o túnel Santa Bárbara e fiquei sem ter como sair de Laranjeiras para o Arpoador. Ela acabou se mudando para Beagá e nosso encontro nunca vingou. Contudo, tenho a impressão de que nos vemos sempre.

Max Brod de Sônia Sant’Anna

Recentemente, recebi da amiga e pesquisadora Cidinha Coutinho parte do acervo que pertencera ao seu sobrinho, o também pesquisador e genealogista Aníbal de Castro Caldeira Júnior, que durante anos trocou correspondências com Sonia. Cidinha e Júnior descendem de Alice Sant’Anna Coutinho, também irmã da avó de Sonia, daí a relação.

Bom, assim que percebi que muitas das cartas do acervo eram de Sonia, avisei que poderia lhe mandar algumas cópias. Mas a ordem recebida foi para eu queimá-las. Como sou desobediente desde criancinha — como Max Brod, que não quis queimar a obra de Kafka —, tratei de ler tudo aquilo. Não havia nada demais, a não ser algumas frases um tanto duras, mas extremamente pertinentes, sobre o mercado editorial goiano.

No meio de tantas cartas, localizei alguns contos muito bem-produzidos — que creditei a Sérgio Sant’Anna, pois a assinatura estava a mão e só se conseguia distinguir o sobrenome. Enviei a Sonia comemorando o fato de ter comigo contos assinados pelo monstro da literatura que foi Sérgio Sant’Anna.

Para minha tristeza, não eram do Sérgio Sant’Anna. A felicidade voltou quando soube que eram de Sonia. Não pensava que ela guardava coisa tão boa assim. Já deveriam estar publicados há muito tempo. A felicidade dobrou quando li o restante da informação: há décadas a escritora dava os tais contos por perdidos. Aqueles ali eram os últimos registros. Disse-me que reunira alguns contos na década de 1970 a fim de publicar um livro. Havia, inclusive, recebido uma carta do renomado editor Ênio Silveira, da Companhia Editora Nacional (celebrizado, depois, como editor da Civilização Brasileira) elogiando seu trabalho. Mas logo depois Ênio Silveira foi perseguido e preso pela ditadura civil-militar e com isso o livro não foi lançado. Sonia lamentou não ter mais essa carta. Pois não é que a tal carta também veio parar comigo?

Passados alguns meses do envio do material que encontrei, Sonia agora publica seu primeiro livro de contos. E com alguns daqueles que eu lhe enviei. Logo, o livro que chegou em minha casa é como um parente que eu não conhecia, mas sabia de sua existência e aprendi a gostar de longe.

Não vou me estender mais. Coincidência é jogo de muito mais de sete erros, se fizermos força a conta não para nunca e eu preciso iniciar a leitura deste “Rondó”.

Sonia Sant’Anna escreveu romances históricos consagrados: “Inconfidências Mineiras — Uma História Privada da Inconfidência” (Zahar, 196 páginas), “Barões e Escravos do Café — Uma História Privada do Vale do Paraíba” (Zahar, 180 páginas), “Memórias de um Bandeirante” (Global, 78 páginas), “Leopoldina e Pedro I — A Vida Privada na Corte” (Zahar, 180 páginas) e “Degredado em Santa Cruz” (FTD, 109 páginas). Todos estão esgotados. Pela qualidade, merecem reedição. Acordem, editores!

Yuri Baiocchi é colaborador do Jornal Opção.