10 poemas de Emily Dickinson que você deve ler antes de morrer

17 novembro 2019 às 00h00

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Apontada como Shakespeare dos Estados Unidos por Harold Bloom, a poeta, ao recriar a língua inglesa, inventou uma Dickinsonland
Não é uma fábula. Mas deve-se começar assim: era uma vez… Emily Dickinson. Quem? Simplesmente: a maior poeta dos Estados Unidos, a deusa, ao lado de Walt Whitman, o deus, o pai-fundador. O crítico literário Harold Bloom a percebe como uma espécie de Shakespeare dos Estados Unidos. Era mais: era Emily Dickinson, um gênio que não publicou dez poemas em vida. Mas deixou, guardadinhos, quase 2 mil poemas — a maioria de alta qualidade.
Num poema, bardou, em tradução de Aíla de Oliveira Gomes: “Esta, minha carta para o mundo,/Que nunca escreveu para mim —/ Simples novas que a Natureza/ Contou com terna nobreza.// Sua mensagem, eu a confio/A mãos que nunca vou ver —/Por causa dela — gente minha —/ Julgai-me com bem-querer.”
Belo, não é? Ela tinha consciência de que a posteridade reconheceria seu imenso talento — que sua época não pôde compreender, até porque quase não publicou (“Publicar — é como leiloar/ A consciência humana” — escreveu). Quando publicaram, sua poesia, tão diversa da poesia de então, porque dizia mais respeito ao futuro, deixou a maioria dos leitores, inclusive os críticos literários, estupefata.
Emily Dickinson era tão grande para sua época que não cabia nela. Como todo poeta, dos melhores aos piores, sofreu influência de outros vates. Mas o que ela fez com a experiência dos outros, colocando tudo no liquidificador e produzindo algo inteiramente novo e inimitável — é mais fácil imitar Walt Whitman, daí tantos seguidores, como o gigante D. H. Lawrence —, é surpreendente.

Reza a lenda de que o tradutor de Emily Dickinson tem, antes de começar a colocá-la na sua língua, de fazer um curso de “contorcionismo” linguístico — se não houver um circo nas proximidades, recomenda-se um estudo detido num departamento de Letras. Pois bem: Emily Dickinson, que não era apenas a Dama de Branco, a mulher solitária que não saía de casa e era dona do cachorro Carlo, não deve ser folclorizada. Porque, longe de ser uma poeta puramente intuitiva (e era também intuitiva), era cultíssima e, por isso, reinventou a língua inglesa. Nas suas mãos, dado seu cérebro prodigioso e astuto, o inglês se tornou uma espécie de outra língua. Ela arrancou a pomposidade da língua, ressecou suas propriedades — por si só, contida —, e nos deu uma poesia com nova gramática. Sua pontuação, que assusta tradutores, é parte da poesia, não é mero fecho e início de alguma coisa. Tanto que, a rigor, sua pontuação, com travessões, não fecha nem abre portas; ao contrário, as mantém abertas… sempre. Falar numa Dickinsonland, em termos de poesia única, não é uma impropriedade, por certo.

Por que Emily Dickinson publicou tão pouco, sabendo de seu imenso talento? Talvez porque percebeu que não seria muito bem compreendida — e, claro, era mulher, num tempo de hegemonia dos homens. Há um belo poema de sua autoria (tradução de Aíla de Oliveira Gomes) que assinala: “Eu sou Ninguém. E você?/ É Ninguém também?/ Formamos par, hein? Segredo —/ Ou mandam-nos p’ro degredo.// Que enfadonho ser alguém!/Tão público — como o sapo/Coaxando seu nome, dia vai, dia vem/Para um boquiaberto charco.”
Emily Dickinson nasceu em 1830 (há 189 anos) e morreu em 1886 (há 133 anos). Nasceu e, claro, não morreu: tornou-se eterna. É lida praticamente em todo o mundo. Sua fortuna crítica só cresce.

Escolher dez poemas é uma temeridade. Porque a poeta tem grandes poemas — alguns considerados muito mais importantes do que os listados. Mas listas são assim mesmo: lacunares e, sempre, idiossincráticas. Os leitores brasileiros têm sorte, muita sorte, pois contam com excelentes traduções de Adalberto Müller, Manuel Bandeira, Augusto de Campos, José Lira, Aíla de Oliveira Gomes, Idelma Ribeiro de Faria, Paulo Henriques Britto e vários outros.
Emily Dickinson deixou poemas sobre o Brasil, traduzidos por José Lira e Aíla de Oliveira Gomes. Uma tradução de Aíla de Oliveira Gomes: “Foi só aquilo que pedi./E nada mais me era negado;/Ofereci o Ser por isto./O Mercador sorriu com enfado://’Brazil?’ Fez girar um botão/(Sem nem sequer me olhar!)/”Mas, Madame, nada mais, hoje,/Do que temos, vai-lhe agradar?” Uma tradução de José Lira: “Borboletas assim se veem/ Nos Pampas do Brasil —/ Ao meio-dia — só — e acaba/ A Amável Permissão —// Sabores assim — vêm e voltam —/Depois de dar-se — a Ti —/ Como Estrelas — que viste à Noite —/ Estranhas — de Manhã —”.

1
Não viverei em vão, se puder
Salvar de partir-se um coração,
Se eu puder aliviar uma vida
Sofrida, ou abrandar uma dor,
Ou ajudar exangue passarinho
A subir de novo ao ninho —
Não viverei em vão.
(Tradução de Aíla de Oliveira Gomes)
2
Dizer toda a Verdade — em modo oblíquo —
No circunlóquio, o êxito:
Brilha demais p’ra nosso enfermo gozo
O seu sublime susto.
Como a meninos se explica o relâmpago
De modo a sossegá-los —
A Verdade há de deslumbrar aos poucos
Os homens — p’ra não cegá-los.
(Tradução de Aíla de Oliveira Gomes)
3
Publicar — é o Leilão
Da nossa Mente —
Pobreza — uma razão
De algo tão deprimente
Mas Nós — antes, em Greve,
Da Mansarda ir, sem cor,
Branca — Ao Branco Criador —
Que investir — Nossa Neve —
A Ele e o nosso Pensamento
Pertence — a Ele Que encomenda
Sua ilustração Corpórea — a Venda
Do Real Alento —
Mercar, sim — o que emana
Do Celeste Endereço —
Sem reduzir a Alma Humana
À Desgraça do Preço —
(Tradução de Augusto de Campos. Note que ele preserva o uso de maiúsculas e a pontuação, mais emilydickinsoniana do que idiossincrática)
4
Não sou Ninguém! Quem é você?
Ninguém — Também?
Então somos um par?
Não conte! Podem espalhar!
Que triste — ser — Alguém!
Que pública — a Fama —
Dizer seu nome — como a Rã —
Para as palmas da Lama!
(Tradução de Augusto de Campos)
5
O Cérebro — é mais amplo do que o Céu —
Pois — colocai-os lado a lado —
Um o outro irá conter
Facilmente — e a Vós — também —
O Cérebro é mais fundo do que o mar —
Pois — considerai-os — Azul e Azul —
Um o outro irá absorver —
Como as Esponjas — à Água — fazem —
O Cérebro é apenas o peso de Deus —
Pois — Pesai-os — Grama a Grama —
E eles só irão diferir — e tal acontecer —
Como a Sílaba do Som —
(Tradução de Cecília Rego Pinheiro)
6
Nunca me senti em Casa — Cá em baixo —
E nos Aprazíveis Céus
Não me sentirei em Casa — eu sei —
Eu não gosto do Paraíso —
Porque é Domingo — sempre —
E o Recreio — nunca chega —
E o Éden serão solitárias
Claras Tardes de Quarta-feira —
Se, ao menos, Deus fizesse visitas —
Ou Sestas —
E deixasse de nos ver — mas dizem
Que Ele — por seu um Telescópio
Perpétuo nos olha —
Eu própria fugiria
D’Ele — e do Espírito Santo — e de Todos —
Não fosse o “Juízo Final”!
(Tradução de Cecília Rego Pinheiro)
7
O sucesso é muito mais doce
Para quem não o pode alcançar.
O que faz compreender um néctar
É a sede e o anseio de o provar.
Ninguém desta hoste purpúrea
Que hoje empunhou o pavilhão
Dará acerca da vitória
Mais perfeita definição
Do que ele, o vencido, — em agonia —
Sentindo irromper nos ouvidos
Os sons do triunfo: distantes
Porém claros, martirizantes.
(Tradução de Idelma Ribeiro de Faria)
8
Dizem que “o Tempo tudo cura” —
Mas o certo é que não —
A dor que é dor fica mais rija
Como velho Tendão —
O Tempo é Teste de Tormentos —
Não Remédio afinal —
Se algo isso prova, também prova
Que não havia Mal —
(Tradução de José Lira)
- 2. Outra tradução para o mesmo poema
Dizem, “com o tempo se esquece”,
Mas isto não é verdade,
Que a dor real endurece,
Como os músculos com a idade.
O tempo é o teste da dor,
Mas não é o seu remédio —
Prove-o e, se provador for,
É que não houve moléstia.
(Tradução de Aíla de Oliveira Gomes)
9
Não tive tempo para o ódio
Porque
Vivia a cova a me esperar —
E a vida não me foi tão longa
Que eu
Pudesse as rixas acabar —
Nem para o amor eu tive tempo —
Já que
Muito de mim tinha que dar —
O vão labor que o amor pedia
Achei
Duro demais para aguentar —
(Tradução de José Lira)
10
Morri pela Beleza, mas na tumba
Mal me tinha acomodado
Quando outro, que morreu pela Verdade,
Puseram na tumba ao lado.
Baixinho perguntou por que eu morrera.
Repliquei, “Pela Beleza” —
“E eu, pela Verdade” — ambas a mesma —
E nós, irmãos com certeza.
Como parentes que pernoitam juntos,
De um quarto a outro conversamos —
Até que o musgo alcançou nossos lábios
E encobriu os nossos nomes.
(Tradução de Aíla de Oliveira Gomes)
Livros de onde foram colhidos os poemas
1 — “Uma Centena de Poemas”, Emily Dickinson. T. A. Queiroz, Editor. 1985. Tradução de Aíla de Oliveira Gomes.
2 — “Poemas”, de Emily Dickinson. Editora Hucitec. 1991. Tradução de Idelma Ribeiro de Faria.
3 — “Alguns Poemas”, de Emily Dickinson. Editora Iluminuras. 2006. Tradução de José Lira.
4 — “Não Sou Ninguém — Poemas”, de Emily Dickinson. Editora Unicamp. 2008. Tradução de Augusto de Campos.
5 — “Esta É a Minha Carta ao Mundo e Outros Poemas”. Editora Assírio & Alvim. 1997. Tradução de Cecília Rego Pinheiro. (Tradução publicada em Portugal.)
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