Dois investigadores do Vaticano deram início, na última terça-feira, 25, em Lima, Peru, a uma auditoria envolvendo o grupo católico Sodalício de Vida Cristã. Essa organização é acusada de abuso sexual e psicológico contra menores, além de corrupção.

O Sodalício de Vida Cristã é um grupo religioso peruano que foi fundado em 1971 e possui mais de 20.000 seguidores em 25 países. Em 1997, o Papa João Paulo II concedeu oficialmente o reconhecimento ao grupo.

Recentemente, membros do Sodalício têm enfrentado acusações de abuso psicológico, físico e sexual contra menores, levando o Ministério Público peruano a iniciar uma investigação em outubro de 2015.

A investigação teve início após a publicação do livro “Meio monges, meio soldados”, escrito pelo jornalista peruano Pedro Salinas em colaboração com a jornalista Paola Ugaz. O livro reúne 30 depoimentos de abusos ocorridos ao longo de quase 30 anos, onde as supostas vítimas, que não foram identificadas, apontam o fundador do movimento, o leigo Luis Fernando Figari Rodrigo, e outros líderes da organização como responsáveis.

Dentre os depoimentos, cinco relatam episódios de abuso sexual, sendo que três deles acusam diretamente o fundador Figari como autor dos crimes. Essas acusações foram apresentadas ao Vaticano em 2011 por três vítimas, mas durante muitos anos, não obtiveram resposta. Essa informação foi confirmada pela jornalista Paola Ugaz e pela ex-irmã sodálita Rocío Figueroa à BBC News Mundo, serviço em espanhol da BBC, no ano de 2016.

O grupo Sodalício de Vida Cristã admite que ocorreram abusos individuais de natureza física e psicológica, porém nega que essas práticas sejam disseminadas por toda a organização.

Sodalício de Vida Cristã

Há 45 anos, foi fundado o Sodalício, inicialmente conhecido como Sodalitium Christianae Vitae, em homenagem à ideia de fraternidade entre os maristas. Essa instituição foi criada como uma sociedade de vida apostólica, composta por leigos e sacerdotes consagrados que viviam em comunidades ou casas compartilhadas, dedicando-se à evangelização.

De acordo com relatos de um ex-integrante chamado Martín Scheuch, nos primeiros anos do movimento, os membros costumavam ler livros de teor fascista. Entre os autores mencionados estava José Antonio Primo de Rivera, fundador da organização espanhola de inspiração fascista, a Falange Espanhola, conforme descrito no livro “Meio monges, meio soldados”.

O Sodalício surgiu com a ideia central de promover a obediência absoluta entre seus membros, abrangendo horários, atividades, leituras, modo de vestir e até estudos profissionais. Um lema frequentemente repetido por Figari, um dos líderes do movimento, era: “Quem obedece nunca erra”.

Essa ideia de obediência inquestionável causou preocupação entre ex-membros, como Rocío Figueroa, uma ex-irmã sodálita, que a considerava “super perigosa”, pois reduzia a capacidade crítica dos membros, permitindo que os superiores impusessem decisões questionáveis.

Em resposta às alegações, Fernando Vidal, porta-voz do Sodalício, afirmou que, inicialmente, os membros do movimento se inspiravam em costumes mais tradicionais da época, mas negou que houvesse proibições rígidas em relação às leituras dos membros. Ele afirmou que essas leituras eram recomendadas durante o treinamento e que Primo de Rivera era apenas um dos vários autores lidos pelos sodálitas. “O Sodalício é uma instituição religiosa, não política”, afirmou.

O Sodalício, originário do Peru, expandiu-se para além de suas fronteiras, estendendo-se ao Brasil, Colômbia, Chile, Argentina, Equador, Costa Rica, Estados Unidos e Itália.

Atualmente, a “Família Sodalita,” que também abrange leigos não consagrados, engloba mais de 20.000 pessoas distribuídas em 25 países.

O reconhecimento canônico do grupo foi alcançado em 1997, durante o papado de João Paulo II. Desde então, o Sodalício desfruta dos direitos e obrigações previstos pela lei canônica da Igreja Católica.

Abusos psicológicos

Em 2000, a ordem começou a aparecer na imprensa peruana por razões não religiosas. Esse momento foi marcado pela publicação de uma série de colunas por José Enrique Escardó Steck na revista peruana Gente. Nas colunas, ele relatava os abusos psicológicos e físicos que alegava ter sofrido durante o ano em que viveu nas comunidades do Sodalício.

Durante esse período, Escardó afirma que seus superiores o submeteram a situações extremamente desumanas, incluindo obrigá-lo a dormir por um mês em uma escada e alimentá-lo com pudim de arroz misturado com ketchup. Além disso, ele assegura que foi intimidado com uma faca no pescoço e mantido escondido no banheiro comunitário quando sua mãe foi visitá-lo.

Fernando Vidal não negou os testemunhos como os de José Enrique Escardó, sugerindo, assim, que houve reconhecimento ou ao menos não houve rejeição explícita dessas alegações.

“Acho que em situações como esta muitas coisas se juntam: os defeitos e problemas do senhor Figari, o contexto sócio-cultural dos anos 60 e 70, a juventude e a inexperiência de quem iniciou este caminho”, relatou.

O porta-voz assegurou que esse tipo de prática, “independente de ser verdadeira ou não”, não tem sido realizada “há muitos anos em nenhuma das comunidades do Sodalício”.

Além disso, reconheceu que os casos de abuso físico e psicológico são “inaceitáveis”, mas destacou que se tratam de ocorrências isoladas: “Temos a certeza de que foram acontecimentos isolados, limitados. Lamentáveis ​​e inaceitáveis”.

Contudo, ele reconheceu a necessidade de implementar mudanças em sua instituição e admitiu que estão “tomando consciência” dos “fracassos”: “O Sodalício não se reduz a reclamações. Há muita gente boa e generosa”.

Relatos

Em 2001, José Enrique compartilhou suas experiências em um programa jornalístico da televisão peruana, no entanto, a imprensa logo relegou o assunto ao esquecimento.

Até 2007, em outubro desse ano, a polícia descobriu que o então pupilo Daniel Murguía estava hospedado em um hotel com um menino de 11 anos, com a intenção de tirar fotos nuas dele.

Murguía Ward mantinha uma relação muito próxima com Figari, o fundador da organização, como confirmado por sua própria irmã, Patricia Murguía, em entrevista à BBC.

Apenas dois dias após a prisão, o grupo Sodalício anunciou a expulsão de Daniel Murguía por “esta situação, até agora totalmente desconhecida para nós, que consideramos totalmente inaceitável, e que surpreendeu e atingiu dolorosamente toda a nossa comunidade”.

Após o episódio do hotel, Daniel passou um ano e meio preso. Três anos mais tarde, a situação parecia estar tranquila e normal. Contudo, no final de 2010, houve uma surpreendente renúncia de Figari ao cargo de superior do movimento, após 39 anos, alegando “motivos de saúde”.

Na mesma época, o processo de beatificação de Germán Doig Klinge, Vigário Geral do Sodalício e falecido em 2001, foi suspenso. Em fevereiro de 2011, o jornal peruano Diario 16 publicou alguns testemunhos de abuso sexual que implicavam o próprio candidato a beato como autor dos crimes.

O Sodalício foi obrigado a reconhecer esses depoimentos como a verdadeira razão que levou à interrupção do processo de beatificação de seu ex-líder. O livro “Meio monges, meio soldados” compilou o relato daqueles que afirmavam serem vítimas de Germán Doig. “Ele era muito carinhoso”, diz.

Ele teria afirmado que “segurava a mão” dos participantes e os abraçava em ambientes privados. Os relatos sugerem que nessas sessões, eles supostamente ficavam nus para realizar exercícios de energia, o que gerou acusações de comportamento inapropriado, incluindo alegações de masturbação por parte de Doig.

Outra vítima apresentou uma afirmação de que, durante tais sessões, Doig teria solicitado que o participante o penetrasse, justificando a ação como uma forma de “experimentar e ajudar os outros”, supostamente conforme mencionado em um livro relacionado.

Além disso, uma ex-integrante chamada Rocío Figueroa declarou que Doig teria tocado seu seio durante o que foi descrito como uma “sessão de ioga”.

Visitante

Em abril de 2015, antes da publicação do livro “Meio monges, meio soldados”, a Igreja Católica designou o padre peruano Fortunato Pablo Urcey como “visitante” das residências do Sodalício.

A função dele seria “coletar informações sobre o modo de vida do Sodalício e a autoridade de Luis Fernando Figari”, conforme suas próprias palavras.

Embora tenha admitido ter perguntado aos membros sobre os testemunhos de abuso, Fortunato Pablo afirmou que não tinha a intenção de investigá-los. Ele visitou todas as casas do Sodalício no Peru e teve conversas com seus membros, e disse que “almoçou e compartilhou a Eucaristia com eles”.

No entanto, em 2016, o padre disse à BBC que não tinha lido completamente o livro que continha os testemunhos, pois preferiu avaliar a “motivação” dos autores ao publicá-lo. Com base no relatório do visitante, o Vaticano tomaria a decisão de enviar ou não um investigador formal para apurar os possíveis casos de abuso no Sodalício.

O fundador

Em agosto de 2011, poucos meses após a divulgação da informação sobre Germán Doig, o jornal peruano Diario 16 publicou relatos de abuso sexual envolvendo o próprio fundador, Luis Figari.

Conforme relatado no livro “Meio Monges, Meio Soldados”, um ex-membro do Sodalício apresentou acusações contra Luis Fernando Figari, alegando que ele o expôs a revistas pornográficas e solicitou que se sentasse sobre uma madeira.

No livro, outra vítima relata que, aos 17 anos de idade, Figari lhe comunicou que era hora de “abrir o terceiro olho para ver melhor as auras e que despertaria sua ‘kundalini’ depositando seu sêmen”.

Após sua aposentadoria em 2010, Luis Fernando Figari viveu alternando entre Lima e Roma até finalmente se estabelecer na capital italiana em 2015. Na época, tanto Figari quanto o Sodalício negaram as acusações feitas contra ele.

Em resposta às alegações, Figari escreveu uma carta aos membros da congregação, que foi divulgada pela mídia peruana. No texto, ele reconheceu ter cometido “erros graves, falhas e leviandades”, mas negou qualquer envolvimento em abuso sexual.

Conforme relatado pelo ex-superior do Sodalício, Alessandro Moroni, que se aposentou da organização no final de 2020, é afirmado que Figari não está mais envolvido na administração do grupo que ele fundou em Lima, em 1971.

Antes da investigação do Ministério Público em 2016, o advogado de Figari, Juan Armando Lengua Balbi, levantou questionamentos sobre a natureza anônima dos depoimentos presentes no livro. “Não pode haver perpetradores se não houver vítimas claras”, argumentou na época. Além disso, ele garantiu que seu réu é inocente das acusações.

Leia também: