Mariza Santana

Boa parte dos brasileiros que nasceu na década de 1960 tem como reminiscência de sua infância e/ou adolescência alguns dos momentos mais difíceis da história. Os “Anos de Chumbo” foram o período mais pesado da ditadura civil-militar, principalmente na década de 1970. Foram anos marcados pelas guerrilhas e pela forte repressão, que deu origem a uma verdadeira máquina de tortura que massacrou oponentes do sistema.

O livro “1972 — O Açoite dos Inerrantes”, obra de estreia do jornalista e escritor Venceslau Pimentel, se enquadra nessa categoria. Nascido em 1960, na cidade de Tocantinópolis, então extremo Norte de Goiás e hoje Estado do Tocantins, o autor era um típico adolescente, integrante de uma família numerosa e humilde do interior do País, quando a tranquilidade da região do Bico do Papagaio, formada na confluência dos rios Araguaia e Tocantins, foi quebrada. Isso se deu devido à proximidade de uma ação guerrilheira em Xambioá, no Pará, e pela ida para aquele rincão de membros do Exército e das unidades de repressão da ditadura.

Venceslau Pimentel: um ás do jornalismo que se mostra grande memorialista | Foto: Facebook

Mesclando os duros acontecimentos do período com a visão inocente de um jovenzinho (curioso, prenunciando o ótimo que se tornou), Venceslau Pimentel vai contando ao leitor a história da sua Tocantinópolis, cujo nome anterior era Boa Vista do Padre João, com seus personagens típicos e cotidiano simples de cidade do interior. Cita as revoltas e a luta pelo poder que aconteceram na localidade ao longo dos séculos. Conta também a ação do pessoal da Tradição, Família e Propriedade (TFP), uma organização civil tradicionalista, e a movimentação dos militares na região, em busca dos chamados “subversivos”, tudo do ponto de vista de um garoto que ainda não tinha maturidade suficiente para entender os acontecimentos. Mas já os percebia bem e, de alguma maneira, ia registrando no seu, digamos, “cofre mental”.

O título utiliza a palavra inerrante, que significa aquele que não comete erros, que não se engana, que é infalível. Penso que é uma referência aos guerrilheiros presos, vítimas dos açoites, que foram sido torturados e cujos corpos teriam sido jogados no fundo do Rio Tocantins, numa noite bem escura, quando os habitantes de Tocantinópolis preferiram, por precaução, permanecer encerrados em suas casas. Isso é o que relata o escritor, em suas memórias. Ou ele poderia estar se referindo aos seus algozes, cujos açoites eram infalíveis. Vai ficar a critério do leitor.

Mas a narrativa de “1972 — O Açoite dos Inerrantes”, apesar do título, não é pesada, pelo contrário. Conta com a visão lírica do protagonista, que fala de sua família e de seus amigos, da paixão pelo circo e pelo cinema, das travessuras da infância, dos times de futebol da cidade, das folias carnavalescas, da epidemia de meningite, do colégio onde estudou e dos hits musicais que marcaram a década de 1970. Cita também uma visita do então governador de Goiás Otávio Lage a Tocantinópolis, quando os estudantes tiveram de esperar horas a fio, sob um sol escaldante, pela chegada do mandatário. A linguagem é leve e fluida, e os capítulos se sucedem, de forma prazerosa.

Osvaldão e Dina: guerrilheiros do PC do B

Osvaldão: integrante do PC do B | Foto: Reprodução

Em alguns momentos, o texto é mais denso e o escritor cita nomes conhecidos de períodos duros da história brasileira, como os guerrilheiros de codinomes Osvaldão e Dina, perseguidos e mortos pela repressão da ditadura militar. Ou quando fala da passagem do padre Josimo Tavares por Tocantinópolis. Padre Josimo, coordenador da Comissão Pastoral da Terra (CPT), foi assassinado em 1986 a mando de fazendeiros da região do Bico do Papagaio por defender os trabalhadores rurais. Sua morte teve grande repercussão nacional e internacional. Dessa forma, as memórias de Venceslau Pimentel vão nos levando a uma sucessão de momentos e imagens desse Brasil do interior, distante do litoral, mas rico em história e cultura.

Venceslau Pimentel é o penúltimo de uma família de dez filhos. É graduado em Jornalismo pela Universidade Federal de Goiás (UFG). Trabalhou nos jornais “Diário da Manhã” e “O Hoje”, principalmente na cobertura política. Concomitantemente, trabalhou na Assembleia Legislativa do Estado de Goiás (Alego), onde atuou como repórter e editor da Agência de Notícias. Recebeu vários certificados de mérito profissional. Em 2019, amadureceu a ideia de escrever seu primeiro livro com o registro de suas memórias da década de 1970, quando vivia em Tocantinópolis (TO).

Mariza Santana é jornalista e crítica literária. Email: [email protected]