Uma comparação entre as milícias no Rio de Janeiro e o policiamento comunitário nos Estados Unidos
31 março 2024 às 14h12
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Antônio Caiado*
Emergindo dos bairros mais pobres do Rio, as milícias se apresentaram inicialmente como defensoras dos moradores contra delinquentes e narcotraficantes. Formadas por antigos agentes de segurança, visavam ocupar o espaço deixado pela ineficiência governamental, embora rapidamente certos coletivos passassem a dominar e extorquir aqueles a quem juravam salvaguardar.
Nos EUA, a escalada de delitos e a redução da tranquilidade pública motivaram a organização de patrulhas cívicas. Tais iniciativas iam de ações pacíficas, como acompanhar estudantes até a escola, a movimentos mais agressivos, destacando-se as vigilâncias do Black Panther Party, focadas em supervisão policial e defesa das áreas afro-americanas contra abusos.
No Brasil, os conjuntos armados optam por uma gestão territorial, frequentemente utilizando coerção e ameaça. Suas atividades não se limitam à suposta defesa, envolvendo-se também em práticas criminosas como chantagem e controle exclusivo de serviços essenciais, estabelecendo uma atmosfera de temor.
Diferentemente, as iniciativas nos EUA primam pela detecção e prevenção delituosa, promovendo rondas, acompanhamentos de segurança e instruindo sobre prerrogativas civis. Mesmo com uma abordagem mais desafiadora por parte de certas facções, o objetivo permanece na defesa das prerrogativas comunitárias ante injustiças.
Embora inicialmente acolhidas como benéficas, as entidades cariocas acabaram por instituir um domínio tirânico, com chantagem e agressão como ferramentas para sustentar sua influência, prejudicando o bem-estar das áreas alvo. Contrastando, as patrulhas estadunidenses são geralmente vistas como ampliadoras da segurança pública, não só elevando a sensação de proteção mas também, em diversas ocasiões, reforçando a unidade entre os moradores e melhorando as relações com os órgãos policiais.
Enquanto as milícias cariocas exibem um espectro complexo de interações com o poder público, oscilando entre apoio oculto e oposição aberta, muitas vezes permeadas por práticas corruptas, em território norte-americano, as patrulhas civis manifestam uma variedade de relações com as autoridades policiais, indo da parceria à fiscalização e oposição, particularmente em áreas com alta desconfiança nas forças de ordem.
Nos Estados Unidos, a cultura de autodefesa armada está profundamente enraizada na sociedade, sendo uma extensão do direito constitucional ao porte de armas para proteção pessoal e de propriedade. Essa tradição de autodefesa incentiva os cidadãos a assumirem um papel ativo na segurança de suas comunidades, o que facilita o surgimento natural de patrulhas comunitárias. A presença dessas patrulhas reflete uma disposição geral para que os indivíduos e grupos não apenas protejam a si mesmos e aos seus vizinhos, mas também participem proativamente na prevenção do crime.
Esse ethos de responsabilidade pessoal e coletiva pela segurança minimiza a dependência de forças externas, como o Estado, para a proteção. Dessa forma, a cultura de autodefesa contribui para um ambiente onde a delegação da segurança a terceiros é menos prevalente, fortalecendo assim a capacidade da comunidade de gerir suas próprias questões de segurança de maneira independente.
Contrastando com a situação nos Estados Unidos, no Brasil, a delegação da segurança a entidades externas, especialmente àquelas vinculadas ao Estado, muitas vezes resulta em consequências adversas. A transferência de responsabilidade para as milícias, grupos inicialmente formados por ex-membros das forças de segurança, acaba criando um cenário onde esses coletivos exercem poder sobre as comunidades que pretendiam proteger. Ao invés de agir como defensores, essas milícias transformam-se em agentes de opressão, explorando os residentes através de extorsão e controle de serviços essenciais.
A ironia dessa situação é que tais grupos, sob a fachada de proteção, fazem uso do aparelho estatal e de sua experiência anterior em segurança pública para fortalecer seus próprios objetivos criminosos, perpetuando um ciclo de violência e abuso de poder. Essa dinâmica revela uma problemática significativa na relação entre o Estado e a segurança comunitária no Brasil, onde a falta de confiança nas instituições oficiais e a ausência de uma cultura de autodefesa facilitam a ascensão e a dominação de milícias.
A disparidade entre esses dois contextos destaca a complexidade das abordagens de segurança comunitária e a importância dos fatores culturais e institucionais que influenciam a maneira como as comunidades organizam sua proteção. Nos Estados Unidos, a autodefesa armada promove uma forma de vigilância comunitária que se alinha com os valores de independência e participação cívica. No Brasil, a dependência de grupos externos para a segurança não só falha em proteger as comunidades como também as expõe a novas formas de vulnerabilidade, ressaltando a necessidade de repensar as estratégias de segurança pública para combater a influência nociva das milícias.
Antônio Caiado é brasileiro e atua nas forças armadas dos Estados Unidos desde 2009. Atualmente serve no 136º Maneuver Enhancement Brigade (MEB) senior advisor, analisando informações para proteger tropas americanas em solo estrangeiro.