30 poemas sobre a pandemia do novo coronavírus

09 maio 2021 às 00h00

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Da mesma forma que a poesia foi possível depois de Auschwitz, a poesia mostrou-se não apenas possível, mas necessária, durante a pandemia

O filósofo e compositor alemão Theodor W. Adorno (1903-1969) teve erros e acertos em sua trajetória intelectual. Um de seus equívocos mais evidentes foi a declaração de que considerava impossível a escrita de poesia pós-Auschwitz. Obviamente, a frase não deve ser entendida em um sentido literal, mas aqui não é o espaço para discutir suas linhas e entrelinhas. O fato é que a poesia é necessária para pensar, expor, ressignificar, estetizar todas os aspectos da experiência humana. Inclusive as tragédias, pessoais ou coletivas, como a pandemia do novo coronavírus. É neste espírito que o Jornal Opção organizou uma seleção de poemas escritos por autores goianos e convidados de fora do Estado explorando esse tema. As possibilidades se mostraram infinitas, de grande sensibilidade e senso estético. Da mesma forma que a poesia foi possível depois de Auschwitz, a poesia mostrou-se não apenas possível, mas necessária, durante a pandemia.

Mais de 420 mil brasileiros morreram devido complicações derivadas da Covid-19. Trata-se de uma “guerra” das mais letais. Os poetas, com as armas de que dispõem — a palavra, as palavras —, dão uma resposta estética (e crítica) imediata ao que está acontecendo. Os 30 poemas reunidos com o auxílio imprescindível do escritor, historiador e professor Ademir Luiz, presidente da UBE-Goiás, merecem ganhar uma antologia. Direta ou indiretamente, os poemas são uma espécie de crônicas (com alto grau de refinamento) de mortes e descasos anunciados. Muitas mortes poderiam ter sido evitadas, se o país tivesse um presidente da República menos errático. No poder, Jair Bolsonaro se comporta como um mensageiro da morte. Depois da pandemia, se ganhar estátuas nas portas de alguns cemitérios, que ninguém fique surpreso. Talvez a história o “homenageie”, no fundo, como um dos próceres da República dos Cemitérios.

1
Eis aí o humano homem
Miguel Jorge
EIS AÍ AS HORAS QUE POR POUCO NÃO FICARAM PRESAS
NOS ESPAÇOS. EIS AQUI OS PÉS, SAPATOS, ALGUMAS PEÇAS
DE QUEM NUNCA PODERIA ESTAR ALI, NAQUELE ENTARDECER
DE NOITE. EIS AI O TUDO DO HOMEM. A SUA UMANIDADE QUE
PARECE POUCA PARA SE FAZER DELE O REI QUE DESEJAVA SER.
Eis ai o humano homem! O cheiro podre da cidade o devora.
Como se devora o que não se vê o que se corrói por dentro.
As faces das facas que, agudas, refazem os fios das mágoas.
Eis ai o humano homem!
Possui-se agora, o que se descarta amanhã.
É só o que se tem o que se chega o que se resta.
O desejo, fogo fátuo, exorciza conscientes egos:
Carros, carros, carros. As marcas dos cheques registradas
Em suas bundas.
Nunca! Jamais tão valiosos esses caros carros,
Presos à coleira de minha, sua, nossa gola!
Do livro inédito “Os Passos da Cidade”, de Miguel Jorge, membro da AGL.

2
O soneto da morte enfurecida
Edival Lourenço
Como se a morte o império proclamasse
Mas o cisne a nadar na superfície
Nem percebesse a fuga da meiguice
Que o lago sóbrio ainda aparentasse
E de repente a pluma esvoaçasse
E a tarde azul se enchesse de imundície
Regrando o mundo o mal com estultice
Pra tudo o que fosse íntegro babasse
Numa tragédia que ninguém previsse
A nova peste um cão feroz gerisse
Para que maior número matasse.
A morte vem qual lâmina rapace
O horror da vida mostra a fera face
E o condor plana à tarde na planície.
Edival Lourenço é membro da AGL.

3
Fúria de monstros
Lêda Selma
Súbito, visões apocalíticas
dessepultam profecias.
Das trevas, assomou,
voraz, bafio virulento
(cores vivas, brilhantes),
o monstro invisível
faminto de dores e de gente.
Os dias se enredaram
no bico do corvo.
Enquanto o sol,
nas sombras, definhava,
anônimas vidas, a esmo,
apodreciam sentenciadas
ao degredo sempiterno.
O luto, a cor dos dias.
Das lágrimas, o vermelho.
Recortada em campas
de fundura infame,
a terra escancarou a boca
e engoliu corpos
estigmatizados e inanes.
Nas ruas, estatelada,
a honra da miséria humana.
De joelhos e mãos postas,
a mendigar milagres
e o socorro da ciência,
o mundo assistia à tragédia
da humanidade dizimada.
Do planalto, o monstro emergiu.
Crocitar de corvo.
Zombou da vida
e da esperança
com sarcasmos e delírios.
Algoz, riso de hiena, viu
as mortes em cortejos sinistros.
Sepulcro dos mortos do carrasco?
O esplêndido berço do florão da América!
Lêda Selma é membro da AGL.

4
Impossível traqueostomia do caos
Ubirajara Galli
Tudo que nasce
tem um tempo
de validade.
Por atos próprios
ou por imitação néscia
do falso mito.
No hipódromo do caos
não há páreo
para o vírus montando
a besta do apocalipse.
Por ignorância
ou ideologia,
ainda as duas coisas,
não há traqueostomia
que oxigene a vida.
No abatedouro de alvéolos,
menos mal para Pilatos,
que lavou as mãos.
Nos secos mananciais
da ignorância,
somos peixes fora d’água,
sem ritos de despedidas
despejados nas locas finais.
A morte solitária,
é a somatória de muitas mortes.
Desnecessário perguntar aos mortos,
se dói mais morrer sozinho.
Ubirajara Galli é presidente da AGL.

5
La bête de somme*
Delermando Vieira
Naqueles outros tempos, até então, eu só me movia e me ouvia, ao que em paz e alegria me comovia
o coração.
A Luz Maior ainda pairava sobre as cidades, os campos, os rios, os mares, as lavouras e as estradas do Mundo. Mas eis que, tão de repente, la Bête de Sommea Besta, com sua coroa surgiu, vindo das antigas terras do Oriente, talvez de Hwran, carregando em seu lombo a Ânfora e seu pó maldito, eivado de tênebra peste. Em seu galope de silenciosa explosão, tropeçou, deixando cair e quebrar essa Ânfora; e seu pó, avec un tour de passe,** se esparziu sobre tudo o que era Hausto de Deus, aos olhos e às narinas dos Homens.; e covas, então, foram abertas, inúmeras, milhões delas, sobre a face da Terra. Só em minha pátria foram mais de quatrocentos mil! E muitos foram aqueles que viajaram para sempre! Para nunca mais voltar! E doeu, e como doeu! Não como dói a dor de dor nenhuma, mas como dói, e tanto rói, a lasca, que se descasca à verruma
de um imenso vazio, cujo nome é ausência!
Delermando Vieira é membro da AGL.
*la Bête de Somme: do francês, besta, animal de carga.
**avec untour de passe: do francês, com um passe de mágica.
6
Em memória dos que se foram
Valdivino Braz
Pudera, oh, quem dera, sob os céus,
não houvesse o triste adeus
por conta do plantio dos corpos,
nem o pranto, todo pranto pelos mortos,
deles tantos que morrem sem socorro.
Ao poeta John Donne recorro:
“Não perguntes por quem os sinos dobram,
eles dobram por ti.” Dobravam pela vida,
dobram agora pelos dias findos —
finados os dias, quantas vidas perdidas!
“A morte de todo homem nos diminui”,
dizia John Donne, com sapiência.
Todos os homens, todas as mulheres, todas as crianças,
todos que se foram, até por culpa de cúpula,
negligência, indiferença, ignorância
dos inimigos da Ciência.
Tempos burocratas, políticos e perversos.
Os lenços do tempo, secar pudessem
os lagos de lágrimas nos olhos da vida.
Ainda que a vassoura dos ventos varresse
Tamanha dor da memória, não varreria o lixo
das hordas de uma história sórdida.
Os sinos dobram, com tristeza,
pela dor de todas as perdas,
já para mais de quatrocentas mil
vidas ceifadas, senão outras (possa que não)
que ainda virão. Oh, mal-amada,
Pátria amada, Brasil!
Valdivino Braz (ainda) é membro da AGL.

7
Antes do amor começar
Maria Helena Chein
Os olhos, talvez, marrons,
as mãos, vislumbrei macias,
o coração, pensei em altar.
Era esse o seu retrato.
Marcamos um vinho,
troquei as flores do jarro,
vesti-me de beleza.
Mas a pandemia chegou danosa,
antes do amor começar.
Confiamos no tempo, nas cores,
na alegria das vozes e escutas,
e assim nos guardamos.
A pandemia prosseguia
cheia de medos e mortes,
nos arredores do mundo.
Anunciamos o fim
da espera dentro do corpo,
do querer dentro da vida.
Fecharam-se as portas.
Por caminhos diferentes
nossos passos se afastaram,
e recolhemos o silêncio e o absurdo
da saudade que não desiste.
Maria Helena Chein é vencedora do Prêmio Hugo de Carvalho Ramos.

8
Isolados
Sônia Elizabeth
Instalou-se nesse mundo
um vírus sem leveduras:
você fica em sua casa,
eu fico na casa minha.
Nossas mãos só se encontram
Pela tela nebulosa
De um smartphone antigo.
Eu beijo a sua boca
Pelo emoji vermelho
Que coloquei favorito
Na coleção do meu zap.
E prometo, redundante:
não vou lhe trair jamais.
Sônia Elizabeth é vencedora do Prêmio Hugo de Carvalho Ramos.

9
Uns que vão…
Getúlio Targino Lima
Fico a me perguntar: por que fulano,
Entre tantos milhões, foi separado
E, atendendo o divinal chamado,
Deslocou-se daqui a outro plano?
Deixou família, amigos, foi levado,
Num aparente ato desumano,
Ficando para nós o desengano,
Da ausência e da dor – triste legado.
Mas no alto, no topo desta escada,
Deus está, decidindo nossa trilha,
Encaminhando em nós nossa jornada!
Sim, pois aqui, na hora da partida,
A dor estonteante que te humilha
É a ponte que te leva à nova vida.
Do livro inédito “Lições do Abismo”, de Getúlio Targino Lima, membro da AGL.

10
A máscara que uso agora
Cristiano Deveras
A dor que me dói no peito
não é por conta de alguma infecção,
uma inflamação desenfreada,
ou o ar ter se tornado rarefeito.
A dor que trago em dobro,
é a dor de quatrocentas mil famílias,
pela suposta solidez da vida
que se esvai como um sopro.
Essa dor que não tem mais jeito,
nasceu em mim
quando o verde de teus olhos
refletiu na eternidade.
Hoje já não tenho mais medo:
a máscara que uso agora
é para ocultar o meu luto
e esconder minha saudade.
Cristiano Deveras é vencedor do Prêmio Hugo de Carvalho Ramos.

11
Poema de Divino Damasceno
Eu tenho amor pelo amor
A dor dói no próximo.
A dor dói na dor
O poema é só um apoio
O poema é alguma coisa
Para descansar depois.
O poema é apoio da vida
O melhor poema para a pandemia é a vacina…
Divino Damasceno é vencedor do Prêmio Hugo de Carvalho Ramos.

12
Do outro lado das paredes
Thaise Monteiro
Sabem mais de mim
essas paredes emudecidas
em sua brancura quente
acentuada pelo calor da tarde.
Conhecem-me insuportável
Apesar do calor
distribuído em 49 metros
quadrados ao redor do meu corpo
— mesmo corpo do ano passado
talvez mais magro
talvez mais pálido
talvez mais triste –
sinto frio
sintoma de doença outra
que a solidão inventou de inventar
Do outro lado das paredes
um vírus espreita a minha carne
poluída de silêncio e de certeza
não haverá justiça
aos que ainda cedo partiram
nem aos que ficaram atolados
na lama de lágrimas sobre
o solo deste país para onde
se for, não vá
que a paz colonizada
veste mortalha
verde e amarela
como o canário abatido
pelo gesto
dos que com as mãos
fizeram arma
Thaise Monteiro é vencedora do Prêmio Hugo de Carvalho Ramos.

13
“poema para cartaz lambe-lambe”
Léo Prudêncio
O amor
Não brota
Em tempos
De seca
Léo Prudêncio é poeta e compositor
14

de ouvido
Fernanda Marra
anota que o ar muda e varia
à janela o ruído a ruína
solvem átimos feras
atiçam a esfera
ferida
Fernanda Marra é poeta e pesquisadora.

15
Poema de Tarsilla Couto de Brito
(1)
o amor acaba
a mancha de água sanitária
no tapete CASA DE GENTE FELIZ
aumenta
(2)
o amor acabará
o amor comerá o reboco das paredes de nossa casa,
encherá de buracos a rua, derrubará postes, entortará portões,
quebrará uma das pernas da criança que joga amarelinha na calçada
(3)
o amor acabou
você nunca disse
eu li no diário oficial da união
(9)
o amor acabava
com a gente
brincava
de morto vivo morto
(14)
o amor acabando
não tem cor
não tem cheiro
não tem gosto de
fim
(24)
na pandemia
na poesia
no amor
não há outra finalidade
senão destruir todos os sentidos preconcebidos
(25)
quando isso acaba
eu & você
a pandemia
bolsonaro
Do livro “Sentimentos Carimbados”, de Tarsilla Couto de Brito, poeta e professora da UFG.

16
Lágrimas da pandemia
Giovani Ribeiro Alves
O poema com o seu idioma
metafísico
dialoga com o tédio, no ápice
da uma tarde cinzenta, sob um outono
que lança
ares de lágrimas
nos adeus de despedidas precoces.
Quem diria
que a morte?
Tão insana,
Rainha da
agressividade,
tirana absoluta
do infortúnio
exercício de separar do
nosso convívio,
os nossos amados
que partem sem o direito
de nos abraçar,
tornou-se, agora, desgraça vil
da nossa rotina diária.
Até quando?
Iremos dizer incessantemente: meus pêsames,
Meus sentimentos?
Até quando? Os detentores do poder brincarão
com a vida humana? Como se esta dádiva mais sublime do Criador: A vida, se tornasse
para eles no abjeto mais
indigno de toda nossa
humanidade.
Só nos resta a
clamar: Misericórdia! Senhor!
Giovani Ribeiro Alves é poeta e filósofo.

17
Hoje
Eliézer Bilemjian
Hoje não tem ninguém lá fora
não pelo avançado da hora,
mas por uma coisa, assim tão pequena,
que poucos podem explicar (e entender).
E hoje algumas despensas
estão tão cheias de papel,
que nem mesmo três gerações em sequência
irão conseguir consumir.
Eu tenho aprendido a apagar minhas digitais
com um líquido abrasivo e inflamável,
claro que não tão inflamável quanto as redes sociais,
mas ainda assim inflamável.
Hoje já tem gente lá fora
não tanto por perder a hora,
mas porque o capitalismo não para de mandar boletos,
e é preciso se espremer sobre quatro rodas,
acenar no ponto e não tossir no rosto de ninguém,
nem mesmo daqueles que não reconhecemos,
por estarem mascarados.
Ainda tem gente lá fora,
mesmo apesar de estar na hora,
de ligar wifi
ligar webcam,
e conversar como se fosse normal:
assistir as aulas, fazer reuniões,
com forno ligado fazendo o pão,
que eu acabei de aprender.
Nem sei se tem gente lá fora
também já não marco a hora,
nem horas, nem dia, do mês ou semana,
nem sei se ainda sei contar.
E enquanto meu braço aguarda uma picada qualquer
reflito, se quando isso acabar
vale a pena continuar mantendo
distanciamento social de algumas pessoas.
Eliézer Bilemjian é poeta e arquiteto.

18
Um quase apocalipse
Rogério Rocha
Ando pelas ruas vazias;
as pessoas estão em suas casas.
Consegui desatar as minhas
amarras.
E persigo alguma face
como perdida
em meio a todo esse
desastre.
Os sinais de trânsito piscam
intermitentes.
Nas rotatórias da vida não há mais carros.
Bares e casas noturnas já não nos perturbam
(é morta a algazarra).
Nas praças e bairros não vejo gente
mas sei que lá dentro dos muitos lares
há um mundo que pende em suspenso,
Com medo, indeciso, ansioso.
Na jornada que faço
nos rumos de uma
noite morta
sinto o vento morno
em meu rosto nervoso
e recebo seu abraço
amoroso
enquanto
respiro
mais fundo do que, em verdade, é preciso.
Nas tv’s, cobram-nos juízo,
mais isto e aquilo e aquilo.
Os noticiários anunciam
um quase apocalipse.
Mas não reclamo nem sofro:
sobrevivo.
E antes que penses em clamar por meu nome
ou investigar minhas entranhas
atrás de algum sentido não demovível
apresso o passo e corro mais rápido
que qualquer sentimento ruim.
Antes que as bombas explodam
no instante invisível
de um mundo incompreensível
que parece chegar ao fim.
Rogério Rocha é poeta e filósofo.
19
Janelas ao inverso
Solemar Oliveira
Há um menino que entende.
Conhece o poeta e o fim do dia.
Um menino desgarrado no tempo,
Mais agora que há dois anos.
Espreita.
Está em um espaço limitado.
Segue uma regra que o enquadra.
O menino, que se isola,
Vê o mundo da janela.
Da sua janela.
E, também, de janelas ao inverso.
Subverte a possibilidade que o implode.
Isolado, não sofre.
O que sente, não é uma novidade.
O poeta é o menino no fim do dia.
É o mesmo de outro tempo.
E torce os versos ao acaso.
Solitário, como sempre.
Ele, assim como o menino, sabe:
O pôr do sol é uma instância,
O crepúsculo é uma ideia.
O poeta é o fim do dia.
Confinado, ele brinca.
Isolado, ele pensa ser menino.
E entende.
Solemar Oliveira é vencedor do Prêmio Hugo de Carvalho Ramos.

20
Tão pouco
Hélverton Baiano
Tudo então pequeno
gente de tão mera
vai diminuindo
o que réstia ou quimera.
Quanto se esvai
se a natureza expia
quem não se equilibra
pelos vãos da pia
Vai sumindo gente
pelo mundo pouco
fugindo ao rumo
que sangra o sufoco
Tanta coisa oca
nessa vida enfada
e vai preenchendo
o tudo com nada.
Hélverton Baiano é vencedor do Prêmio Hugo de Carvalho Ramos.

21
Morrer
Hélverton Baiano
Morrer é tão repentino
Às vezes é mais que um século
Morrer é a eternidade
Do que é vento e mistério.
Morrer é tanto lamento
No tanto que o rumo é incerto
Quem vive não vê por dentro
O que a morte tem de/certo.
Morrer, amigo, é propriedade
Em tudo e apenas de quem morre
Pois só o morto na verdade
Sabe o risco que ele corre.
Morrer é tão bom ou ruim
Que não se pode medir
Porque só quem morre sabe
A morte seu tanto sentir.
Hélverton Baiano é vencedor do Prêmio Hugo de Carvalho Ramos.

22
Monarquia da Morte
Ana Carolina Coelho
Começou como uma rachadura,
Pequenos avisos e pouca cobertura,
A vida seguia sem muita atenção.
Um dia, de súbito,
O pequeno Rei clamou sua “Corona”, cetro e reinado:
A Monarquia da Morte.
Frestas abertas com machados,
Restaram apenas sangue e ossos triturados,
Nada de bom veio desses rasgos,
Apenas dores e presenças sepultadas.
Sonhar é luxo,
Viver, ilusão em uma tela desbotada.
Das rachaduras feitas no Tempo,
“Dias de Sol, Beijos e Sorrisos” esvaneceram,
Pedaços virais adoecidos.
Nossas memórias riem de nossa antiga pressa,
Hoje, a vida existe aprisionada,
Medo e sofrimento reinam soltos nas ruas.
As nossas Certezas gargalham isoladas,
Gralhas enlouquecidas no cárcere social.
Amanhã é Ontem,
E o Hoje nunca chega.
“Não vai passar”
Afirmam as Incertezas,
Não há “normal” para retornar.
Ana Carolina Coelho é poeta e professora da UFG.

23
Quarenta dias
José M. Umbelino Filho
um dia ruim, um dia bom
um dia bom, um dia ruim
às vezes, um dia péssimo
às vezes, um dia ótimo
um dia da caça, outro do caçador
um dia de luto, um dia de luta
um dia de glória!
um dia de chuva
um dia sem fim, um dia que já passou
um dia lindo lá fora
um dia feio aqui dentro
um dia de sol!
um dia bom, um bom dia
um dia de rei, um dia de cão
um dia que não cabe
um dia que não sabe
um dia que não.
um dia a dia
um dia como qualquer outro
um dia comum
um dia de folga, um dia de festa
um dia foda
um dia perdido, um dia achado
um dia vendido
um dia roubado
uma noite estrelada!
um longo dia
menor que um segundo
maior que um mês
um dia bom, um dia ruim
um dia ruim, um dia bom
um dia de cada vez
José M. Umbelino Filho é vencedor do Prêmio Hugo de Carvalho Ramos.

24
Ventos cinzentos
Itaney Campos
De súbito, na tarde de aparente
calma, irrompeu o vento ruidoso
que tornou o mundo silencioso
e lacrou o abraço de nossa gente.
Mesmo assim as estátuas deliravam
de febre, pássaros atordoados
caíam de um céu de chumbo, e voavam
por entre as cinzas de grandes tornados.
Aranhas teciam fios noturnos
inoculando as manhãs de tons soturnos
infiltrando na terra o seu veneno.
O medo transitava pelas praças,
arrombando portais, em arruaças
perversas, rugindo qual fora o demo!
Itaney Campos é membro da AGL.

25
Esta é a hora, poeta
Itaney Campos
É nesta hora, poeta, quando aves negras vagam pelo céu,
em círculos macabros,
que urge a voz da poesia
e, no temporal infectado,
se requerem os sons curativos do poema!
É agora, poeta, quando a cinza do silêncio e do medo recobre as ruas, os tetos, penetra nos olhos congelados nas varandas, que a poesia deve levantar- se como temporal
que lava a noite e a febre do amanhecer.
Este é o território das lágrimas, das algas, do lodo, o espaço das sombras e da pátina,
o templo do engano e do medo.
É a noite da pessoa sozinha. Não vê, poeta, as mãos não se tocam,
os abraços não alçam voo, os lábios se contraem, repugnados.
O medo da noite interminável
paralisa os gestos solidários.
Os discursos amorosos despetalam-se ao golpe frio do inesperado. Onde está sua música, poeta?
Desafinou-se ao menor ruído dos ventos poentes?
Silenciou-se ante o retardo da manhã?
Desfralda o seu verbo, poeta,
desata a sua verve,
que só essa é capaz de iluminar a secura da relva.
Não subestime o gume afiado da poesia,
nem o peso indelével da sua voz, agente poderoso
a purificar o humano convívio!
É agora que quero vê-lo, poeta, destemido, encarando de frente as parcas, as farsas, a fúria das armas e dos fados.
Vê as hordas de anciãos marchando para o abismo?
Vê o turbilhão de crianças desfilando sem rumo?
Esta é a hora, poeta, de desvendar a capacidade de sonhos,
por maior que seja o pesadelo que nos atropela!
É hora de desfraldar a coragem,
para que não se contagiem os acordes de sua lira
pela enorme sombra do invisível!
Itaney Campos é membro da AGL.

26
Ot cep sorte rounít noc
José Fábio da Silva
A parede da memória insiste em projetar novas narrações. Outras duas têm início. A primeira, conta as aventuras de um amigo de longa data. Aquele que não percebemos a presença, mas sentimos o peso da ausência. A segunda, narra a saga de alguém digno de ódio. Um inimigo no sentido puro da palavra. Do tipo que nem que nem uma tragédia gera consternação.
Ambas têm início com seus protagonistas tão distantes que não é possível distinguir um do outro. Depois, surge um épico, um romance, uma novela, um conto, uma fábula, e outra, e outro e outras… incontáveis. Não é mais possível saber quais delas foram cultivadas por nossas recordações. São tantos começos idênticos que todos parecem viver uma só biografia. Números incalculáveis entram para história, os que ficam padecem de lembranças.
Um aglomerado de ações não lineares editadas pela memória diante de projeções. Sem roteiro prévio, assistimos o desenrolar de enredos alheios. Mesmo de almas pequenas, viver ainda vale a pena. Não devido um motivo, um sentido ou uma força maior para isso. A vida é uma circunstância em busca de causas. Nem chega a ser uma história. Só ganha forma quando finda o desenrolar de seu protagonista. A morte trabalha em retrospecto. Escreve as narrativas, mas começa pelo ponto final.
José Fábio da Silva é membro da Academia Anapolina de Letras

27
Dois sonetos
Fabrício Clemente
I
enfermaria
Os mortos que não choras neste ano
vão uivar, noite inteira, as estações.
Pouco importa quem são. Os corações
correm, mesmo silêncio, ao rio insano.
Cadáveres à dor do mesmo dano
de apagar no estilete dos condões
águas de narrativa. As emoções
tão cegas como um bom jardim do engano.
Mas nem precisa de chorar: as chuvas –
faca metida às costas de teus filhos –
choraram tudo em madrugada rosa.
A vida espera o vinho de outras uvas.
A vida guarda enchentes, tece exílios:
foge da conta em que este escuro goza.
II
oh make me a mask
Oh faz-me uma máscara
(Dylan Thomas)
As faces como sexos. Cancro duro.
Não são dor de censura aos cataclismos.
Parecem mais com pragas de cinismos,
nessa festa de peste em sol escuro.
Sem máscara e sem cara. Sem ar puro.
A foice faz dançar os algarismos:
féretro pornográfico de abismos
na carantonha onde não há futuro.
Já que lançou-se em tal esgar de morte
toda luz de uma terra inexistente
a rasgar os seus olhos com espelhos.
As almas que restarem, tendo sorte,
vão contar de um amor sobrevivente,
com o rosto enterrado nos joelhos.
Fabrício Clemente é vencedor do Prêmio Hugo de Carvalho Ramos.

28
Poema de Maria Clara Dunck
abro as portas do guarda-roupas
à procura de fantasias
mas a realidade é a primeira peça que aparece
caindo como uma luva
como se a estilista do mundo
tivesse desenhado um uniforme sobre meu corpo
feito sob medida
não importa se pari ontem
se amamentei num só peito
ou tomei anticoncepcional por anos
a realidade sempre me veste bem
me abriga nas noites frias
e me toma todas nos dias quentes
não consigo mais brincar com as cores
misturar estampas
me adornar com brilhos e ornamentos
toda maquiagem parece um exagero
todo par de sapatos é um acessório vulgar
e por isso
talvez por isso
toda palavra que pronuncio
parece um adereço
sentar e escrever os manuais de beleza
num mundo onde domina o grotesco
pintar os lábios para seduzir a imagem no espelho
não há rubro tão intenso que dê conta
de alargar minha boca
tão pequena e inútil
diante de grandes números
não importa a desordem de dentro
menos ainda o retrocesso de fora
a realidade me abraça o corpo
vira segunda pele
alérgica a qualquer outro tecido
vivo ou morto
nua
tão pouco sirvo pra alguma coisa
não se acomodam armas
entre peitos murchos
pés quebrados
também não conquistam territórios
por isso as roupas bonitas
seriam
se me servissem agora
meu único sonho de armadura
Maria Clara Dunck é poeta e pesquisadora.

29
Nossa vida
Rafael Fleury
Nossa vida é tão instante quanto uma gota de orvalho…
Tão fugaz como uma manhã…
Tão eterna quanto um afã…
Quem diria?
E já nos vem uma pandemia!
E num pestanejo, não é mais nossa a nossa vida.
— Mas assim não sempre foi?
Deveras, mas a peste o confirma
contundente, doridamente.
Já não é nem minha e nem tua:
é do vírus, é da morte nua e crua.
É do medo, da amargura, do receio,
da reclusão das liberdades,
das quarentenas, das politicagens…
Tudo — que pena — da nossa ínfima condição de criatura.
Não há hora, não há quem:
quando a indesejada deseja alguém…
A vida é um sopro
e do nada é soprada.
Tão rapidinha
tão pequenininha
tênue frágil efêmera
filigrana de nós…
Nossa vida é tão passageira quanto um trem…
Na próxima estação já desce, sempre,
mesmo que não tenha fruído a vista dos vales, rios e céus
durante a estrada passada em trilhos…
Passada nossa vida invisível e incisiva como um vírus…
Nossa vida é tão ínfima quanto uma gota de orgulho…
Mal chega o ocaso e já se pôs…
Rafael Fleury é presidente do Gabinete Literário Goyano.

30
Só nos restou o vazio?
Nilson Gomes
Conviver sem ter abraço
Beijo só em foto antiga
Manter distância de todos
De tudo sentir fadiga
Sem bar, show, igreja ou festa
Saudade é tudo que resta
De tanta gente amiga
Quase 500 mil foram
Os demais são solidão
Partindo amor tão unido
Nem no inverno verão
Vírus colheu tanta flor
Que a primavera acabou
Dor é única estação
Brasília brigam políticos
Pra saber quem matou mais
Sem hospitais de campanha
Tem campanha em hospitais
Nem aí pra UTI
Quer fugir de CPI
Passando o povo pra trás
Pandemia de adeuses
Aos pais, tios, irmãos, avós
Tchau à pessoa amada
Ao filho (o que é mais feroz)
Visita nem despedida
E só levaram da vida
O amor que está em nós
Milhões estão imunizados
E muitos mais no aguardo
Pois é tempo do governo
Do “eu falho e eu tardo”
O dinheiro da vacina
Foi gasto com cloroquina
No Exército tem é fardo
Quantos de nós vão morrer
Além dos 500 mil
Pra pesquisa e Saúde
Priorizar no Brasil?
Ou todo o meio milhão
De mortos foi tudo em vão
Só nos restou o vazio?
Nilson é jornalista.