A anatomia do fascismo segundo Robert Paxton
27 janeiro 2019 às 00h00
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Em obra primordial para entendimento do tema, o cientista político e historiador norte-americano perscruta a origem e o conceito em si, de modo a resgatá-lo para usos significativos e explicar melhor seu fascínio, sua complexa trajetória e seu horror fundamental
23 de março de 1919. Praça do Santo Sepulcro, em Milão, Itália. Benito Mussolini criava os primeiros esquadrões fascistas, os ‘Fasci Italiani di Combattimento’, grupos paramilitares embrionários do futuro Partido Nacional Fascista. De origem marginal, o movimento eclodiria durante o Verão de 1920, chegando a mais de 700 mil membros em 1922 e, com recurso à força e às ameaças, levaria Benito Mussolini finalmente ao poder em outubro naquele ano. No ano do centenário do regime, é emblemático e pertinente relembrar o pensamento de um de seus principais estudiosos.
“O fascismo foi a grande inovação política do século XX, e também a origem de boa parte de seus sofrimentos.” Essa é a assertiva que serve de ponto de partida para o cientista político e historiador norte-americano Robert Owen Paxton em “A Anatomia do Fascismo”, livro que em novembro de 2008 chegou na versão em português pela editora Paz e Terra e que atualmente é quase uma raridade, sendo encontrado exclusivamente em sebos e a preços dignos de sua condição.
Em seus escritos, Paxton perscruta, por meio de um minucioso raio-x, a origem e o conceito de fascismo, de modo a resgatar o termo para usos significativos e explicar melhor seu fascínio, sua complexa trajetória e seu horror fundamental. Antes tecer suas análises, Paxton detalha as circunstâncias para o surgimento do regime em Milão, com o apoio de veteranos de guerra, sindicalistas pró-guerra e intelectuais futuristas, alguns repórteres e um certo número de curiosos, presentes na sala de reuniões da Aliança Industrial e Comercial de Milão, com janelas abrindo-se para a Piazza San Sepolcro.
Em 5 de abril do mesmo ano, um grupo de amigos de Mussolini, incluindo Marinetti, o chefe dos Arditi, Ferruccio Vecchi, invade o jornal socialista Avanti, em Milão, onde o próprio Mussolini havia sido seu editor, entre 1912 e 1914, destruindo todo o seu equipamento. Assim, o fascismo italiano entrava na história por meio de um ato de violência, não apenas contra o socialismo, mas também contra a legalidade burguesa, em nome de um pretenso bem nacional maior. A origem fascista é explicada a partir de sua própria significação, sendo que a sua conotação é datada (de origem latina, fasces; significa feixe, autoridade e unidade do Estado) na Roma Antiga.
Três anos após a reunião da Piazza San Sepolcro, o Partido Fascista de Mussolini passa a ocupar o poder na Itália. Contudo, Mussolini não era um aventureiro solitário. 11 anos mais tarde, um outro partido fascista tomou o poder na Alemanha. Movimentos semelhantes surgem independentes do fascismo de Mussolini, mas expressando a mesma mistura de nacionalismo, anticapitalismo, voluntarismo e violência ativa. Ocorreu assim um fervilhamento em outras regiões do mundo, com aspirantes a ditador, que pensavam ser representantes de Mussolini e mesmo de Hitler. Assim, Paxton insiste na pluralidade do fenômeno histórico e diversidade da sua ocorrência.
Mobilização popular
Um aspecto muito interessante é a diferenciação que Paxton estabelece entre o fascismo e o que chama de “ditaduras comuns”, como as da América Latina e da África, ou a Espanha de Franco e Portugal de Salazar. Enquanto que regimes autoritários tradicionais querem apenas manter o povo em silêncio, e em casa, o fascismo aspira mobilizar a população.
O autor também descreve a imagem que o senso comum faz do fascismo – o demagogo e a multidão em êxtase, militantes uniformizados espancando minorias, marchas por cidades. Para ele, a impressão de que podemos compreender o fascismo examinando o líder que o personifica é falsa e propõe um modelo que examine as interações entre o líder e a nação, e entre o partido e a sociedade civil.
Dois modelos foram adotados para compreender o fascismo em relação ao capitalismo: um que considera o fascismo uma forma radical de anticapitalismo, e outro que o considera como uma ferramenta emergencial de sustentação do sistema vigente e da hierarquia social. A crítica ao capitalismo não era da exploração, mas a indiferença para com a nação. Eles rejeitavam a ideia de que as forças econômicas são o motor da história. Os fascistas não alteraram a hierarquia social, e confiscaram propriedades apenas de opositores políticos e estrangeiros. Quanto à substituição das forças de mercado pela administração econômica estatal, era apoiada pela maioria dos empresários durante a Grande Depressão.
As mudanças que o fascismo operou no poder foram revolucionárias na medida em que redesenharam as fronteiras entre o privado e o público, transformaram a prática da cidadania em cerimônias de afirmação e conformidade, reformulou as relações entre indivíduo e coletividade, de forma que o interesse comunitário fosse o do indivíduo. O fascismo teve uma relação ambígua entre a esquerda e a direita, mas nunca esteve numa posição de centro. Outra contradição entre a retórica e a prática fascista é a modernização: seu discurso era contra o secularismo materialista, os conflitos das grandes cidades, por uma utopia agrária. No poder, eles aceleraram o ritmo industrial.
Paxton propõe como método para a compreensão das discrepâncias entre o discurso e prática do regime fascista a fuga aos opostos binários; em seu lugar, sugere o acompanhamento da relação entre a modernidade e o fascismo ao longo de sua história. Segundo o autor, esses regimes buscavam uma modernidade alternativa: uma sociedade avançada tecnicamente, na qual as tensões e cisões da modernidade houvessem sido sublimadas pelos poderes fascistas de integração e controle.
Tal método, como lembra Paxton, remete a perguntas difíceis de serem respondidas, mas cujas respostas levam para longe de simplismos e clichês. Claro que o debate sobre o fascismo demanda, em algum momento, a elaboração de conceitos. Paxton, porém, pretende atingir esse estágio ao fim de uma jornada investigativa. A meta para se compreender o fascismo é partir de uma estratégia e não de um pressuposto estabelecido a priori.
Estratégias
No início do texto, Paxton já nos provoca com uma constatação: “Se o fascismo é uma ideologia, a maioria das respostas imediatas seria que sim. Até mesmo seus líderes nunca deixaram de afirmar que eram profetas de uma ideia”. Fascista é aquele que abraça a ideologia fascista – uma ideologia sendo mais que simples ideias, mas todo um sistema de pensamento subordinado a um projeto de transformação do mundo. Mas o fascismo era um “ismo” como os outros; socialismo, liberalismo, conservadorismo? Não.
Os “ismos” clássicos eram fundamentados em sistemas filosóficos coerentes, formulados no trabalho de pensadores sistemáticos e tinham seus programas embasados na filosofia. O fascismo não se baseia de forma explicita num sistema filosófico complexo, e sim no sentimento popular sobre as raças superiores, a injustiça de suas condições atuais e seu direito a predominar sobre os povos inferiores. Luta darwiniana.
A verdade era tudo aquilo que permitisse ao novo homem fascista dominar os demais, e tudo o que levasse o povo eleito ao triunfo. O fascismo não repousava na verdade de sua doutrina, mas na união mística do líder com o destino histórico de seu povo. O calor de pertencer a uma raça agora plenamente consciente de sua identidade. Os sentimentos coletivos, interesse grupal, se sobrepunham. Os líderes fascistas não faziam segredo de não possuírem um programa. Mussolini exaltava essa ausência. Foi só em 1932, após ter estado no poder por dez anos, e quando quis normalizar seu regime, que Mussolini formulou a doutrina fascista, num artigo para a enciclopédia italiana.
O poder vinha em primeiro lugar, à doutrina depois. Segundo Hannah Arendt, Mussolini foi provavelmente o primeiro líder a conscientemente rejeitar um programa formal, substituindo unicamente por liderança inspirada e ação. Em sua primeira fala publica como chanceler, Hitler ridicularizou aqueles que diziam “mostrem-nos os detalhes de seu programa”.
Os intelectuais tornaram possível imaginar o fascismo, ajudaram a pôr em marcha uma transformação emocional de dimensões sísmicas, na qual a esquerda deixava de ser o único recurso para os ofendidos e para aqueles inebriados por sonhos de mudança. Porém, a relação entre os intelectuais e um movimento que desprezava o pensamento era ainda mais desconfortável que a sabidamente espinhosa relação entre o comunismo e seus companheiros de viagens intelectuais.
Algumas hipóteses são levantadas com relação à formação e crescimento do fascismo. Alguns enfoques partem da crise para a qual ele era uma resposta, correndo o risco de transformar essa crise numa causa. Uma crise capitalista, segundo os marxistas. Outra vertente seria a de a crise fundadora como causada pela incapacidade do Estado e da sociedade liberal de lidar com os desafios do mundo pós-1914.
Enfim, em sua visão, o fascismo rejeita qualquer valor universal que não o êxito dos povos eleitos em uma luta darwinista por primazia. Nos seus valores, a comunidade vem antes da humanidade, e o respeito aos direitos humanos e aos procedimentos legais foi suplantado pelo serviço ao destino da raça.
Para onde vamos a partir daqui?
Seguindo o objetivo inicial de reavaliar e resgatar os significados do fascismo e de sua polêmica e complexa trajetória histórica, Paxton aponta os principais tipos de reações decorrentes da diversidade de suas manifestações constantemente adaptadas às particularidades culturais de cada nação e da dificuldade de definir seu conceito, sua essência ou o “mínimo fascista”.
A primeira consiste em abandonar o termo, renomear cada movimento e tratá-los como fenômenos separados. Em contrapartida, Paxton sugere o aprofundamento e não o descarte. Defende que todo fascismo se mobiliza contra algum inimigo e que é a cultura nacional que fornece a identidade desse inimigo. Por ser um fenômeno geral reforça a importância do termo por representar a novidade política mais importante do século XX (um movimento popular contra a esquerda e o individualismo liberal).
A segunda é exemplificada pela aceitação e classificação detalhada, mas superficial de suas variadas formas. Por último seria a idealização, de onde destaca o postulado do acadêmico britânico Roger Griffin: “O fascismo é um gênero de ideologia política cujo cerne mítico, em suas várias permutações, é uma forma palingenética de ultranacionalismo populista”.
Ambas são criticadas como visões estáticas e perspectivas isoladas. Paxton propõe uma análise das interações sociais que contribuíram ou resistiram ao fascismo e para tanto da coalizão com liberais e conservadores como movimentos que se transformaram em regimes e que se adaptaram segundo o ambiente nacional ou oportunidades do momento.
Estabelece então cinco estágios pelos quais pretende examinar e comparar manifestações do fascismo: criação dos movimentos; enraizamento no sistema político; tomada de poder; exercício de poder; sua radicalização ou entropia. Considerando que movimento percorre diferentemente esses estágios e de maneira multidirecional.