A Bagaceira, de José Américo, influenciou Jorge Amado, Zé Lins, Graciliano e Guimarães Rosa

07 julho 2024 às 00h00

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Edmar Monteiro Filho
Alguém disse que a melhor década da música pop vai de 1965 a 1975. Revirei meu arquivo mental: canções ouvidas na infância e na adolescência; os velhos discos de meu irmão; os repertórios das rádios Mundial e Excelsior; fitas cassete gravadas com o microfone colado aos autofalantes do velho Transglobe, tudo somado a descobertas feitas ao longo dos anos até os dias de hoje. E acabei concordando.
Os argumentos para defender a tese são inúmeros. Bastaria citar nomes e títulos, cuja lista interminável tornaria o artigo uma espetacular parada de sucessos. Penso que o rock e o pop desse período traduziam com precisão a atmosfera de descontentamento e insegurança que aflorava por obra das promessas de prosperidade e paz não cumpridas pela sociedade de consumo. Talvez por isso a explosão de criatividade que caracterizou a música produzida na época ecoe em tudo o que ouvimos hoje como música popular de qualidade. Assim, legítimo pensar que as turbulências sociais têm o pendor de estimular as antenas da raça.

Algumas sensibilidades especiais são capazes de capturar os ares de mudança tão logo começam a esboçar seus primeiros sinais, traduzindo-os como obras de arte. Dessa forma, muitas vezes criam as condições para que certas transformações efetivamente se concretizem. A obra artística é, então, uma forma única de compreender o universo e o tempo em que foi gerada, por vezes de forma muito mais precisa que longos tratados sociológicos. Por isso, a importância de conhecer os clássicos, no sentido que a palavra “clássico” possui para o autor italiano Italo Calvino, qual seja: aquelas criações capazes de multiplicar seus significados ao longo do tempo. O romance “A Bagaceira” (José Olympio, 306 páginas, de 1928), de José Américo de Almeida, é uma dessas obras.
O livro é considerado precursor da literatura regionalista nordestina, ao lado de “O Quinze” (de 1930), de Raquel de Queirós. Mostra, como outros textos dessa vertente, episódios da seca, seus dramas, o perverso mecanismo de exploração da miséria e a violência daí decorrente. Na história, o filho de um senhor de engenho de açúcar da Paraíba, estudante de Direito em Recife, passa férias na propriedade da família. O olhar que direciona para o mundo de sua infância sofre a influência das ideias adquiridas na cidade grande. As centenárias estruturas de trabalho e poder representadas por seu pai e pelos empregados da fazenda incomodam-no, chocando-se contra suas novas convicções. A mentalidade romântica do estudante revela-se especialmente tocada pela natureza ao redor do engenho, pelo sofrimento dos deserdados da seca e por uma bela retirante, cuja família encontra abrigo na propriedade.

José Américo de Almeida não se limita a narrar as consequências trágicas decorrentes desse envolvimento, nem a compor o retrato de um povo que encara resignadamente o sofrimento causado pela seca e o mando desmedido do patrão, mas que lava com sangue as afrontas à honra. O que está em discussão é a própria concepção de literatura. Ainda que determinadas cenas e descrições presentes no livro apareçam ainda tingidas de cores românticas, exibindo uma visão idealizada da natureza e do amor, próprias do final do século XIX, aqui cabe confrontá-las com uma temática e um estilo caros ao Modernismo. Os diálogos entre Lucio e Soledade, numa linguagem coloquial que se imiscui pela linguagem literária, os sonhos do estudante de modificar a tecnologia utilizada no engenho, tudo na obra evidencia as lutas características da transição do arcaico para o moderno.
Jorge Amado declarou certa vez que “A Bagaceira” inspirou quase tudo o que escreveu. Já se disse também que o livro possibilitou as obras magníficas de José Lins do Rego, Graciliano Ramos e Guimarães Rosa. Tais autores voltam seus olhares para um sertão empobrecido — seja o sertão de Alagoas, Paraíba, Bahia ou Minas —, mundo da seca, das privações extremas, dominado pelo poder dos coronéis, mas, essencialmente, buscam reproduzir os sinais de seu tempo, momento de embate entre o passado rural brasileiro e a modernidade urbana.
Meu exemplar de “A Bagaceira”, de 1928, as capas puídas, a folha de rosto arrancada, ocupa espaço entre os clássicos na estante. O livro físico arruinado parece representar o campo onde se enfrentaram as grandes correntes em luta pela transformação do país. E de imediato, a fileira de lombadas sugere um paralelo, pois, na mesma estante, alguns LPs guardam as velhas canções de que mais gosto. Ouvi-las é disparar lembranças, sentimentos e reflexões, devassando o campo onde se trava a luta que travo todos os dias, em busca de uma melhor compreensão de mim mesmo.