Caso Mariana Ferrer: jornalista é condenada a prisão pelo uso do termo ‘estupro culposo’

16 novembro 2023 às 10h01

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‘A juíza Andrea Cristina Rodrigues Studer, da 5ª Vara Criminal da Comarca de Florianópolis, condenou a jornalista Schirlei Alves, autora de reportagens sobre o caso da influencer Mariana Ferrer, pela disseminação do termo “estupro culposo”. A decisão impõe seis meses de detenção em regime aberto à jornalista, além do pagamento de R$ 400 mil em indenizações.’
Schirlei enfrentava duas queixas-crime, uma movida pelo juiz Rudson Marcos e outra pelo promotor Thiago Carriço, ambos responsáveis pelo julgamento do caso. Na fundamentação da sentença, a juíza argumentou que a jornalista cometeu crime de difamação contra funcionário público, considerando suas funções, ao facilitar a divulgação do crime. A decisão do processo, que corre sob segredo de Justiça, é de 28 de setembro.
Em ambas as queixas, a magistrada fixou a pena de seis meses de detenção, 20 dias-multa no valor de 1/30 do salário-mínimo vigente à época dos fatos, e indenização de R$ 200 mil a cada parte lesada. Na época do fato, Shirlei, jornalista do site Intercept Brasil, revelou a conduta machista do advogado Cláudio Gastão da Rosa Filho, defensor do empresário André de Camargo Aranha, durante audiência sobre acusação de estupro.
A defesa de Schirlei informou que já recorreu da sentença. Em nota, a jornalista afirmou que “o sentimento é de injustiça”. “Estou sendo punida por ter feito o meu trabalho como jornalista, por ter revelado ao público um absurdo de poder cometido pelo Judiciário. Essa decisão me parece uma tentativa de intimidação, de silenciamento não só da minha pessoa, mas de outros jornalistas que cobrem o Judiciário”, afirmou Schirlei.
O Sindicato dos Jornalistas Profissionais de Santa Catarina (SJSC) e a Federação Nacional dos Jornalistas (Fenaj) repudiam a decisão da juíza Andrea Cristina Rodrigues Studer. A Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo (Abraji) também repudiou a decisão e disse que espera que as instâncias superiores, competentes, revertam a condenação.
“Punir uma repórter por tornar público algo que interessa a toda a sociedade é mais que um contrassenso, abre um caminho perigoso. Espero que a instância superior corrija o erro e afaste qualquer condenação criminal à jornalista”, disse a presidente da Abraji, Katia Brembatti.
O Conselho Nacional de Justiça (CNJ) aplicou na terça-feira, 14, uma pena de advertência ao juiz Rudson Marcos, do Tribunal de Justiça de Santa Catarina, pelo caso Mariana Ferrer. A sanção é a mais leve prevista na Loman (Lei Orgânica da Magistratura Nacional) e é aplicada ao magistrado que age de forma negligente em relação ao cumprimento dos deveres do cargo, em processos administrativos disciplinares.
Entenda o caso
O Intercept Brasil divulgou imagens da audiência de instrução de 2020, revelando o constrangimento da influenciadora humilhada pelo advogado Cláudio Gastão da Rosa Filho, defensor do empresário André de Camargo Aranha, acusado de estupro em dezembro de 2018. Aranha foi absolvido tanto em primeira quanto em segunda instância.
Na reportagem, o veículo utilizou a expressão “estupro culposo” para referir-se à tese da Promotoria, embora o termo não tenha sido formalmente utilizado no processo. Em resposta às críticas, o Intercept esclareceu que a expressão foi empregada “para resumir o caso e explicá-lo para o público leigo”.
Antes da publicação do Intercept, Schirlei Alves já havia abordado o desfecho do caso em setembro, mencionando também a expressão “estupro culposo”.
Na decisão, a juíza Andrea Cristina argumentou que a repórter atribuiu ao juiz a adoção da inédita tese de “estupro culposo”, configurando assim o crime de difamação. Ela destacou que as consequências da reportagem foram “nefastas” e “atingiram principalmente o público em todo o Brasil”.
Apesar de reconhecer a ausência de antecedentes criminais da jornalista e a natureza não violenta do crime, a juíza identificou três circunstâncias judiciais desfavoráveis: culpabilidade, motivo e consequências do crime, devido ao impacto difamatório nas diversas esferas da sociedade.
O advogado da jornalista e do Intercept Brasil, Rafael Fagundes, disse que a defesa está inconformada com a sentença, “que ignorou a realidade dos fatos e a prova dos autos, resultando em uma decisão flagrantemente arbitrária e ilegal”.
Relembre o estupro de Mariana Ferrer
Mariana Ferrer foi violentada sexualmente em dezembro de 2018, enquanto participava de uma festa no Cafe de La Musique, em Florianópolis. Na época, Mariana era influencer e estava sendo paga para estar no evento. A investigação apontou para um estupro de vulnerável. Além disso, laudos médicos afirmam que houve rompimento recente do hímen de Mariana, que era virgem quando tudo aconteceu. Em setembro de 2020, o juiz Rudson Marcos absolveu o empresário da acusação.
Nas alegações finais da primeira instância, o promotor Thiago Carriço de Oliveira afirmou que não havia como o empresário saber, durante o ato sexual, que a jovem não estava em condições de consentir a relação, não existindo, portanto, a intenção de estuprar.
Em novembro de 2020, o The Intercept Brasil publicou uma reportagem que revelou a gravação da audiência de instrução, na qual Mari Ferrer foi alvo de humilhações e ofensas por parte do advogado Cláudio Gastão da Rosa Filho, da defesa do empresário, que questionou a acusação de estupro com fotos de Mariana. Na ocasião, ele definiu as imagens como “ginecológicas”, afirmou que “jamais teria uma filha” do “nível” dela e ainda repreendeu seu choro. No momento citado, onde Mariana implorava por respeito, ele não foi interrompido pelo juiz e advertido, fato reconhecido pelo próprio tribunal posteriormente.
Em determinado momento, Mari chega a implorar pela ajuda do juiz. “Excelentíssimo, eu estou implorando por respeito, nem os acusados, nem os assassinos são tratados do jeito que estou sendo tratada, pelo amor de Deus, gente. O que é isso?”, diz. Rudson Marcos achou suficiente pedir a Gastão que mantivesse o “bom nível”.
Durante o julgamento, o advogado que estava defendendo André apresentou fotos editadas de Mariana. Na imagem original, a menina aparecia vestida, de costas. A defesa mostrou a foto manipulada, como se ela estivesse nua – sendo que a vítima afirma nunca ter sido fotografada assim.
A intenção do profissional era apresentar uma “justificativa para o crime”. O crime de estupro, no entanto, não pode ser justificado. Segundo a legislação, o indivíduo do sexo masculino e feminino é livre para ter relações com frequências, falar sobre sua sexualidade ou postar fotos sensuais, sem que isso se torne um convite à outras pessoas.
Em outubro de 2021, em audiência realizada em Florianópolis (SC), os desembargadores Ana Lia Carneiro, Ariovaldo da Silva e Paulo Sartorato analisaram o recurso pedido pela defesa de Mariana e concluíram que não havia provas que sustentassem a acusação. O colegiado decidiu então pela absolvição em segunda instância de Aranha.