Marcelo Franco

Fernando Sabino (1923-2004) nasceu há exatos cem anos, em 12 de outubro de 1923. Nas fotos que ilustram este texto, alguns dos muitos livros dedicados pelo escritor mineiro que acumulei aqui na caverna (não localizei a primeira edição de “O Encontro Marcado”, também com sua dedicatória, pois imagino que, por ser um exemplar encadernado, eu o tenha guardado separadamente).

Caiu um cisco aqui: “O Encontro Marcado” foi uma descoberta precoce minha, digamos assim, e um vício, desses sem tratamento, desde então.

Meu namoro com a paisagem mineira e minha conversa com seus prosadores vêm de longe: eu era criança e, antes mesmo de me dar conta de quem seria Drummond, coloquei Pedro Nava e Fernando Sabino em meu panteão de heróis.

Via meus pais lendo os livros de Nava, acompanhando as notícias sobre ele no suplemento “Cultura” do “Estadão”, e levantava as orelhas.

Sabia, por causa de comentários entreouvidos e antes de ter a capacidade de o compreender, do fascínio de Nava, ou mesmo sua obsessão, pela morte e pela sexualidade.

Lia trechos de seus livros, colocados como totens nas estantes da velha casa de minha família no Setor Sul e, do pouco que entendia, ficava mesmerizado.

Dos escritores de Minas, posso dizer, portanto, que os conheço e amo desde sempre. Hoje lido com crimes e agressões ao meio ambiente, mas há em mim uma pulsão não realizada: cresci querendo ser um escritor mineiro.

Fernando Sabino, Paulo Mendes Campos, Helio Pellegrino e Otto Lara Resende, mineiros: os quatro cavaleiros de um íntimo apocalipse | Foto: Reprodução

Para dar mais ênfase ao fascínio, todos eles se sucederam uns aos outros numa boemia literária e peripatética pelas ruas de Belo Horizonte (pano de fundo da primeira parte de “O Encontro Marcado”), boemia que tentei reproduzir numa Goiânia ainda mais provinciana do que a BH do século passado.

Pedro Naves e “Beira-Mar”

Pedro Nava, da primeira geração modernista de Minas e autor da mais surpreendente obra em prosa brasileira depois de “Grande Sertão: Veredas”, deixou-nos vários retratos de seus amigos e da própria cidade nos seis volumes de suas memórias; é de “Beira-Mar”, por exemplo, esta passagem, que talvez sirva também para a geração seguinte, justamente a de Fernando Sabino:

“Eu conheci esse pedaço do belo belo Belorizonte, nele padeci, esperei, amei, tive dores-de-corno augustas, discuti e neguei. Conhecia todo mundo. Cada pedra das calçadas, cada tijolo das sarjetas, seus bueiros, os postes, as árvores. Distinguia seus odores e suas cores de todas as horas. Seu sol, sua chuva, seus calores e seu frio. Ali vivi de meus dezessete aos meus vinte e quatro anos. Vinte anos nos anos Vinte. Sete anos que valeram pelos que tinha vivido antes e que viveria depois. Hoje, aqueles sete anos, eles só, existem na minha lembrança. Mas existem como sete ferretes e doendo sete vezes sete quarenta e nove vezes sete trezentos e quarenta e três ferros pungindo em brasa.”

Ao aniversariante, porém. Depois desse conhecimento “por ouvir dizer” de Nava, vieram a mim Fernando Sabino, Helio Pellegrino (“socialista histórico, eventualmente histérico”), Otto Lara Resende e Paulo Mendes Campos, que “puxavam angústia” nos bancos da Praça da Liberdade e imitavam Drummond subindo nos altos do viaduto de Santa Tereza.

Li “O Encontro Marcado” em algum momento de uma adolescência confusa e tenho relido o excepcional romance desde que as aventuras de Eduardo Marciano, alter ego de Sabino, ficaram em mim como marca de ferro em brasa. Sabino, aliás, assim como Nava, é outro que conta a boemia literária sua e dos amigos:

“Frequentavam a missa aos domingos, mas afirmavam, em seus artigos, que não se dobravam ante o clero reacionário (…)”.

Liam Bernanos, Mauriac, Maritain — não chegavam até Santo Tomás, mas se diziam neotomistas. O que uma vez ou outra despejavam no confessionário na manhã de domingo, tornavam a fazer na noite de segunda-feira. Por exemplo: beber chope no bar até saírem bêbados, praticando desmandos pela rua. Pecado por intemperança.”

Pelas ruas de BH, os personagens do romance (ligeiramente à clef) de Sabino recitam versos (a geração seguinte, curiosamente também teria seu romance à clef e de formação, “Um Artista Aprendiz”, de Autran Dourado):

“Não ligavam: eram superiores. Juntos, faziam suas descobertas literárias. Que literatura proletária! Verlaine, isso sim; Rimbaud e Valéry. Juntos choraram Baudelaire. Neruda, García Lorca, Fernando Pessoa, soltos pelas ruas:

— Sucede que me canso de ser hombre!

— La luz del entendimiento me hace ser muy comedido.

— O teu silêncio é uma nau com todas as velas pandas…”.

E puxam angústia:

“Nada mais a fazer — a cidade dormia e a noite avançava. Cansados, deixaram-se ficar num dos bancos da praça:

— Chegou a hora de puxar angústia.

Puxar angústia era abordar um tema habitual, como el sentimiento trágico de la vida, la recherche du temps perdu, to be or not to be.”

(Lendo esse trecho, só podemos lamentar que a angústia que puxamos nos dias atuais seja curada com psicofármacos e não com livros: livro deveria ser o único elixir paregórico da alma.)

Pedro Nava, Alphonsus Guimaraens Neto, Carlos Drummond e Cyro dos Anjos | Foto: Reprodução

Também da turma de Fernando, Paulo Mendes Campos — um que continuou puxando angústia durante toda sua vida — foi outro que me marcou (a turma completa ainda tinha Helio Pellegrino e Otto Lara Resende: eram “os quatro cavaleiros de um íntimo apocalipse”). Num belíssimo poema, “Fragmentos em Prosa”, PMC lamentou a perda da adolescência belo-horizontina:

“(…)

Vem de longe, dos tempos de ginásio, o meu gosto pelo álcool.

Vem de mais longe talvez, de regiões oprimidas da infância,

De um ancestral incompetente, de uma horda de heranças infelizes,

Uma vontade de falar, de cuspir.

Folha morta, déçà, délà, fui arrastado pelas ruas

Na tranquilidade fresca da madrugada de Minas.

Havia um poder suicida em cada coisa:

O vento era uma coisa forte e me estremecia,

O azul era uma coisa forte e me estremecia,

A mulher era uma coisa forte e me estremecia,

A aurora, a tarde arrastando-se no quintal,

Tudo me estremecia e me empurrava para a vida e para a morte.

Em meus versos havia uma força louca de poesia,

Nos pensamentos meus e alheios radiavam deuses violentos,

Em todos os meus gestos, uma grandeza pensada e magnífica.

Ó confusa adolescência! já não entendo teu clamor,

Tuas vigílias, tuas angústias, as armas de teu combate.

Meu rosto está sereno quando penso em ti

Mas bem no íntimo tenho uma vontade de unhar-me,

De esbofetear-me, de morrer. Morreu contigo

O sol denso da tragédia. Morreu contigo

O pássaro rubro amigo de meu ombro. Morreu contigo

Uma palpitação, um frêmito constante. Morreu contigo

Meu inconformismo cruel, minha dignidade na desgraça. Contigo

A parte de mim mais infeliz e fiel.”

“Meu filho, eu não mereço”

Curiosamente, a mineirada acabou cumprindo as profecias feitas por Vinícius de Moraes na sua “Carta Contra os Escritores Mineiros”, de 1944. Nela, Vinícius, por achá-los enclausurados no interior e isolados entre montanhas, conclamava: “Precisais de água, a água do mar”. Por isso, como o mundo vivia mudando sem o consentimento deles e era preciso fugir do isolamento, quase todos foram parar no Rio, levando, contudo, Minas na alma (e foi no Rio, no início dos anos 80, que Otto, perguntado se voltaria a Minas durante uma campanha informal de repatriamento coletivo, respondeu com uma lição imbatível de mineiridade: “Meu filho, eu não mereço”).

Fernando Sabino e Clarice Lispector: amigos e correspondentes | Foto: Reprodução

Certo, certo, mas e daí? Daí que o “aniversário” de Fernando Sabino me causa uma boba emoção. O romance foi o marco fundador de muita coisa que fiz e pensei nesta vida besta.

Lido o livro tantas vezes, saí em busca de sua primeira edição e de exemplares autografados, dos livros dos companheiros de Fernando Sabino, de suas histórias e fortuna crítica (“O Desatino da Rapaziada”, de Humberto Werneck, narra essa curiosa mania que os mineiros têm de formar grupos literários a cada geração), da própria BH literária, onde já busquei no panorama urbano o que vivenciara vicariamente nos livros. Que venham, então, mais aniversários e que a meninada continue a se espantar com aqueles amigos — encharcados de literatura — que corriam Belo Horizonte para “puxar angústia”, per saecula saeculorum, que tudo é vaidade debaixo do sol, amém.