A Eneida, de Virgilio, e as epopeias homéricas são o suprassumo da fantasia e da ficção criativa
21 julho 2024 às 00h00
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Marina Teixeira da Silva Canedo
Especial para o Jornal Opção
Por que ler a “Eneida” (Editora 34, 896 páginas, tradução de Carlos Alberto Nunes, organização e notas de João Ângelo Oliva Neto)? Desperta ela algum interesse em nosso tempo, passados mais de 2 mil anos de sua gênese? Obviamente, não em todos. Melhor dizendo, em muito poucos. Junte-se a isto a dificuldade para o entendimento do sofisticado texto, com palavras inusuais e em forma de poema épico. Contudo, a “Eneida”, escrita pelo poeta romano Virgilio (70 a.C.-19 a.C), cujo nome em latim é Publius Vergilius Maro, é um clássico da literatura antiga, uma sucessora e continuadora dos feitos dos heróis épicos da “Ilíada” e da “Odisseia”, do autor grego Homero.
O conceito do que é ser um clássico não pode ser definido em poucas palavras, o que seria excludente de seus variados e amplos sentidos. O escritor Italo Calvino (1923-1985), cubano de nascimento mas italiano por sangue e adoção, em seu livro “Por que ler os Clássicos” (Companhia das Letras, 288 páginas, tradução de Nilson Moulin), preocupado em estabelecer o conceito de “clássico”, sugere 14 definições possíveis. Em cada uma delas são ressaltados alguns aspectos importantes, mas não todos ao mesmo tempo. A décima quarta definição apresenta-nos o clássico como sendo “aquilo que persiste como rumor mesmo onde predomina a atualidade mais incompatível.” Mas, adiante, ele diz mais: “Os clássicos servem para entender quem somos e aonde chegamos”.
Inúmeros autores elaboraram definições sobre o que é uma obra clássica. Jorge Luis Borges, brilhante e erudito escritor argentino, em seu ensaio “Sobre os Clássicos”, inserto em “Nova Antologia Pessoal” (Companhia das Letras, 344 páginas, tradução de Davi Arrigucci Jr., Josely Vianna Baptista e Heloisa Jahn), diz que “clássico é aquele livro que uma nação ou um grupo de nações ou o longo tempo decidiram ler como se em suas páginas tudo fosse deliberado, fatal, profundo…”.
Por suposto, uma obra clássica deve conter conhecimentos sobre tempos, épocas, feitos que marcaram, de maneira importante, a trajetória humana, mesmo que tenham sido superados em etapas posteriores, mas que obtiveram a representatividade de seu tempo. Pode também ser um livro que, simplesmente, contenha a essência da alma humana em um punhado de versos. Uma obra clássica é aquela que contêm partes de nossa definição como humanos e do cosmos. Portanto, clássico é aquilo que nos define.
Virgilio, o autor da “Eneida”, é considerado o maior poeta do mundo romano antigo. Compôs esse poema épico em versos hexamétricos de 16 sílabas e em 12 cantos ou livros. Sua composição foi totalmente respeitada pelo competente tradutor Carlos Alberto da Costa Nunes (1897-1990), médico e erudito escritor maranhense, seu principal tradutor no Brasil até os dias de hoje, e conta com as excelentes notas de João Ângelo de Oliva Neto, edição bilíngue).
Do ponto de vista da práxis literária, segundo a crítica especializada, as epopeias são modelos de escrita exemplar. São extensos poemas, construídos na obediência da métrica e do ritmo do verso hexâmetro datílico.
A importância de Virgilio ultrapassa sua respeitada obra. É ele o poeta escolhido por Dante Alighieri (1265-1321), escritor e poeta italiano, para ser o personagem que o acompanhará ao mundo dos mortos (guiará Dante no Inferno e no Purgatório), à procura de sua amada Beatriz, em sua obra “A Divina Comédia” (Editora 34, 736 páginas, tradução de Italo Eugenio Mauro) — mais um fato para lhe conferir o status de clássico, agora não só como autor, mas como personagem da “Comédia”, posteriormente dita “Divina”, considerada por muitos como o clássico dos clássicos.
A rainha Dido e a “continuação” da “Ilíada”
Seis séculos após as epopeias homéricas, Virgilio constrói a “Eneida”, dando continuação à “Ilíada”, narrando a epopeica viagem de Eneias, herói troiano e filho de Anquises e da deusa Vênus ou Afrodite, mas derrotado na Guerra de Troia. O poeta lamenta o sofrimento do guerreiro Eneias, imposto pela deusa Juno, esposa de Júpiter. Sua ira o perseguirá durante todo o seu vagar, até à fundação de Roma.
É na “Eneida” que se encontra a descrição do estratagema do Cavalo de Troia, apenas mencionado na “Ilíada”. Esse episódio e a destruição total de Troia são relatados no início do poema, bem como a fuga de Eneias, para poupar a própria vida, a de seu filho Ascânio e a de seu pai Anquises, tendo sido sua mulher, Creúsa, filha de Príamo, rei de Troia, morta pelos gregos.
A “Eneida” descreve as gestas de Eneias, após terminada a guerra, e suas aventuras e experiências extraordinárias. Um périplo semelhante ao de Ulisses na “Odisseia”. Eneias diferenciou-se dos heróis mitológicos gregos, Ulisses e Aquiles, por ter uma personalidade mais humana e não violenta.
Durante a longa viagem marítima com sua frota de embarcações, deixando para trás os escombros de Troia, totalmente destruída pelos gregos, Eneias aporta na ilha de Delos, santuário do deus Apolo, onde receberá do deus a incumbência de ir para a Itália e fundar a cidade de Roma. Para cumprir os objetivos estipulados por Apolo, apoiado por Júpiter, Eneias abandona a rainha Dido, apaixonada por ele e fundadora da cidade de Cartago, no norte da África. Não suportando a perda do amado ela se suicida, queimada em uma gigantesca pira à beira-mar enquanto os navios do troiano se afastavam.
Durante a viagem Anquises, pai de Eneias, morre. Querendo rever o pai morto, Eneias penetra no mundo dos mortos, acompanhado por Sibila, sacerdotisa de Apolo. Às margens do Rio Letes Eneias encontra seu pai, que lhe mostra as almas, chamadas de Manes pelos romanos, daqueles que no futuro reencarnarão e serão figuras proeminentes na história de Roma, como alguns dos imperadores e legisladores romanos.
Esta viagem de Eneias ao mundo dos mortos, no interior da terra, provavelmente serviu de inspiração a Dante Alighieri para compor “A Divina Comédia”. Na obra de Dante, a narração sobre o mundo inferior é o tema central do livro, escrito dentro da visão e doutrina católicas, e não pagãs.
Depois de muito navegar, os troianos finalmente chegam às terras itálicas ou Lácio, onde viviam os latinos. Iniciam-se as guerras de conquista, até à posse final do território e a construção de Roma, onde antes era a cidade de Palanteia. Eneias, vencedor nas batalhas contra os latinos e rútulos, que tinham Turno como seu líder, casa-se com a princesa Lavínia, filha do rei Latino, e estabelece-se na região, juntamente com seu povo, os troianos, também chamados dárdanos e teucros.
A Guerra de Troia, descrita na “Ilíada”, teve como causa o rapto de Helena, esposa de Menelau, por Paris, príncipe de Troia. Na “Eneida” houve situação semelhante envolvendo a disputa por uma mulher pois Turno, apaixonado por Lavínia, não se conformou com perdê-la para Eneias, iniciando então as batalhas contra ele e os troianos.
Tal como os hebreus, que conquistaram a Terra Prometida por orientação e promessa divinas, também os troianos se apossaram das terras do Lácio, por ordem do deus Apolo.
Ao escrever a “Eneida”, Virgilio quis dar a Roma e aos imperadores Cesar e Otaviano Augusto uma origem divina, conferindo ao Império Romano um lastro de nobreza heráldica. Ao imenso poderio romano foram acrescentadas as láureas do Olimpo greco-romano. Eneias e seu filho Ascânio são tidos, por Virgilio, como sendo os fundadores de Roma e ancestrais dos primeiros imperadores romanos. A lenda de Rômulo e Remo, sobre a fundação de Roma, foi modificada por Virgílio, à qual inseriu a progênie de Eneias. A ficção misturou-se à outra ficção e à história.
No entanto, os contemporâneos de Virgilio sabiam da não veracidade desta versão explicativa da gênese de Roma, mas se encantavam com a fantasia que lhes dourava o passado, criada pelo grande e amado poeta de seu tempo.
A “Eneida” é considerada superior às epopeias homéricas do ponto de vista da construção poética, nela mais bem elaborada. No entanto, é inferior quanto à originalidade e criatividade, baseada que foi nas obras de Homero, “Ilíada” e “Odisseia”. Da “Ilíada” ela reproduz, ipisis literis, vários versos.
Considerar as epopeias homéricas e a “Eneida” como o suprassumo da fantasia e da ficção criativa não é exagero. Toda a literatura posterior a elas, por mais fantástica que possa ser, não atingiu a intensidade criativa que estas epopeias nos oferecem. A complexa interrelação entre deuses e homens, própria do mundo pagão pré-cristão, e os feitos fantásticos e sobrenaturais, produzidos como favorecimento ou punição dos deuses aos mortais, dão o toque surreal e mágico ao mundo da literatura pagã.
Com o passar dos séculos, as explicações lógicas e empíricas da História e da Ciência irão dar por findo o mundo mágico. Aos poucos a Ciência assume sua supremacia no desvendamento da realidade histórica. O Iluminismo inicia e cumpre a função de guiar e iluminar os caminhos do desenvolvimento humano. Um dos preceitos do Movimento Iluminista foi o de desvencilhar da História as crendices e explicações mágicas, aquilo que não pertencia às comprovações documentais e científicas.
Mas o desencantamento do mundo mágico não trouxe à literatura, como a “Eneida”, o desfavorecimento literário. Ao contrário do que se possa supor, o gênero literário de Homero e de Virgílio representa uma fase e experiência brilhantes no que se refere à criatividade imaginativa. A “Eneida” e as epopeias homéricas representam o pensamento do mundo de sua época e, como tais, são joias enriquecedoras da Literatura Mundial.
Um dos objetivos do saber literário é encantar e alegrar a alma humana, afastando o foco na realidade tangível, nem sempre agradável, e dando-lhe o alimento que satisfaça o seu lado lúdico, imprescindível para sua sobrevivência e para o bem-viver. A “Eneida” faz isto muito bem.
Marina Teixeira da Silva Canedo, crítica literária e poeta, é colaboradora do Jornal Opção.