Da mesma forma que a poesia foi possível depois de Auschwitz, a poesia mostrou-se não apenas possível, mas necessária, durante a pandemia

Cemitério em Manaus | Foto: Reprodução

O filósofo e compositor alemão Theodor W. Adorno (1903-1969) teve erros e acertos em sua trajetória intelectual. Um de seus equívocos mais evidentes foi a declaração de que considerava impossível a escrita de poesia pós-Auschwitz. Obviamente, a frase não deve ser entendida em um sentido literal, mas aqui não é o espaço para discutir suas linhas e entrelinhas. O fato é que a poesia é necessária para pensar, expor, ressignificar, estetizar todas os aspectos da experiência humana. Inclusive as tragédias, pessoais ou coletivas, como a pandemia do novo coronavírus. É neste espírito que o Jornal Opção organizou uma seleção de poemas escritos por autores goianos e convidados de fora do Estado explorando esse tema. As possibilidades se mostraram infinitas, de grande sensibilidade e senso estético. Da mesma forma que a poesia foi possível depois de Auschwitz, a poesia mostrou-se não apenas possível, mas necessária, durante a pandemia.

O Grito, de Edvard Munch

Mais de 420 mil brasileiros morreram devido complicações derivadas da Covid-19. Trata-se de uma “guerra” das mais letais. Os poetas, com as armas de que dispõem — a palavra, as palavras —, dão uma resposta estética (e crítica) imediata ao que está acontecendo. Os 30 poemas reunidos com o auxílio imprescindível do escritor, historiador e professor Ademir Luiz, presidente da UBE-Goiás, merecem ganhar uma antologia. Direta ou indiretamente, os poemas são uma espécie de crônicas (com alto grau de refinamento) de mortes e descasos anunciados. Muitas mortes poderiam ter sido evitadas, se o país tivesse um presidente da República menos errático. No poder, Jair Bolsonaro se comporta como um mensageiro da morte. Depois da pandemia, se ganhar estátuas nas portas de alguns cemitérios, que ninguém fique surpreso. Talvez a história o “homenageie”, no fundo, como um dos próceres da República dos Cemitérios.

Pintura de Tommy Ingberg
1
Eis aí o humano homem
Miguel Jorge

EIS AÍ AS HORAS QUE POR POUCO NÃO FICARAM PRESAS

NOS ESPAÇOS. EIS AQUI OS PÉS, SAPATOS, ALGUMAS PEÇAS

DE QUEM NUNCA PODERIA ESTAR ALI, NAQUELE ENTARDECER

DE NOITE. EIS AI O TUDO DO HOMEM. A SUA UMANIDADE QUE

PARECE POUCA PARA SE FAZER DELE O REI QUE DESEJAVA SER.

 

Eis ai o humano homem! O cheiro podre da cidade o devora.

Como se devora o que não se vê o que se corrói por dentro.

As faces das facas que, agudas, refazem os fios das mágoas.

 

Eis ai o humano homem!

Possui-se agora, o que se descarta amanhã.

É só o que se tem o que se chega o que se resta.

O desejo, fogo fátuo, exorciza conscientes egos:

Carros, carros, carros. As marcas dos cheques registradas

Em suas bundas.

 

Nunca! Jamais tão valiosos esses caros carros,

Presos à coleira de minha, sua, nossa gola!

Do livro inédito “Os Passos da Cidade”, de Miguel Jorge, membro da AGL.

Pintura de Mike Davis
O soneto da morte enfurecida
Edival Lourenço

Como se a morte o império proclamasse

Mas o cisne a nadar na superfície

Nem percebesse a fuga da meiguice

Que o lago sóbrio ainda aparentasse

 

E de repente a pluma esvoaçasse

E a tarde azul se enchesse de imundície

Regrando o mundo o mal com estultice

Pra tudo o que fosse íntegro babasse

 

Numa tragédia que ninguém previsse

A nova peste um cão feroz gerisse

Para que maior número matasse.

 

A morte vem qual lâmina rapace

O horror da vida mostra a fera face

E o condor plana à tarde na planície.

Edival Lourenço é membro da AGL.

O fim do mundo, de John Martin
3
Fúria de monstros
Lêda Selma

Súbito, visões apocalíticas

dessepultam profecias.

 

Das trevas, assomou,

voraz, bafio virulento

(cores vivas, brilhantes),

o monstro invisível

faminto de dores e de gente.

 

Os dias se enredaram

no bico do corvo.

 

Enquanto o sol,

nas sombras, definhava,

anônimas vidas, a esmo,

apodreciam sentenciadas

ao degredo sempiterno.

 

O luto, a cor dos dias.

Das lágrimas, o vermelho.

 

Recortada em campas

de fundura infame,

a terra escancarou a boca

e engoliu corpos

estigmatizados e inanes.

 

Nas ruas, estatelada,

a honra da miséria humana.

 

De joelhos e mãos postas,

a mendigar milagres

e o socorro da ciência,

o mundo assistia à tragédia

da humanidade dizimada.

 

Do planalto, o monstro emergiu.

Crocitar de corvo.

 

Zombou da vida

e da esperança

com sarcasmos e delírios.

Algoz, riso de hiena, viu

as mortes em cortejos sinistros.

 

Sepulcro dos mortos do carrasco?

O esplêndido berço do florão da América!

Lêda Selma é membro da AGL.

Pintura de Rudolf Brink
4
Impossível traqueostomia do caos
Ubirajara Galli

Tudo que nasce

tem um tempo

de validade.

Por atos próprios

ou por imitação néscia

do falso mito.

 

No hipódromo do caos

não há páreo

para o vírus montando

a besta do apocalipse.

 

Por ignorância

ou ideologia,

ainda as duas coisas,

não há traqueostomia

que oxigene a vida.

 

No abatedouro de alvéolos,

menos mal para Pilatos,

que lavou as mãos.

 

Nos secos mananciais

da ignorância,

somos peixes fora d’água,

sem ritos de despedidas

despejados nas locas finais.

 

A morte solitária,

é a somatória de muitas mortes.

Desnecessário perguntar aos mortos,

se dói mais morrer sozinho.

Ubirajara Galli é presidente da AGL.

A queda dos anjos rebeldes, de Pieter Bruegel
5
La bête de somme*
Delermando Vieira

Naqueles outros tempos, até então, eu só me movia e me ouvia, ao que em paz e alegria me comovia

o coração.

A Luz Maior ainda pairava sobre as cidades, os campos, os rios, os mares, as lavouras e as estradas do Mundo. Mas eis que, tão de repente, la Bête de Sommea Besta, com sua coroa surgiu, vindo das antigas terras do Oriente, talvez de Hwran, carregando em seu lombo a Ânfora e seu pó maldito, eivado de tênebra peste. Em seu galope de silenciosa explosão, tropeçou, deixando cair e quebrar essa Ânfora; e seu pó, avec un tour de passe,** se esparziu sobre tudo o que era Hausto de Deus, aos olhos e às narinas dos Homens.; e covas, então, foram abertas, inúmeras, milhões delas, sobre a face da Terra. Só em minha pátria foram mais de quatrocentos mil! E muitos foram aqueles que viajaram para sempre! Para nunca mais voltar! E doeu, e como doeu! Não como dói a dor de dor nenhuma, mas como dói, e tanto rói, a lasca, que se descasca à verruma

de um imenso vazio, cujo nome é ausência!

Delermando Vieira é membro da AGL.

*la Bête de Somme: do francês, besta, animal de carga.

**avec untour de passe: do francês, com um passe de mágica.

6
Em memória dos que se foram
Valdivino Braz

Pudera, oh, quem dera, sob os céus,

não houvesse o triste adeus

por conta do plantio dos corpos,

nem o pranto, todo pranto pelos mortos,

deles tantos que morrem sem socorro.

 

Ao poeta John Donne recorro:

“Não perguntes por quem os sinos dobram,

eles dobram por ti.” Dobravam pela vida,

dobram agora pelos dias findos —

finados os dias, quantas vidas perdidas!

 

“A morte de todo homem nos diminui”,

dizia John Donne, com sapiência.

Todos os homens, todas as mulheres, todas as crianças,

todos que se foram, até por culpa de cúpula,

negligência, indiferença, ignorância

dos inimigos da Ciência.

 

Tempos burocratas, políticos e perversos.

Os lenços do tempo, secar pudessem

os lagos de lágrimas nos olhos da vida.

Ainda que a vassoura dos ventos varresse

Tamanha dor da memória, não varreria o lixo

das hordas de uma história sórdida.

 

Os sinos dobram, com tristeza,

pela dor de todas as perdas,

já para mais de quatrocentas mil

vidas ceifadas, senão outras (possa que não)

que ainda virão. Oh, mal-amada,

Pátria amada, Brasil!

Valdivino Braz (ainda) é membro da AGL.

Pintura de Edward Hopper
7
Antes do amor começar
Maria Helena Chein

Os olhos, talvez, marrons,

as mãos, vislumbrei macias,

o coração, pensei em altar.

Era esse o seu retrato.

Marcamos um vinho,

troquei as flores do jarro,

vesti-me de beleza.

Mas a pandemia chegou danosa,

antes do amor começar.

 

Confiamos no tempo, nas cores,

na alegria das vozes e escutas,

e assim nos guardamos.

A pandemia prosseguia

cheia de medos e mortes,

nos arredores do mundo.

 

Anunciamos o fim

da espera dentro do corpo,

do querer dentro da vida.

Fecharam-se as portas.

Por caminhos diferentes

nossos passos se afastaram,

e recolhemos o silêncio e o absurdo

da saudade que não desiste.

Maria Helena Chein é vencedora do Prêmio Hugo de Carvalho Ramos.

Pintura de Edward Hopper
8
Isolados
Sônia Elizabeth

Instalou-se nesse mundo

um vírus sem leveduras:

você fica em sua casa,

eu fico na casa minha.

Nossas mãos só se encontram

Pela tela nebulosa

De um smartphone antigo.

Eu beijo a sua boca

Pelo emoji vermelho

Que coloquei favorito

Na coleção do meu zap.

E prometo, redundante:

não vou lhe trair jamais.

Sônia Elizabeth é vencedora do Prêmio Hugo de Carvalho Ramos.

Pintura de Edvard Munch
9
Uns que vão…
Getúlio Targino Lima

Fico a me perguntar: por que fulano,

Entre tantos milhões, foi separado

E, atendendo o divinal chamado,

Deslocou-se daqui a outro plano?

 

Deixou família, amigos, foi levado,

Num aparente ato desumano,

Ficando para nós o desengano,

Da ausência e da dor – triste legado.

 

Mas no alto, no topo desta escada,

Deus está, decidindo nossa trilha,

Encaminhando em nós nossa jornada!

 

Sim, pois aqui, na hora da partida,

A dor estonteante que te humilha

É a ponte que te leva à nova vida.

Do livro inédito “Lições do Abismo”, de Getúlio Targino Lima, membro da AGL.

Pintura de Igor Morski
10
A máscara que uso agora
Cristiano Deveras

A dor que me dói no peito

não é por conta de alguma infecção,

uma inflamação desenfreada,

ou o ar ter se tornado rarefeito.

 

A dor que trago em dobro,

é a dor de quatrocentas mil famílias,

pela suposta solidez da vida

que se esvai como um sopro.

 

Essa dor que não tem mais jeito,

nasceu em mim

quando o verde de teus olhos

refletiu na eternidade.

 

Hoje já não tenho mais medo:

a máscara que uso agora

é para ocultar o meu luto

e esconder minha saudade.

Cristiano Deveras é vencedor do Prêmio Hugo de Carvalho Ramos.

Pintura de Tommy Ingberg
11
Poema de Divino Damasceno

Eu tenho amor pelo amor

A dor dói no próximo.

A dor dói na dor

O poema é só um apoio

O poema é alguma coisa

Para descansar depois.

O poema é apoio da vida

O melhor poema para a pandemia é a vacina…

Divino Damasceno é vencedor do Prêmio Hugo de Carvalho Ramos.

Pintura de Edward Hopper
12
Do outro lado das paredes
Thaise Monteiro

Sabem mais de mim

essas paredes emudecidas

em sua brancura quente

acentuada pelo calor da tarde.

Conhecem-me insuportável

 

Apesar do calor

distribuído em 49 metros

quadrados ao redor do meu corpo

— mesmo corpo do ano passado

talvez mais magro

talvez mais pálido

talvez mais triste –

sinto frio

sintoma de doença outra

que a solidão inventou de inventar

 

Do outro lado das paredes

um vírus espreita a minha carne

poluída de silêncio e de certeza

não haverá justiça

aos que ainda cedo partiram

nem aos que ficaram atolados

na lama de lágrimas sobre

o solo deste país para onde

se for, não vá

que a paz colonizada

veste mortalha

verde e amarela

como o canário abatido

pelo gesto

dos que com as mãos

fizeram arma

Thaise Monteiro é vencedora do Prêmio Hugo de Carvalho Ramos.

Pintura de Julio Rabadán
13
“poema para cartaz lambe-lambe”
Léo Prudêncio

O amor

Não brota

Em tempos

De seca

Léo Prudêncio é poeta e compositor

14
Pintura de Vladimir Kush
de ouvido
Fernanda Marra

anota que o ar muda e varia

à janela o ruído a ruína

solvem átimos feras

atiçam a esfera

ferida

Fernanda Marra é poeta e pesquisadora.

Encontro, de Remedios Varo
15
Poema de Tarsilla Couto de Brito

(1)

o amor acaba

a mancha de água sanitária

no tapete CASA DE GENTE FELIZ

aumenta

(2)

o amor acabará

o amor comerá o reboco das paredes de nossa casa,

encherá de buracos a rua, derrubará postes, entortará portões,

quebrará uma das pernas da criança que joga amarelinha na calçada

(3)

o amor acabou

você nunca disse

eu li no diário oficial da união

(9)

o amor acabava

com a gente

brincava

de morto vivo morto

(14)

o amor acabando

não tem cor

não tem cheiro

não tem gosto de

fim

(24)

na pandemia

na poesia

no amor

não há outra finalidade

senão destruir todos os sentidos preconcebidos

(25)

quando isso acaba

eu & você

a pandemia

bolsonaro

Do livro “Sentimentos Carimbados”, de Tarsilla Couto de Brito, poeta e professora da UFG.

Mulher chorando, de Cândido Portinari
16 
Lágrimas da pandemia
Giovani Ribeiro Alves

O poema com o seu idioma

metafísico

dialoga com o tédio, no ápice

da uma tarde cinzenta, sob um outono

que lança

ares de lágrimas

nos adeus de despedidas precoces.

 

Quem diria

que a morte?

Tão insana,

Rainha da

agressividade,

tirana absoluta

do infortúnio

exercício de separar do

nosso convívio,

os nossos amados

que partem sem o direito

de nos abraçar,

tornou-se, agora, desgraça vil

da nossa rotina diária.

 

Até quando?

Iremos dizer incessantemente: meus pêsames,

Meus sentimentos?

Até quando? Os detentores do poder brincarão

com a vida humana? Como se esta dádiva mais sublime do Criador: A vida, se tornasse

para eles no abjeto mais

indigno de toda nossa

humanidade.

 

Só nos resta a

clamar: Misericórdia!  Senhor!

Giovani Ribeiro Alves é poeta e filósofo.

Pintura de Edward Hopper
17
Hoje
Eliézer Bilemjian

Hoje não tem ninguém lá fora

não pelo avançado da hora,

mas por uma coisa, assim tão pequena,

que poucos podem explicar (e entender).

E hoje algumas despensas

estão tão cheias de papel,

que nem mesmo três gerações em sequência

irão conseguir consumir.

Eu tenho aprendido a apagar minhas digitais

com um líquido abrasivo e inflamável,

claro que não tão inflamável quanto as redes sociais,

mas ainda assim inflamável.

 

Hoje já tem gente lá fora

não tanto por perder a hora,

mas porque o capitalismo não para de mandar boletos,

e é preciso se espremer sobre quatro rodas,

acenar no ponto e não tossir no rosto de ninguém,

nem mesmo daqueles que não reconhecemos,

por estarem mascarados.

 

Ainda tem gente lá fora,

mesmo apesar de estar na hora,

de ligar wifi

ligar webcam,

e conversar como se fosse normal:

assistir as aulas, fazer reuniões,

com forno ligado fazendo o pão,

que eu acabei de aprender.

 

Nem sei se tem gente lá fora

também já não marco a hora,

nem horas, nem dia, do mês ou semana,

nem sei se ainda sei contar.

E enquanto meu braço aguarda uma picada qualquer

reflito, se quando isso acabar

vale a pena continuar mantendo

distanciamento social de algumas pessoas.

Eliézer Bilemjian é poeta e arquiteto.

Pintura de Zdzisław Beksinski
18
Um quase apocalipse
Rogério Rocha

Ando pelas ruas vazias;

as pessoas estão em suas casas.

 

Consegui desatar as minhas

amarras.

E persigo alguma face

como perdida

em meio a todo esse

desastre.

 

Os sinais de trânsito piscam

intermitentes.

Nas rotatórias da vida não há mais carros.

Bares e casas noturnas já não nos perturbam

(é morta a algazarra).

 

Nas praças e bairros não vejo gente

mas sei que lá dentro dos muitos lares

há um mundo que pende em suspenso,

Com medo, indeciso, ansioso.

Na jornada que faço

nos rumos de uma

noite morta

sinto o vento morno

em meu rosto nervoso

e recebo seu abraço

amoroso

enquanto

respiro

mais fundo do que, em verdade, é preciso.

 

Nas tv’s, cobram-nos juízo,

mais isto e aquilo                   e aquilo.

Os noticiários anunciam

um quase                                apocalipse.

 

Mas não reclamo nem sofro:

sobrevivo.

 

E antes que penses em clamar por meu nome

ou investigar minhas entranhas

atrás de algum sentido não demovível

apresso o passo e corro mais rápido

que qualquer sentimento ruim.

Antes que as bombas explodam

no instante invisível

de um mundo incompreensível

que parece chegar ao fim.

Rogério Rocha é poeta e filósofo.

19
Janelas ao inverso
Solemar Oliveira

Há um menino que entende.

Conhece o poeta e o fim do dia.

Um menino desgarrado no tempo,

Mais agora que há dois anos.

Espreita.

Está em um espaço limitado.

Segue uma regra que o enquadra.

 

O menino, que se isola,

Vê o mundo da janela.

Da sua janela.

E, também, de janelas ao inverso.

Subverte a possibilidade que o implode.

Isolado, não sofre.

O que sente, não é uma novidade.

 

O poeta é o menino no fim do dia.

É o mesmo de outro tempo.

E torce os versos ao acaso.

Solitário, como sempre.

Ele, assim como o menino, sabe:

O pôr do sol é uma instância,

O crepúsculo é uma ideia.

O poeta é o fim do dia.

Confinado, ele brinca.

Isolado, ele pensa ser menino.

E entende.

Solemar Oliveira é vencedor do Prêmio Hugo de Carvalho Ramos.

Pintura de Jeff Christense
20
Tão pouco
Hélverton Baiano

Tudo então pequeno

gente de tão mera

vai diminuindo

o que réstia ou quimera.

 

Quanto se esvai

se a natureza expia

quem não se equilibra

pelos vãos da pia

 

Vai sumindo gente

pelo mundo pouco

fugindo ao rumo

que sangra o sufoco

 

Tanta coisa oca

nessa vida enfada

e vai preenchendo

o tudo com nada.

Hélverton Baiano é vencedor do Prêmio Hugo de Carvalho Ramos.

Pintura de Mike Davis
21
Morrer
Hélverton Baiano

Morrer é tão repentino

Às vezes é mais que um século

Morrer é a eternidade

Do que é vento e mistério.

 

Morrer é tanto lamento

No tanto que o rumo é incerto

Quem vive não vê por dentro

O que a morte tem de/certo.

 

Morrer, amigo, é propriedade

Em tudo e apenas de quem morre

Pois só o morto na verdade

Sabe o risco que ele corre.

 

Morrer é tão bom ou ruim

Que não se pode medir

Porque só quem morre sabe

A morte seu tanto sentir.

Hélverton Baiano é vencedor do Prêmio Hugo de Carvalho Ramos.

Pintura de Igor Morski
22
Monarquia da Morte
Ana Carolina Coelho

Começou como uma rachadura,

Pequenos avisos e pouca cobertura,

A vida seguia sem muita atenção.

Um dia, de súbito,

O pequeno Rei clamou sua “Corona”, cetro e reinado:

A Monarquia da Morte.

 

Frestas abertas com machados,

Restaram apenas sangue e ossos triturados,

Nada de bom veio desses rasgos,

Apenas dores e presenças sepultadas.

 

Sonhar é luxo,

Viver, ilusão em uma tela desbotada.

Das rachaduras feitas no Tempo,

“Dias de Sol, Beijos e Sorrisos” esvaneceram,

Pedaços virais adoecidos.

 

Nossas memórias riem de nossa antiga pressa,

Hoje, a vida existe aprisionada,

Medo e sofrimento reinam soltos nas ruas.

As nossas Certezas gargalham isoladas,

Gralhas enlouquecidas no cárcere social.

 

Amanhã é Ontem,

E o Hoje nunca chega.

“Não vai passar”

Afirmam as Incertezas,

Não há “normal” para retornar.

Ana Carolina Coelho é poeta e professora da UFG.

Pintura de Igor Morski
23
Quarenta dias
José M. Umbelino Filho

um dia ruim, um dia bom

um dia bom, um dia ruim

às vezes, um dia péssimo

às vezes, um dia ótimo

um dia da caça, outro do caçador

um dia de luto, um dia de luta

um dia de glória!

um dia de chuva

um dia sem fim, um dia que já passou

um dia lindo lá fora

um dia feio aqui dentro

um dia de sol!

um dia bom, um bom dia

um dia de rei, um dia de cão

um dia que não cabe

um dia que não sabe

um dia que não.

um dia a dia

um dia como qualquer outro

um dia comum

um dia de folga, um dia de festa

um dia foda

um dia perdido, um dia achado

um dia vendido

um dia roubado

uma noite estrelada!

um longo dia

menor que um segundo

maior que um mês

um dia bom, um dia ruim

um dia ruim, um dia bom

um dia de cada vez

José M. Umbelino Filho é vencedor do Prêmio Hugo de Carvalho Ramos.

Pintura de Igor Morski
24
Ventos cinzentos
Itaney Campos

De súbito, na tarde de aparente

calma, irrompeu o vento ruidoso

que tornou o mundo silencioso

e lacrou o abraço de nossa gente.

 

Mesmo assim as estátuas deliravam

de febre, pássaros atordoados

caíam de um céu de chumbo, e voavam

por entre as cinzas de grandes tornados.

 

Aranhas teciam fios noturnos

inoculando as manhãs de tons soturnos

infiltrando na terra o seu veneno.

 

O medo transitava pelas praças,

arrombando portais, em arruaças

perversas, rugindo qual fora o demo!

Itaney Campos é membro da AGL.

Pintura de Salvador Dalí
25
Esta é a hora, poeta                      
Itaney Campos

É nesta hora, poeta, quando aves negras vagam pelo céu,

em círculos macabros,

que urge a voz da poesia

e, no temporal infectado,

se requerem os sons curativos do poema!

É agora, poeta, quando a cinza do silêncio e do medo recobre as ruas, os tetos, penetra nos olhos congelados nas varandas, que a poesia deve levantar- se como temporal

que lava a noite e a febre do amanhecer.

Este é o território das lágrimas, das algas, do lodo, o espaço das sombras e da pátina,

o templo do engano e do medo.

É a noite da pessoa sozinha. Não vê, poeta, as mãos não se tocam,

os abraços não alçam voo, os lábios se contraem, repugnados.

O medo da noite interminável

paralisa os gestos solidários.

Os discursos amorosos despetalam-se ao golpe frio do inesperado.                                Onde está sua música, poeta?

Desafinou-se ao menor ruído dos ventos poentes?

Silenciou-se ante o retardo da manhã?

Desfralda o seu verbo, poeta,

desata a sua verve,

que só essa é capaz de iluminar a secura da relva.

Não subestime o gume afiado da poesia,

nem o peso indelével da sua voz, agente poderoso

a purificar o humano convívio!

É agora que quero vê-lo, poeta, destemido, encarando de frente as parcas, as farsas, a fúria das armas e dos fados.

Vê as hordas de anciãos marchando para o abismo?

Vê o turbilhão de crianças desfilando sem rumo?

Esta é a hora, poeta, de desvendar a capacidade de sonhos,

por maior que seja o pesadelo que nos atropela!

É hora de desfraldar a coragem,

para que não se contagiem os acordes de sua lira

pela enorme sombra do invisível!

Itaney Campos é membro da AGL.

Persistência de memória, de Salvador Dalí
26
Ot cep sorte rounít noc
José Fábio da Silva

A parede da memória insiste em projetar novas narrações. Outras duas têm início. A primeira, conta as aventuras de um amigo de longa data. Aquele que não percebemos a presença, mas sentimos o peso da ausência. A segunda, narra a saga de alguém digno de ódio. Um inimigo no sentido puro da palavra. Do tipo que nem que nem uma tragédia gera consternação.

Ambas têm início com seus protagonistas tão distantes que não é possível distinguir um do outro. Depois, surge um épico, um romance, uma novela, um conto, uma fábula, e outra, e outro e outras… incontáveis. Não é mais possível saber quais delas foram cultivadas por nossas recordações. São tantos começos idênticos que todos parecem viver uma só biografia. Números incalculáveis entram para história, os que ficam padecem de lembranças.

Um aglomerado de ações não lineares editadas pela memória diante de projeções. Sem roteiro prévio, assistimos o desenrolar de enredos alheios. Mesmo de almas pequenas, viver ainda vale a pena. Não devido um motivo, um sentido ou uma força maior para isso. A vida é uma circunstância em busca de causas. Nem chega a ser uma história. Só ganha forma quando finda o desenrolar de seu protagonista. A morte trabalha em retrospecto. Escreve as narrativas, mas começa pelo ponto final.

José Fábio da Silva é membro da Academia Anapolina de Letras

Pintura de Igor Morski
27
Dois sonetos
Fabrício Clemente

I

enfermaria

Os mortos que não choras neste ano

vão uivar, noite inteira, as estações.

Pouco importa quem são. Os corações

correm, mesmo silêncio, ao rio insano.

 

Cadáveres à dor do mesmo dano

de apagar no estilete dos condões

águas de narrativa. As emoções

tão cegas como um bom jardim do engano.

 

Mas nem precisa de chorar: as chuvas –

faca metida às costas de teus filhos –

choraram tudo em madrugada rosa.

 

A vida espera o vinho de outras uvas.

A vida guarda enchentes, tece exílios:

foge da conta em que este escuro goza.

 

II

oh make me a mask

Oh faz-me uma máscara

(Dylan Thomas)

 

As faces como sexos. Cancro duro.

Não são dor de censura aos cataclismos.

Parecem mais com pragas de cinismos,

nessa festa de peste em sol escuro.

 

Sem máscara e sem cara. Sem ar puro.

A foice faz dançar os algarismos:

féretro pornográfico de abismos

na carantonha onde não há futuro.

 

Já que lançou-se em tal esgar de morte

toda luz de uma terra inexistente

a rasgar os seus olhos com espelhos.

 

As almas que restarem, tendo sorte,

vão contar de um amor sobrevivente,

com o rosto enterrado nos joelhos.

Fabrício Clemente é vencedor do Prêmio Hugo de Carvalho Ramos.

Pintura de Remédios Varo
28
Poema de Maria Clara Dunck

abro as portas do guarda-roupas

à procura de fantasias

mas a realidade é a primeira peça que aparece

caindo como uma luva

como se a estilista do mundo

tivesse desenhado um uniforme sobre meu corpo

feito sob medida

não importa se pari ontem

se amamentei num só peito

ou tomei anticoncepcional por anos

a realidade sempre me veste bem

me abriga nas noites frias

e me toma todas nos dias quentes

não consigo mais brincar com as cores

misturar estampas

me adornar com brilhos e ornamentos

toda maquiagem parece um exagero

todo par de sapatos é um acessório vulgar

e por isso

talvez por isso

toda palavra que pronuncio

parece um adereço

sentar e escrever os manuais de beleza

num mundo onde domina o grotesco

pintar os lábios para seduzir a imagem no espelho

não há rubro tão intenso que dê conta

de alargar minha boca

tão pequena e inútil

diante de grandes números

não importa a desordem de dentro

menos ainda o retrocesso de fora

a realidade me abraça o corpo

vira segunda pele

alérgica a qualquer outro tecido

vivo ou morto

nua

tão pouco sirvo pra alguma coisa

não se acomodam armas

entre peitos murchos

pés quebrados

também não conquistam territórios

por isso as roupas bonitas

seriam

se me servissem agora

meu único sonho de armadura

Maria Clara Dunck é poeta e pesquisadora.

Pintura de Xul Solar
29
Nossa vida
Rafael Fleury

Nossa vida é tão instante quanto uma gota de orvalho…

Tão fugaz como uma manhã…

Tão eterna quanto um afã…

 

Quem diria?

E já nos vem uma pandemia!

 

E num pestanejo, não é mais nossa a nossa vida.

— Mas assim não sempre foi?

Deveras, mas a peste o confirma

contundente, doridamente.

 

Já não é nem minha e nem tua:

é do vírus, é da morte nua e crua.

É do medo, da amargura, do receio,

da reclusão das liberdades,

das quarentenas, das politicagens…

Tudo — que pena — da nossa ínfima condição de criatura.

 

Não há hora, não há quem:

quando a indesejada deseja alguém…

 

A vida é um sopro

e do nada é soprada.

Tão rapidinha

tão pequenininha

tênue frágil efêmera

filigrana de nós…

 

Nossa vida é tão passageira quanto um trem…

Na próxima estação já desce, sempre,

mesmo que não tenha fruído a vista dos vales, rios e céus

durante a estrada passada em trilhos…

 

Passada nossa vida invisível e incisiva como um vírus…

 

Nossa vida é tão ínfima quanto uma gota de orgulho…

Mal chega o ocaso e já se pôs…

Rafael Fleury é presidente do Gabinete Literário Goyano.

Pintura de Magrite
30

Só nos restou o vazio?

Nilson Gomes

Conviver sem ter abraço

Beijo só em foto antiga

Manter distância de todos

De tudo sentir fadiga

Sem bar, show, igreja ou festa

Saudade é tudo que resta

De tanta gente amiga

Quase 500 mil foram

Os demais são solidão

Partindo amor tão unido

Nem no inverno verão

Vírus colheu tanta flor

Que a primavera acabou

Dor é única estação

Brasília brigam políticos

Pra saber quem matou mais

Sem hospitais de campanha

Tem campanha em hospitais

Nem aí pra UTI

Quer fugir de CPI

Passando o povo pra trás

Pandemia de adeuses

Aos pais, tios, irmãos, avós

Tchau à pessoa amada

Ao filho (o que é mais feroz)

Visita nem despedida

E só levaram da vida

O amor que está em nós

Milhões estão imunizados

E muitos mais no aguardo

Pois é tempo do governo

Do “eu falho e eu tardo”

O dinheiro da vacina

Foi gasto com cloroquina

No Exército tem é fardo

Quantos de nós vão morrer

Além dos 500 mil

Pra pesquisa e Saúde

Priorizar no Brasil?

Ou todo o meio milhão

De mortos foi tudo em vão

Só nos restou o vazio?

Nilson é jornalista.