Harold Bloom sugeriu que Emily Dickinson era a Shakespeare dos Estados Unidos. Heresia? Nenhum pouco. A poeta americana não era, claro, dramaturga, ao contrário do bardo britânico. Mas sua poesia contém o drama da vida, a força e a vitalidade do indivíduo numa sociedade que, mesmo falando em “diversidade”, pressiona pela “unidade”.

Emily Dickinson amou? Por certo, sim. Num poema curto, na excelente tradução de José Lira — uma das mais inspiradas pontes para apreender a poesia de la Dickinson —, a poeta assinala: “Que o Amor é tudo que existe/ É tudo que sei do Amor./ Isto é bastante — o peso deve/ Adequar-se ao andor”.

Noutro poema, traduzido por José Lira, ela, com sua pena enviesada, lidando com contradições quiçá formulando uma síntese, anota: “Não tive tempo para o ódio/ Por que/Vivia a cova a me esperar —/ E a vida não me foi tão longa/ que eu/ pudesse as rixas acabar —// Nem para o amor eu tive tempo —/ Já que/ Muito de mim tinha que dar —/ O vão labor que o amor pedia/ Achei/ Duro demais para aguentar”.

Abaixo, é possível ler outro poema de amor da autora. Sim, de amor, ainda que escape dos clichês sobre o assunto (não há, por exemplo, melodrama; e, se há lamento, é contido).

Os poemas de Gaspara Stampa, Louise Labé (que já foi muito bem traduzida no Brasil pelo poeta, crítico e tradutor Felipe Fortuna) e Elizabeth Barrett Browning (apreciava a Língua Portuguesa) foram extraídos do livro “Três Mulheres Apaixonadas” (Companhia das letras, 121 páginas) — com tradução precisa de Sergio Duarte.

Listas, todos sabem, são lacunares. Se não fossem, não seriam listas. Seriam, digamos, bíblias sobre determinados assuntos.

Há outros belos poemas de amor — talvez até mais bonitos e significativos —, e se está falando tão-somente de poemas escritos por mulheres, mas nos contentemos aqui com 12 poemas. A rigor, contando os dois de Emily Dickinson acima, são 14 poemas. Mas Emily Dickinson, com seus malabarismos verbais e identidade solidamente única e rebelde ao rótulo, é de difícil classificação.

Gaspara Stampa: poeta italiana | Foto: Reprodução
Poemas de Gaspara Stampa

1

Um deixar-se matar sem sentir dor

E oferecer consolo a quem ofende;

Ver-se na própria chama, que se acende

No olhar alheio, e não fugir do ardor;

Ganhar a liberdade e não se opor

A que outra vez se estreite o nó que prende;

Saber que de outrem todo o bem depende

E nele só buscar alívio à dor;

Achar no aspecto seu graça e magia

Na fala ou no silêncio uma atração

E no seu porte e gesto, fidalguia;

Existe, assim, bem mais de uma razão

Para que eu volte ao pranto em que vivia;

E ao mesmo tempo rogo a Deus que não.

2

Assim me faz Amor arder inteira

Como uma nova salamandra, e igual

A não menos estranha ave ancestral

Que morre e que ressurge na fogueira.

O meu prazer, delícia e brincadeira

É estar ardendo e não sentir meu mal

Sem me importar se quem me induz a tal

De mim queira ter pena ou não no queira.

Mal o primeiro ardor foi se apagando

Amor outro acendeu, mais vivo e quente,

Que cada vez mais sinto me abrasando.

Mas não serei por isso penitente

Se quem meu coração andou roubando

Do novo ardor se vir pago e contente.

Gaspara Stampa, poeta italiana — 1523-1554

Louise Labé: poeta francesa | Foto: Reprodução
Poemas de Louise Labé

3

Belos olhos que fingem não me ver

Mornos suspiros, lágrimas jorradas

Tantas noites em vão desperdiçadas

Tantos dias que em vão vi renascer;

Queixas febris, vontades obstinadas

Tempo perdido, penas sem dizer,

Mil mortes me aguardando em mil ciladas

Que o destino me armou por me perder.

Risos, fronte, cabelos, mãos e dedos

Viola, alaúde, voz que diz segredos

À fêmea em cujo peito a chama nasce!

E quanto mais me queima, mais lamento

Que desse fogo que arde tão violento

Nem uma só fagulha te alcançasse.

4

Vivo e morro, e me afogo em chama ardente;

Sinto calor extremo e extremo frio

Meu caminho ora é claro, ora é sombrio,

E em meio a grande pena estou contente.

Choro e me rio simultaneamente

E na alegria meu tormento expio;

Duradouro é meu bem, mesmo arredio,

Sou planta seca e ramo florescente.

Assim me leva Amor, sempre inconstante,

Pois quanto mais me doem minhas dores

Sem que perceba encontro alívio adiante.

Se do prazer, porém, gozo os favores

E se aproxima o desejado instante,

Amor me atira às penas anteriores.

Louise Labé, poeta francesa — 1524-1566

Elizabeth Barrett Browning: poeta inglesa
Poemas de Elizabeth Barrett Browning

5

Ama-me pelo amor do amor somente.

Não digas nunca: “Amo o sorriso dela,

Seu rosto, ou o jeito de dizer aquela

Palavra murmurada de repente

Que faz meu pensamento confidente

Do seu, e torna a tarde ainda mais bela”.

Tudo pode mudar, meu bem; cautela,

Pois pode ser que o amor de nós se ausente.

Tampouco sirva o amor que assim me dás

Para enxugar-me o pranto por piedade:

Quem prova teu consolo é bem capaz

De, sem chorar, perder-te por vaidade.

Mas se amas por amor, conseguirás

Amar sem fim, por toda a eternidade.

6

Mesmo que partas, ficarei presente

Em tua sombra sempre. Nos umbrais

De minha vida a sós, sei que jamais

Comandarei as emoções e a mente

Sem que o toque sereno, antes ausente,

De tua mão na minha dê sinais

De que estás junto a mim. Sei que por mais

Larga a distância, o coração fremente

Pulsa em dobro. Teu vulto transparece

No que faço e o que sou, e é certo, pois,

Que o vinho sabe às uvas de sua messe.

E quando rogo a Deus por mim, depois,

Ele escuta o teu nome em minha prece

E em meu olhar vê lágrimas de dois.

Elizabeth Barrett Browning, poeta inglesa — 1806-1861

Adélia Prado: poeta brasileira | Foto: Reprodução

7

Poema de Adélia Prado

Casamento

Há mulheres que dizem:

Meu marido, se quiser pescar, pesque,

mas que limpe os peixes.

Eu não. A qualquer hora da noite me levanto,

ajudo a escamar, abrir, retalhar e salgar.

É tão bom, só a gente sozinhos na cozinha,

de vez em quando os cotovelos se esbarram,

ele fala coisas como “este foi difícil”

“prateou no ar dando rabanadas”

e faz o gesto com a mão.

O silêncio de quando nos vimos a primeira vez

atravessa a cozinha como um rio profundo.

Por fim, os peixes na travessa,

vamos dormir.

Coisas prateadas espocam:

somos noivo e noiva.

Poeta brasileira — nascida em 1935

Cecília Meirelles: poeta brasileira | Foto: Reprodução

8

Poemas de Cecília Meirelles

De longe te hei de amar

— da tranquila distância

em que o amor é saudade

e o desejo, constância.

Do divino lugar

onde o bem da existência

é ser eternidade

e parecer ausência.

Quem precisa explicar

o momento e a fragrância

da Rosa, que persuade

sem nenhuma arrogância?

E, no fundo do mar,

a Estrela, sem violência,

cumpre a sua verdade,

alheia à transparência.

9

Canção

Não te fies do tempo nem da eternidade,

que as nuvens me puxam pelos vestidos

que os ventos me arrastam contra o meu desejo!

Apressa-te, amor, que amanhã eu morro,

que amanhã morro e não te vejo!

Não demores tão longe, em lugar tão secreto,

nácar de silêncio que o mar comprime,

o lábio, limite do instante absoluto!

Apressa-te, amor, que amanhã eu morro,

que amanhã eu morro e não te escuto!

Aparece-me agora, que ainda reconheço

a anêmona aberta na tua face

e em redor dos muros o vento inimigo…

Apressa-te, amor, que amanhã eu morro,

que amanhã eu morro e não te digo…

Cecília Meirelles, poeta brasileira — 1901-1964

Hilda Hilst: poeta brasileira | Foto: Reprodução

10

Poema de Hilda Hilst

Tenta-me de novo

E por que haverias de querer minha alma

Na tua cama?

Disse palavras líquidas, deleitosas, ásperas

Obscenas, porque era assim que gostávamos.

Mas não menti gozo prazer lascívia

Nem omiti que a alma está além, buscando

Aquele Outro. E te repito: por que haverias

De querer minha alma na tua cama?

Jubila-te da memória de coitos e acertos.

Ou tenta-me de novo. Obriga-me.

11

Cora Coralina: poeta brasileira | Foto: Reprodução
Poema de Cora Coralina

Meu destino

Nas palmas de tuas mãos

leio as linhas da minha vida.

Linhas cruzadas, sinuosas,

interferindo no teu destino.

Não te procurei, não me procurastes –

íamos sozinhos por estradas diferentes.

Indiferentes, cruzamos

Passavas com o fardo da vida…

Corri ao teu encontro.

Sorri. Falamos.

Esse dia foi marcado

com a pedra branca

da cabeça de um peixe.

E, desde então, caminhamos

juntos pela vida…

Poeta brasileira — 1889-1985

Emily Dickinson: poeta americana

12

Poema de Emily Dickinson

Eu te dou a Prova

De que sempre amei —

Até amar — eu quase

Não vivi —

Também te demonstro

Que sempre amarei —

O amor é vida — e a vida

É Imortal —

Meu Bem — se duvidas —

Então não terei

Nada para mostrar-te —

Só a Paixão —

Emily Dickinson, poeta americana — 1830-1886. “Algumas Poemas” (Iluminuras, 319 páginas), de Emily Dickinson. Tradução de José Lira.