Nova constituição chilena poderá ser mais conservadora do que a antiga

11 maio 2023 às 17h56

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Com informações de Aline Bouhid
No último domingo, 7, os chilenos escolheram os responsáveis pela elaboração da nova Carta Magna do país. A direita ficou com a maior parte das 51 cadeiras do Conselho Constituinte, apesar de ter sido oposição ao projeto de uma nova constituição. Este é o segundo revés sofrido pela esquerda do presidente Gabriel Boric no assunto, após a rejeição da primeira proposta de constituição ter sido rejeitada em plebiscito por 60% dos votantes.
“O atual governo cometeu uma série de equívocos”, afirma Pedro Feliú Ribeiro, docente da Universidade de São Paulo (Usp) na área de relações internacionais desde 2007 e pesquisador na área de análise de política externa. Segundo o pesquisador, havia apoio popular para substituir o texto constitucional vigente, que data de 1980 e foi produzido pela ditadura de Pinochet. Entretanto, questões morais (como direito ao aborto), políticas (a abolição do Senado Federal), econômicas e migratórias desagradaram o eleitor chileno.
Agora, existe a perspectiva que a nova constituição seja ainda mais conservadora do que a vigente. Pedro Feliú Ribeiro diz acreditar que o fracasso se deve à inexperiência dos políticos que apoiam Boric. Propostas distantes do consenso popular e poucas pesquisas de opinião fizeram com que a esquerda terminasse com apenas 17 das 51 cadeiras.
Nova constituinte
Em entrevista ao Jornal Opção, Giovanni Okado, professor no curso de Relações Internacionais da Pontifícia Universidade Católica de Goiás (Puc-GO) avalia o grupo constituinte da direita chilena, que nunca quis uma nova constituição mas terá de produzir uma.
Giovanni Okado — A ultra direita chilena ganhou bastante espaço no cenário político do país por dois fatores. O primeiro deles é a baixa popularidade do presidente esquerdista, Gabriel Boric, principalmente após a rejeição da proposta de uma nova constituição no final do ano passado. O segundo é o aumento da violência urbana no Chile, muito explorado pela mídia, e a consequente demanda por medidas de segurança mais repressivas. A combinação desses dois fatores trouxe uma oportunidade para a ultradireita se recompor depois da derrota nas eleições presidenciais de 2021, e o controle da atual constituinte pode servir como vitrine eleitoral, tanto para rearticulação com as forças políticas mais ao centro quanto para o avanço de pautas conservadoras (por exemplo, proibição do casamento gay e do aborto). Além disso, considerando o texto constituinte apresentado e rejeitado no final do ano passado, há muitos pontos contrários à agenda da ultradireita, a exemplo da denominação do Chile como um estado plurinacional e do direito à maternidade e ao aborto. Assim, ainda que a constituinte ultradireitista possa ser uma surpresa, a razão pragmática de ser, não simplesmente parte, mas protagonista desse novo processo se impôs às lideranças do Partido Republicano, em particular a José Antonio Kast.
O Chile está cada vez mais dividido?
O termo divisão talvez não seja o mais apropriado. Não há dúvidas de que o centro político chileno encolheu e não tem conseguido se articular bem com a extrema-direita, de Kast, ou a extrema-esquerda, de Boric. No entanto, a ausência de posições mais centristas não parece indicar uma polarização radical na sociedade chilena ou reverter a tendência de estabilidade política que prevalece na redemocratização do país. Na verdade, a alternância entre os dois extremos é reflexo de uma concepção mais instrumental do que normativa da democracia. Em outras palavras, se quem está no poder, seja de direita, seja de esquerda, é incapaz de resolver os problemas da população, é melhor escolher a alternativa. Assim, a escolha se dá por conveniência, não por convicção. O problema do primeiro tipo de escolha é que há valores democráticos inegociáveis, como a garantia do estado de direito, e que devem ser considerados sempre. Por exemplo, apoiar ou votar em Kast não é simplesmente confiar a ele a resolução dos problemas, mas também legitimar um discurso autoritário e saudosista do pinochetismo. Isto, sim, é perigoso e pode levar a uma divisão profunda na sociedade, a exemplo do que ocorreu com o trumpismo nos Estados Unidos e com o bolsonarismo no Brasil.
Por que eles estão debatendo essa constituição?
Em primeiro lugar, a população chilena é amplamente favorável a uma nova constituição, mas não há consenso sobre as mudanças em relação ao texto jurídico atual. As pessoas que foram às ruas na década passada, como nas manifestações em prol da educação gratuita em 2011 e nas reações contrárias à deterioração das condições socioeconômicas em 2019, defenderam reformas que não são contempladas na constituição vigente, principalmente relacionadas com a ampliação do estado de bem-estar social. Para exemplificar, as universidades e a previdência são eminentemente privadas, com baixa participação estatal. O jovem chileno entra no mercado de trabalho endividado e trabalha para pagar as dívidas assumidas com os compromissos educacionais, não restando poupança nem dinheiro para curtir a aposentadoria. Em segundo lugar, a elevada politização do tema. Os protestos de 2019 pressionaram o governo do ex-presidente Sebastián Piñera a realizar um plebiscito em prol de uma nova constituição em 2020, assim como formar uma primeira assembleia constituinte em 2021. Boric surgiu no cenário político chileno com uma importante liderança estudantil, que participou ativamente das manifestações populares na década passada, e adotou a elaboração de uma nova constituição como um dos principais lemas de sua campanha. A direita sempre resistiu a esse novo texto e tentou até mesmo desqualificar o debate, às vezes acusando a esquerda de tentar impor um projeto autoritário de poder. Favoráveis ou contrárias, as forças políticas tiveram que se posicionar em relação à nova constituição. Há, portanto, um entendimento generalizado de que essa constituição é necessária, tanto para acalmar a insatisfação popular quanto para definir os futuros rumos da política chilena, mas o debate ainda pode estar longe do fim.
Por que esse processo significou uma derrota do atual governo?
A elaboração de uma nova constituição foi uma das principais promessas de campanha de Boric, que não se concretizou no ano passado. Do ponto de vista simbólico, a vitória da ultradireita na atual constituinte é um golpe doloroso ao capital político do atual presidente. Boric não é um político tradicional chileno. Ele é uma liderança que se formou nas ruas, que conhece bem as insatisfações populares e que trouxe a esperança de grandes transformações socioeconômicas. Do ponto de vista pragmático, em grande medida, as propostas de seu programa de governo dependem da adoção de uma nova constituição. Com a segunda derrota, depois do fracasso na aprovação do texto de 2022, e o controle ultradireitista na atual constituinte, a popularidade de Boric pode cair ainda mais, principalmente pela incapacidade de implementar suas propostas e de resolver os problemas nacionais. Isso pode gerar um quadro de instabilidade política até o final do mandato presidencial, se for possível concluí-lo, e trazer a direita ou a ultradireita para o poder. Boric deverá enfrentar muita turbulência nos próximos meses e precisará demonstrar bastante habilidade de articulação com as forças políticas e sociais.