A embarcação chinesa e os estípites do Uricuri

07 junho 2020 às 00h00

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Quero garantir a segurança de ter à mão o manual de sobrevivência que me possa informar sem negar fogo que a papa feita com os estípites do uricuri é bró
Everardo Leitão
Você sabia que embarcação chinesa de uma só vela se chama fné? Eu também não, mas nunca se pode prever quando um conhecimento virá a ser útil. Por isso, aprendi. Já faz uns doze a treze anos que aprendi isso e ainda espero o dia em que interromperei alguém desesperado para dizer que, sim, sei o que ele está querendo saber. “Essa embarcação se chama fné”, eu informaria com um sorriso aberto, ainda não decidi se com ênfase comemorativa ou com a calma desligada das pessoas humildes.
Mas até agora nada do tipo aconteceu. Apesar da ajuda que carrego na ponta da língua, até agora não pude ser dessa utilidade para ninguém, até agora não pude acalmar essa aflição em nenhum descabelado. Estou quase acreditando que não se viaje mais em fné. Ou, pior, que essa gente ignorante esteja embarcando em fné como se estivesse tomando um saveiro, um birlinn ou um palhabote avariado.
Espero que não, mas não posso descartar. Do mesmo modo que nunca pude nem quis descartar o livro de Durval Mello que me apresentou ao fné e que comprei num sebo. Ao contrário, mandei até encadernar. Hoje a capa é vermelha com letras douradas, uma das quais o encadernador comeu para tirar o gosto de dois acentos agudos engolidos antes.
De vez em quando, folheio aquela primeira edição, que é de outubro de 1950. Estão ali umas 240 páginas com palavras de uma sílaba só e o respectivo significado charadístico. Isso mesmo: o “Dicionário Charadístico Monossilábico” lista por óbvio apenas palavras de uma sílaba e é “um precioso auxiliar para todos os que se dedicam à decifração enigmística”. Você não pode ignorar que naquela época o charadismo atravessava “uma fase de franco progresso” em que “obras como esta” se tornavam “cada vez mais necessárias”. Eu mesmo sou prova dessa imprescindibilidade, a ponto de não dar, emprestar ou vender meu precioso exemplar. Se algum necessitado aqui chegar sedento, não sairá de garganta seca, mas tomará o gole monossilábico debaixo de meus olhos vigilantes.
Nunca precisei do livrinho para saber que cachorro é cão ou que tudo o que impressiona o ouvido é som, mas quero ter a certeza de que, no dia em que tiver a necessidade de encontrar uma palavra monossílaba para sardanapalo, ele me dará não uma, mas três: ful, phul e a inesperada pul. Quero garantir a segurança de ter à mão o manual de sobrevivência que me possa informar sem negar fogo que a papa feita com os estípites do uricuri é bró. Antes de ler Durval, perdi a conta das vezes em que passei pela frustração de ver o maço de estípites murchar na geladeira por não saber em que papa cozinhar o ingrediente. Hoje posso confessar, como um ex-viciado dando testemunho na igreja, que me livrei da perdição dos estípites.
Você nem imagina como me conforta ter um vigilante estrito que não me deixa confundir tras e truz com có, visto que as duas primeiras podem ser gastas com qualquer pancada, mas a última só acerta o alto da cabeça.
Como toda primeira edição, tem suas incompletudes, ainda que poucas: embora já apetrechado a desmascarar uma grés que tente negar ser uma saraiva miúda, fico com o flanco aberto por não saber como lidar com as saraivas de outro porte. Minha esperança é que as saraivas média e grande sejam nomeadas por palavras de duas sílabas para cima, porque aí tenho tempo de esperar as novas obras de Durval Mello, “um dos máximos expoentes do charadismo luso-brasileiro”.
Por enquanto me basta saber que, quando eu estiver aflito para unir a manhã com a tarde e passar por cima de um tchiu sem perceber, o livrinho aqui estará para me chamar a atenção. Como você vê, nem que eu quisesse, poderia viver sem ele.
Everardo Leitão é professor de português e autor do livro “Guia do Idiota Globalizado”.