“Precisamos de algo melhor que a psicanálise: sob a lei do possuidor do maior número de artefatos é que prosperam as doenças e os enfermos”

Mariza Santana

Ler um romance clássico é sempre um desafio. E escrever uma resenha literária a respeito da obra é ainda mais desafiante. Geralmente, a linguagem utilizada pelo escritor é mais rebuscada, ou não é tão direta quanto estamos acostumados nesses tempos de redes sociais, textos curtos e literatura de massa, com seus best-sellers. Por isso, avancei nas páginas de “A Consciência de Zeno” (Nova Fronteira, tradução de Ivo Barroso), do escritor italiano Italo Svevo, com certa reverência e muito cuidado.

Italo Svevo: escritor italiano

Publicado pela primeira vez há exatamente um século, o romance é relatado na primeira pessoa, pelo personagem Zeno, que inicialmente fala de seu vício pelo cigarro e de suas doenças imaginárias, sobre as quais vamos perceber que são menos físicas e muito mais de caráter existencial. Em seguida, seguimos suas confidências sobre como se casou com Augusta, embora desejasse se unir à irmã dela, Ada.

No romance, o protagonista confessa suas infidelidades conjugais e nos apresenta sua amante, detalhando como a conheceu e como o caso terminou. Depois o leitor acompanha o desenvolvimento da sociedade comercial com o cunhado Guido, aquele que se casou com a desejada Ada, e os sentimentos ambíguos que nutria em relação a ele. No fim, percebemos que todas as confidências de Zeno fazem parte de uma memória escrita por ele, atendendo à recomendação do seu psiquiatra. E logo sinaliza que deseja abandonar o tratamento, mas não deixa de escrever suas confidências.

Zeno é herdeiro do negócio comercial do pai, do qual usufrui os lucros, mas que ele próprio não administra, ficando a cargo de um funcionário de confiança de seu progenitor. Sua parceria comercial com Guido também não é um negócio, fica mais próximo de uma camaradagem e o escritório parece um local para onde ir e espantar a ociosidade.

Seu casamento com Augusta é relatado de forma superficial, como se a mulher fosse um apêndice da vida burguesa sem sentido que leva em Trieste, na época uma cidade do império Austro-Húngaro, hoje Itália. Mesmo um século atrás, Zeno transmite uma sensação de inquietude, um mal-estar que ainda carregamos no século XXI. Por isso, o romance parece tão atual, embora os fatos relatados sejam de cem anos atrás.

No capítulo final, situado em 1916, Zeno anuncia o início da Primeira Guerra Mundial na região onde mora e como o conflito começava a interferir no seu modo de vida, pois teve de se separar da família. Entretanto, o que mais me chamou a atenção foi a visão de futuro de Zeno/Svevo. Confira esse trecho: “Precisamos de algo melhor que a psicanálise: sob a lei do possuidor do maior número de artefatos é que prosperam as doenças e os enfermos”.

James Joyce e Italo Svevo: os escritores irlandês e italiano foram amigos | Foto: Reprodução

E o texto segue: “Talvez por meio de uma catástrofe inaudita, provocada pelos artefatos, havemos de retornar à saúde. Quando os gases venenosos já não bastarem, um homem feito como todos os outros no segredo de uma câmara qualquer no mundo, inventará um explosivo incomparável, diante do qual os explosivos de hoje serão considerados brincadeiras inócuas”. Será que o escritor previu a criação da bomba atômica? Se não o fez, certamente a descrição é bem semelhante.

Italo Svevo é o pseudônimo de Aron Hector Schmitz (italianizado para Ettore Schmitz). Nascido em 1861, em Trieste, morreu em 1928, em Mota de Livenza, também território italiano. Foi o quinto de oito filhos de uma abastada família judia originária da Alemanha. O romance “A Consciência de Zeno” é a sua obra mais conhecida. “Senilidade”, publicado em português, é outro livro do italiano que a crítica consagrou.

O escritor era amigo de James Joyce, o escritor irlandês que escreveu “Ulysses” e “Finnegans Wake”.

Mariza Santana é jornalista e crítica literária. Email: [email protected]