A fogueira dos desejos inalcançáveis de Alexandre Staut

11 novembro 2018 às 00h00

COMPARTILHAR
História do livro “O Incêndio” transita pelo drama de um personagem assombrado por conflitos internos, em meio ao fechamento da biblioteca onde trabalha, de modo a chamar atenção para o descaso atribuído às instituições culturais no Brasil

Sérgio Tavares**
Especial para o Jornal Opção
Antonio, o protagonista de “O Incêndio”, de Alexandre Staut, teve a adolescência, nos anos 1980, assombrada por conflitos externos e internos. O desgosto pela própria aparência, potencializado pelas transformações causadas pela puberdade (os odores, os pelos, as espinhas), fez de si um rapaz retraído, angustiado, alvo de chacotas na escola.
Por dentro, no entanto, era uma fervura de emoções. Sentia-se excitado pelas pernas nuas das professoras, os seios fartos; suava frio com a aproximação das colegas de turma.
Simultaneamente, começou a ter interesse por meninos. Seus olhos baixos percorriam o campo de futebol, transitavam por entre as cadeiras da aula de ciências. Até que se apaixonou por um deles. Guilherme. Mas era um desejo proibido, represado, contra o qual a fuga passou a ser os livros.
“(…) passar os olhos pelas páginas era uma forma de radicalizar-me, assumir a minha natureza solitária, uma ruptura com a escola, os colegas, com a minha família”, relata.
Nos dias atuais, assumidamente solitário, Antonio trabalha na biblioteca de uma cidade do interior. Com sérios problemas estruturais e infestado de cupins, o prédio está na iminência de ser fechado pela prefeitura. Antonio resiste até quando pode. Nem tanto pela defesa do emprego, ou pelo significado intrínseco que a literatura aderiu à sua vida, e sim pela certeza de que a biblioteca se transformou num microcosmo que é um simulacro do universo que a ele cabe.
Ao contrário do narrador de “A Biblioteca de Babel”, conto do argentino Jorge Luis Borges, que desvenda, na passagem pelas estantes, a rota de um “mundo infinito”, o bibliotecário se dá conta de que ser afastado do ambiente dos livros é a forma de desmoronar o mundo que lhe confere identidade. De modo que se lança num fluxo de consciência, confrontando fantasmas do passado para provar (para si, para o leitor) o poder de pertencimento proporcionado pela literatura contra os terrores da realidade.
Staut constrói um personagem complexo, que tateia pelo escuro da própria natureza, iluminando cada um de seus desvios e escolhas com passagens literárias, a fim de utilizar as narrativas ficcionais como peças afetivas na qual se engendra esse processo de formação de caráter. Sendo assim, seu texto é propositalmente escorregadio, transitando a esmo pelo tempo, de forma a possibilitar uma distensão da trama que percorra a adolescência e a vida adulta, utilizando uma bibliografia sentimental como fio condutor.

Autor: Alexandre Staut
Editora: Folhas de Relva
Valor: R$ 36,00
É um tipo singular de exercício de intertextualidade, no qual se busca apreender a ideia da obra e aplicar no modo de (de)formação do protagonista.
A certa altura, Antonio se recorda da leitura de “Tempo da Camisolinha”, de Mário de Andrade, e tece um paralelo entre a opressão aplicada ao menino do conto, que teve seus cachos cortados para “ficar um homem”, e a maneira com que se desenhava seus primeiros impulsos sexuais. Em outro ponto, no qual aborda suas intenções homoeróticas, evoca o espectro da escritora britânica Virgínia Woolf, cujo romance “Orlando” trata de um indivíduo indefinido, entre a fronteira do gênero masculino e do feminino.
Staut conduz seu protagonista por níveis de consciência que transcendem o limite que separa realidade e ficção, chegando um estado característico do delírio. Além de se utilizar de trechos, personagens e autores para acessar pontos de seu passado, Antonio dialoga e incorpora a fisionomia de alguns desses autores e personagens (imagina-se, por exemplo, em Lisboa, sob a pele de Fernando Pessoa), representando as variações de alguém em intensa crise existencial.
Por outro lado, há um sentido metafórico muito interessante que diz respeito ao entendimento de que cada livro ou autor que nos toca acaba por fazer parte (ou, quiçá, interferir) na moldagem da nossa personalidade. Aliás, esse não é o único meio com o qual o autor aplica a metáfora à sua escrita. O próprio título refere-se ao fatídico destino do prédio que abriga a biblioteca, mas também aos ardores da puberdade do personagem principal. Ambos queimam, em significados distintos.
Sexualidade e crítica social
Por outro lado, longe de qualquer traço figurativo, o romance propõe uma reflexão sobre a temática da sexualidade na adolescência, do ponto de vista de um rapaz que vai tentando governar seus desejos ambivalentes. As inquietudes, os fracassos, os medos são modulados na corrente de pensamentos, que se cruzam com histórias de livros e autores que trataram da homossexualidade e de escritores que sofreram na pele (e na alma) por conta de sua orientação sexual, a exemplo do poeta francês Arthur Rimbaud.
Em tempos em que se acirram os crimes de ódio e se perpetuam discursos político-partidários em defesa da homofobia, o enredo adquire um valor de denúncia e, sobretudo, de escudo para a defesa e o respeito de direitos inestimáveis. Em sua contínua tentativa de se autocompreender, Antonio expõe uma sociedade que vocaliza o incompreensível.
Do mesmo, o autor faz uma crítica necessária ao amplo e desavergonhado descaso dos órgãos públicos por suas instituições culturais, projetando, da decadência da biblioteca que encerra suas atividades, o estado de precariedade que se abate sobre grande parte de nossos espaços de leitura, de conhecimento e de conservação do passado. O incêndio que destruiu o acervo do Museu Nacional, em setembro deste ano, é um exemplo trágico dessa irresponsabilidade histórico-social.
“Tem infiltrações durante quase todos os meses do ano. A cada livro que toco e de que me despeço, penso nas páginas encharcadas de água. (…) Talvez nossos livros estejam fadados a virar mingau, como falam pelos corredores os ‘do contra’. O mingau grosso que depois se transforma em páginas em branco, para receberem letras, que depois serão novamente esquecidas”, o protagonista alerta para um ciclo vicioso, que retrata o plano de inutilidade de contorno nacional.
Com “O Incêndio”, Alexandre Staut reflete, através da arqueologia errática de um personagem assaltado por fantasmas de diversas naturezas, a degradação de um país que não consegue proteger sua própria cultura e apaga, pouco a pouco, as páginas corridas de sua história.
**Sérgio Tavares é escritor e crítico literário