Silvana Krause: “Nestas eleições, o discurso da antipolítica não vai mais convencer”
14 agosto 2022 às 00h00
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Elder Dias e Marco Aurélio Silva
A agenda da antipolítica ficou para trás e o que vai pautar a eleição de 2022 vai ser a questão econômica. Essa é a aposta da cientista política Silvana Krause, professora da área na graduação e na pós-graduação da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), onde está desde 2010, depois de atuar por 16 anos na Universidade Federal de Goiás (UFG). Para ela, o caminho é de retorno a um ponto anterior a 2016 e 2018, quando as eleições se caracterizaram pela negação do político profissional.
Nas eleições presidenciais, Silvana não vê margem para crescimento de um terceiro nome para fazer frente a Luiz Inácio Lula da Silva (PT), líder das pesquisas, e a Jair Bolsonaro (PL), que busca a reeleição. “Há uma sedimentação muito clara de definição de voto, mas que vai além – é uma proposição do eleitor em não mudar mais”, explica.
Silvana Krause é uma das maiores estudiosas de partidos políticos do País e tem também estudos em projetos internacionais. Fez seu doutorado em Ciência Política na Universidade Católica de Eichstätt-Ingolstadt, na Alemanha, onde é conselheira de um dos maiores centros de estudos sobre partidos políticos, em Düsseldorf. Atualmente, é também secretária-geral da Associação Brasileira de Pesquisadores Eleitorais (Abrapel).
Nesta entrevista exclusiva ao Jornal Opção, ela elogia o perfil político do governador Ronaldo Caiado (União Brasil) e faz um alerta: o Brasil foi o país da América Latina que mais retrocedeu em democracia nos últimos anos.
Marcos Aurélio Silva – O que pode pesar mais contra Jair Bolsonaro durante a campanha, a crise econômica ou as mortes por causa da pandemia? As ações sociais do presidente, como o Auxílio Brasil de 600 reais e o apoio a caminhoneiros e taxistas, estão contribuindo para ele crescer nas pesquisas?
Não tenho conhecimento de perguntas específicas que nos pudessem dar maior segurança sobre como isso está sendo avaliado pelo eleitor. No entanto, o que a gente percebe é que a eleição deste ano, num certo sentido – e apenas nesse sentido – volta a um padrão anterior à eleição de 2018. Qual é esse sentido? Volta ao padrão de o eleitor observar, seja ele de classe A, B, C ou D, que experiências ele tem com os candidatos, o que eles lhe trouxeram em termos de melhorias na qualidade de vida, em consumo, em políticas públicas.
Será uma eleição em que o voto retrospectivo a partir de uma avaliação de dados econômicos, de condição de vida, deve retornar como elemento fundamental na decisão do voto, coisa que não foi o ponto central em 2018, a qual a gente considera uma eleição distópica. Naquele ano, o eleitor foi mobilizado por outras agendas – a pauta anticorrupção, comportamentos pós-modernos etc. Essas agendas ainda estão presentes para a presente eleição – como propostas da comunidade LGBTQIA+, descriminalização do aborto e outros comportamentos morais. Isso ainda permanece agora.
A agenda econômica, de uma elite ou das classes populares, agora retorna a seu ponto anterior a 2018, uma eleição que também se caracterizou, no imaginário do eleitor, pela antipolítica, pelo político não experiente, pela negação do político profissional. Esse clima mobilizou muito os eleitores. Tivemos a experiência de vários candidatos a prefeito ou a governador encampando essa agenda anticorrupção e antipolítica, com a negação do político profissional, dizendo que não era político, que só queria ocupar o cargo. Em 2016 foi o caso, por exemplo, de Alexandre Kalil [eleito prefeito de Belo Horizonte pelo PHS, hoje candidato ao governo de Minas Gerais].
Essa onda parece que não é definitiva. A questão religiosa também permanece. Não se pode dizer que o eleitorado se decida por apenas um aspecto. E, obviamente, o que também está em jogo e algo a que muitos cientistas políticos alertam são as emoções. O eleitor avalia não apenas pelas experiências que teve com determinado político em termos de políticas públicas, mas talvez muito mais pelo envolvimento emocional, com agendas mobilizadoras emocionais, como a questão religiosa, que está forte no Brasil.
Existe também a intenção do voto potencial. Quando se pergunta ao eleitor se ele poderia votar no candidato ‘x’ ou se poderia votar no candidato ‘y’, o nome de Lula parece ter mais potencial
Marcos Aurélio Silva – Qual é a característica específica desta eleição?
A gente pôde perceber nas últimas pesquisas, tanto na do Datafolha como na XP/Ipespe, que uma característica particular destas eleições é que há uma sedimentação muito clara de uma definição de voto, mas que vai além disso: é uma proposição do eleitor em não mudar mais seu voto. É uma taxa de 79% do eleitorado brasileiro, nas pesquisas “surveillance”, que está decidida a não alterar mais sua escolha. A margem de mudança, então, é muito pequena. Ou seja, salvo fatos novos que podem ocorrer – e sempre ocorrem –, o cenário é o que está.
O que chama a atenção é Bolsonaro permanecer na estratégia da agenda negativa e da antipolítica. Isso pode definir a existência do segundo turno ou não, porque, como observamos nas últimas pesquisas, uma parte muito grande diz que não vai mudar mais o voto. No entanto, existe também a intenção do voto potencial. Quando se pergunta ao eleitor se ele poderia votar no candidato “x” ou se poderia votar no candidato “y”, o nome de Lula parece ter mais potencial, por conseguir agregar eleitores que vão da esquerda – com o PSTU, por exemplo –, passam pela centro-esquerda, com o PDT; pelo centro, com o MDB; até a direita, com eleitores que optam pelo Avante, por exemplo.
Isso é interessante, porque temos um eleitorado muito decidido, que diz que não vai mudar o voto e, então, a estratégia eleitoral ou novos fatos vai ser importante para canalizar o que resta. Se as coisas continuarem assim e se Bolsonaro manter a tática de busca de eliminação do oponente, de ataque aos pilares básicos da democracia, isso vai fazer o eleitor que não tem Lula como preferencial a tender a não rejeitá-lo como possível voto. É isso que a gente chama de intenção de voto potencial.
Marcos Aurélio Silva – O que mais pode pesar contra Lula ainda é a questão da acusação de corrupção?
É difícil. A corrupção não está na agenda eleitoral deste ano. Tudo indica que essa campanha anticorrupção, então, não vai ser o elemento que vá definir as coisas. Não é que o eleitor vá deixar de achar importante o político não ser corrupto, mas passa a ter uma imagem de que todos podem ser corruptos e que não exclusividade de Lula, por exemplo, quando há um caso como o de Deltan Dallagnol [ex-procurador da República e hoje candidato a deputado federal pelo Podemos-PR], uma das lideranças da Operação Lava Jato, que foi condenado pelo Tribunal de Contas da União (TCU). Talvez isso amenize, seja um “colchão” no impacto da questão da corrupção que vão tentar jogar para cima de Lula.
Claro, tudo isso ainda é para ser observado, mas a tendência da agenda eleitoral agora é outra: é fome, é desemprego, estamos em outra situação, na qual pode parecer que estamos voltando para o “rouba, mas faz”. Não estou aqui dizendo que candidato A, B ou C foi ou não corrupto, mas do imaginário do eleitor.
Elder Dias – Diziam que a agenda econômica, principalmente por causa dos efeitos da guerra da Ucrânia, poderia atingir Bolsonaro, mas o presidente está conseguindo, de certo modo, capitalizar com a comparação do Brasil a outros países, dizendo que nossa inflação está menor, que o combustível está mais barato, que os pobres estão ganhando aumento no auxílio do governo. Na prática, a carestia está alta, mas os números da economia estão melhorando. Até que ponto, a narrativa da fome e da miséria vai impactar as pretensões eleitorais de Bolsonaro se a percepção das pessoas sobre a situação estiver melhorando para o lado dele, nesse sentido?
É ainda difícil de avaliar, mas há pouco tempo para sentir esses efeitos de forma tão ampla. É óbvio, o jogo não está ganho nem para um lado nem para outro e eleições costumam trazer muitas surpresas em cima da hora, sempre há novidades.
Marcos Aurélio Silva – Como a sra. observa a composição do quadro de alianças agora em todo o País, com as definições depois das convenções?
As alianças feitas nos Estados na última semana, com as convenções, mostram que a tradição da política brasileira permanece. A resistência das oligarquias regionais e sua capacidade de sobrevivência, mesmo diante de uma eleição tão distópica como foi a de 2018, e as metamorfoses das lideranças locais são algo muito impressionante. Parece que se mantêm uma tradição genética, e isso não vem de agora. A gente vê as alianças costuradas na última semana e – apesar de não me surpreenderem, porque conheço isso e trabalho com isso há muitos anos – constata que mesmo Bolsonaro não conseguiu quebrar a forma desse sistema político. Ele está conseguindo avançar em várias situações, mas, se a gente olha a reação das elites regionais com essas alianças… é um quadro belíssimo para ver como essa tradição brasileira permanece.
O caso das eleições de 2018 ocorreu em um cenário distópico. Agora, estamos voltando a uma normalização
A gente flagra alianças do pP com o PT. Claro, isso já houve no passado, mas volta agora, no quadro atual, com ministros do Progressistas no governo federal. Mas têm alianças no Maranhão, em Mato Grosso, no Pará, em Pernambuco. Alguns oficializam apoio a Bolsonaro, mas têm rachas do pP no Piauí, por exemplo. Palanques estaduais em uma campanha presidencial são fundamentais. O caso das eleições de 2018 ocorreu em um cenário distópico. Agora, estamos voltando a uma normalização, o que mostra essa capacidade de resistência de nosso sistema.
Então, temos o racha do pP no Piauí, onde o ministro-chefe da Casa Civil, Ciro Nogueira, recusa apoio a Bolsonaro. O MDB no Rio de Janeiro, que tanto perdeu nas eleições de 2018 – por razões que não são o tema aqui –, se aliou ao PL do governador Cláudio Castro [que concorre à reeleição e é aliado do presidente Jair Bolsonaro] e indicou o vice, Washington Reis [ex-prefeito de Duque de Caxias (RJ)], mas decidiu apoiar Lula.
Há palanques duplos, como o PL e o PT no Amapá, que se aliaram para apoiar o Solidariedade [o ex-prefeito de Macapá Clécio Luís é o candidato do partido]. Em Minas Gerais, Bolsonaro tem dificuldades em seu acordo com Romeu Zema [governador e candidato à reeleição pelo Novo]; já Lula tem de apagar incêndios entre aliados, do PT e do PSB. Então, a engenharia regional e a capacidade de adaptação das oligarquias em se adaptar às mudanças rápidas de cenário são algo realmente impressionante. São articulações que não têm nada a ver com a campanha dita nacional, as lideranças regionais dos partidos exibem sua resistência, que se mostra como uma geleia que se adapta e se gruda da melhor forma para sobreviver. Voltou a dizer que 2018 fugiu desse padrão.
Elder Dias – E, diante desse cenário, como a sra. avalia a trajetória do PT durante estes últimos anos?
Isso foi outra coisa impressionante. Não dá para saber como será se voltar ao governo, isso é outra questão, mas essa resistência do partido é algo que chama a atenção. A capacidade de resistir como organização partidária, frente a essa onda violenta de ataques desde 2014 mostra a força do PT, que vem da estrutura organizativa, da percepção nacional e de questões históricas. Sem julgar, percebe-se um partido que conhece bem o Brasil e se adapta fazendo suas metamorfoses para chegar ao poder.
O PSDB fez uma transição muito ruim para sua nova geração
Elder Dias – O União Brasil é hoje, em tese, o maior partido do Brasil, depois de surgir da fusão entre DEM e PSL; o MDB e o PSDB também são estruturas gigantes. Nenhum deles, no entanto, chega a esta eleição presidencial com algum candidato competitivo. Pelo contrário, parecem estar se esfarelando. Como a sr. analisa esse quadro?
O MDB, com raras exceções, na redemocratização não conseguiu ter uma candidatura nacional forte. Isso é histórico do MDB, por ter uma estrutura federada muito forte. É um partido que procura se segurar no Parlamento como uma costura maior, para entrar no governo e lhe dar sustentação, não importa quem esteja no comando. Foi assim que foi fundamental tanto para o PSDB [com Fernando Henrique Cardoso, de 1995 a 2002] como para o PT [com Lula, de 2003 a 2010; e Dilma, de 2011 a 2015]. Isso foi depois de ter sido a grande liderança da transição política no Brasil, tendo como sua agenda nacional a democratização do País num governo civil. Fez seu papel como movimento democrático, mas, a partir daí, qual foi seu plano de governo, como se estruturou com um projeto de nação? Ora, era a transição política e dar suporte. Foi o que passou a fazer, mas em 2018 recebeu um baque forte. Vejo que, agora, a estratégia do MDB é buscar resgatar esse papel. Tanto que, quando a gente olha o perfil das alianças, vê os cuidados que as lideranças regionais têm para não se comprometer demais, esperando o cenário pós-eleitoral para estar na administração nacional, de uma forma ou de outra. São estratégias que o MDB e outros partidos têm e, também, não somente estratégias, às vezes há dificuldades na construção de uma liderança nacional que faça uma coesão.
Por outro lado, o PSDB fez uma transição muito ruim para sua nova geração, em 2014, com o candidato Aécio Neves. Foi um tiro no pé. Começaram a se queimar ainda depois da eleição daquele ano, quando iniciaram aquela campanha de questionamento e não reconhecimento do resultado das urnas. Depois, o PSDB sempre teve dificuldade de estruturar uma presença de lideranças em todo o território nacional, ficava tudo muito concentrado em São Paulo. Quando foi colher os frutos da política que começou a fazer, as prévias de 2022 deixaram tudo muito claro. É um partido que foi muito mais atingido por suas próprias escolhas do que o MDB, por exemplo. Pode ser até cedo para avaliar, mas é realmente lamentável a dificuldade que o PSDB teve para administrar sua transição de gerações.
Marcos Aurélio Silva – E o caso do União Brasil? Para a Presidência, uma parte gostaria de estar com Bolsonaro; outra tinha até conversa com o PT; e, depois de falar em ter o presidente do partido [deputado federal Luciano Bivar (PE)] como pré-candidato, lançaram uma candidatura de última hora, com a senadora Soraya Thronicke (MS). Ou seja, teve de tudo e não teve nada. É um partido que se tornou muito grande, mas que parece perdido. É isso mesmo?
É uma robustez que é muito frágil, muito artificial. O DEM estava dando show de bola. Nas eleições de 2020, o partido demonstrou sua capacidade de se reerguer. Só que, de novo, a gente vê lideranças partidárias fazendo opções totalmente equivocadas por disputas regionais. A saída de Rodrigo Maia [ex-presidente da Câmara dos Deputados] do partido mostra, como a de Geraldo Alckmin [ex-governador de São Paulo] do PSDB, mostra o quanto as siglas não conseguem administrar conflitos de lideranças.
O DEM nunca havia chegado a ser um partido de oposição, sempre foi de governo. Enfrentou uma nova situação com os governos petistas e, então, vai se reerguendo. Mas então começam as disputas, como ocorreu entre o DEM baiano e o DEM carioca. Então, há um racha e uma liderança importante como Maia cai fora. A partir daí, ACM Neto lidera um processo de fusão com o PSL para formar o União Brasil. Mas, em meu ponto de vista, essa junção tende a ter pouca efetividade futura. Não acredito que tenha sido uma boa estratégia para o DEM.
Marcos Aurélio Silva – O Centrão é visto sempre como uma estrutura meramente fisiológica. Mas o bloco não trouxe um equilíbrio maior ao governo? Sem o Centrão, Bolsonaro não tenderia a ser mais golpista e mais radical?
É uma questão difícil. O Centrão ele tem uma coisa nele que é do antigo PSD, um partido que existiu de 1945 a 1964. Tancredo Neves [ex-ministro, ex-governador e presidente eleito em 1985, mas que não chegou a tomar posse no mandato] dizia, de uma maneira muito simpática, que “entre a ‘Bíblia’ e o ‘Capital’, eu fico com o ‘Diário Oficial’”. É uma fala que mostra muito de estratégia de liderança. O Centrão pode ser resumido desta forma: é a máquina que importa – e aqui não estou julgando. Então, o Centrão não é antidemocrático ou pró-democrático, apenas vai na onda. E tem de ser uma onda que lhe mostre que nela tem maior segurança. Obviamente, se tem uma conjuntura que lhe mostra que não está valendo a pena apoiar a democracia, não tenho dúvidas de que possa aderir a algo não democrático ou rachar – até porque o Centrão não é algo homogêneo. Sabe-se lá o que vem pela frente, são quase dois meses até a eleição.
Marcos Aurélio Silva – O interesse dos grandes partidos, hoje, parece ser menos na Presidência do que na Câmara, para garantir fundo partidário, tempo de TV no horário gratuito e ter poder de negociação. É isso mesmo ou ocorre outras coisas não tão visíveis?
Os partidos são organismos muito diferentes. Para alguns, essa estratégia é a melhor possível, apostar no Legislativo, por inúmeras razões. Mas, para outros, que têm esse potencial de candidaturas nacionais, vale a pena apostar além da Câmara, até para não criar certas celeumas em caso de segundo turno. Às vezes, dependendo da aposta e da “genética” do partido, de seu histórico e da conjuntura presente, as variações são muito grandes. A não ser que haja candidatos que financiem a própria campanha, como aconteceu em 2018 com João Amoêdo (Novo) e Henrique Meirelles (MDB). Mas aí é pura aventura, por prazer, por interesse de ter essa experiência, mas eles sabiam que não iriam ganhar.
Marcos Aurélio Silva – A sra. há muitos anos está no Sul do País. É possível a gente afirmar que é a região mais conservadora e bolsonarista que temos no Brasil? A sra. tem essa percepção?
Eu acho complicado avaliar esse tipo de questão com indicadores tradicionais do século 20. Penso que temos aqui um fenômeno muito parecido com o que vemos nas democracias europeias. Em Santa Catarina e no Rio Grande do Sul, há certos setores da sociedade, principalmente no interior, com uma classe média mais desenvolvida ou com pequenos produtora, que é muito diferenciada no Brasil acima, em termos de estrutura social. São setores que, nos últimos 15 ou 20 anos, se sentiram muito à margem. Creio que isso acaba sendo canalizado para um perfil de candidatura como o de Bolsonaro.
Há movimentos na Europa, como o Alternative für Deutschland (AfD) na Alemanha, que eu conheço relativamente bem, também outros na Espanha, na Itália, na França, com camponeses produtores de queijo. São populações que não se sentiram ouvidas nem integradas ao processo de globalização, prejudicadas com as mudanças que a modernidade trouxe. Claro que a reação geralmente vem por aí, nesse sentido, ou à esquerda ou à direita, mas sempre em extremos. Penso que o apoio que as pesquisas de opinião vêm mostrando no Rio Grande do Sul e em Santa Catarina a Bolsonaro, não sei se pode ser chamado de fascismo, conservadorismo ou algo assim. Em primeiro lugar, acho que os termos estão muito inadequados. O fascismo e o nazismo, principalmente o nazismo, se utilizaram da ciência e criou novos estudos. Não estou aqui falando que nazismo foi uma coisa boa, por favor, é óbvio que não, mas houve uma apropriação da ciência e a construção de experimentos como a comunicação de Goebbels [o chefe da informação de Adolf Hitler, responsável pela propaganda nazista. Logo, o nazismo não negava a ciência, mas se utilizava dela. Então, esses movimentos ditos “conservadores” que temos são movimentos pré-modernos, de resistência a uma modernidade contemporânea.
A ideia da religião, do divino interferindo na política, isso são sintomas comparáveis à resistência de europeus à imigração muçulmana. Então, precisamos ter cuidado no uso desses termos. Se pensarmos que conservadorismo significa buscar uma integração a algo de que se fazia parte anteriormente, talvez seja compreensível.
Os militares sempre estiveram na política, desde 1889
Marcos Aurélio Silva – E sobre os militares estarem de volta à política? Eles deveriam voltar aos quartéis?
Os militares sempre estiveram na política, desde 1889 [ano da proclamação da República, ato de um marechal, Deodoro da Fonseca]. Isso ocorre por termos partidos muito frágeis, entre outras coisas. As articulações políticas não acontecem sem alguma conversa com setores do Exército. Nossa esquerda também tem um pé nas Forças Armadas, porque são instituições que criam quadros e lideranças, que têm presença nacional. Não julgo nem para o bem nem para o mal, concordo com os ministros do TSE [Tribunal Superior Eleitoral] de que lugar de militar não é verificando urna nem fiscalizando eleição, mas essa influência na política existe, sim.
Marcos Aurélio Silva – No caso de vitória do PT para a Presidência, com Lula, e também no Estado de São Paulo, com Fernando Haddad no governo, o partido chegaria a uma grande hegemonia na política nacional?
É difícil avaliar. Para mim, me parece haver um grande risco com essa chegada do PT novamente no palco do poder – não sozinho, porque nunca houve um governo “petista”, sempre houve coalizão –, porque a conjuntura nacional não é a mesma, assim como o mundo como um todo. A economia mudou bastante. Pode haver uma retroalimentação do antipetismo que vivenciamos nos últimos anos.
Marcos Aurélio Silva – Passadas as eleições, ganhando quem quer que seja, a democracia prevalecerá no Brasil ou o respeito às instituições pode acabar?
Não vejo desse modo, se vai prevalecer ou não democrático. Democracias em todo o mundo, até as mais maduras, estão em um modo de esgotamento. Não estão dando conta de responder a uma nova estrutura que estamos vivendo no século 21. Prefiro falar, como hoje é corrente na ciência política, em graus de democracia ou de retrocesso. O Brasil, nos últimos anos, de acordo com o V-Dem [Variety of Democracy, instituto de pesquisa independente], foi o país da América Latina que mais retrocedeu em democracia. O que me preocupa muito é que nem em 1964 [ano do golpe que levou à ditadura militar] nem em 1937 [golpe que levou ao Estado Novo, regime ditatorial de Getúlio Vargas que durou até 1945] veio uma justificativa para necessidade de um regime autoritário. O que ocorreu, pelo contrário, veio sempre em nome da democracia e da segurança. Ou seja, ninguém se dizia contra a democracia: a junta civil-militar dizia que estava ali para garantir a democracia. Isso é algo que sempre foi muito híbrido no Brasil. Esse processo é muito diferente do restante da América Latina. Pinochet [Augusto Pinochet, ditador do Chile de 1973 a 1990] e Stroessner [Alfredo Stroessner, ditador do Paraguai de 1954 a 1989], esse pessoal nunca falou que estava ali em nome da democracia ou da segurança. Nunca falaram em “medidas fortes” para justamente defender a democracia.
Já no Brasil isso sempre foi muito utilizado. Então, me preocupa o que possa ocorrer nos próximos meses é aparecer este tipo de argumento: olha, não dá para ter eleição porque a violência política está grande, temos de suspender as urnas agora, vamos esperar as coisas acalmarem. E veja, tudo isso em nome da democracia.
Caiado é uma liderança respeitável, mesmo que não se concorde com sua ideologia
Marcos Aurélio Silva – Falando do cenário goiano, temos o governador Ronaldo Caiado (União Brasil) à frente das pesquisas, podendo ser até reeleito em primeiro turno, tendo como seu vice o presidente do MDB goiano, Daniel Viela; Marconi Perillo (PSDB), ex-governador, optou por concorrer ao Senado. Ou seja, não deve haver essa polarização ao governo. O 2º colocado nas pesquisas é Gustavo Mendanha (Patriota), ex-prefeito de Aparecida de Goiânia; já em 3º, aparece o candidato do presidente no Estado, o deputado federal Vítor Hugo (PL). O PT lançou o ex-reitor da PUC-GO [Pontifícia Universidade Católica de Goiás] para concorrer. Então, por esse quadro, a tendência é de que, pelo menos em Goiás, o União Brasil fique mais forte eleitoralmente. Como a sra. avalia esse quadro, ainda que a distância?
Goiás tem uma tradição de bipartidarismo, algo que sempre foi muito forte. Sempre houve uma disputa histórica no Estado, na qual eu tive de entrar para minha tese de doutorado – que pegou o período do PSDB no governo de Goiás –, entre famílias. Não digo isso de forma pejorativa. A verdade é que Caiado, mesmo que não se concorde com seus princípios políticos ou sua ideologia, é uma boa liderança, uma liderança respeitável. Tive a oportunidade de entrevistá-lo há dois anos, em um bloco de lives que conduzi com vários líderes nacionais e pude constatar isso. Uma coisa é se identificar com a agenda do político; outra coisa é reconhecer que ele entende a arte da política, que não é um aventureiro, que conhece a administração pública.
Nesse ponto de vista, em uma eleição na qual muitos governadores são candidatos a um segundo mandato, sem dúvida as chances de Caiado são muito boas. Os incumbentes, como se diz de quem está no poder, têm uma boa vantagem ao disputar a reeleição quando têm um bom governo no ponto de vista do eleitor. Não interessa o que certa parcela de especialistas possam dizer sobre determinada política pública que o político tenha implantado ou deixado de implantar, o que afinal interessa, no sentido eleitoral, é como o eleitor percebe o governo.
Elder Dias – Nesse caso, a atual polarização na disputa presidencial pode ser explicada pelo fato de termos o duelo entre um incumbente, Jair Bolsonaro, e um ex-incumbente, Lula, que são lideranças muito fortes?
Estamos em uma conjuntura, agora em 2022, em que o discurso da aventura, do antipolítico, da negação da política, isso tudo não convence mais. O que esta eleição está demonstrando é que não será qualquer experiência na política que será aprovada. Talvez esse seja um aspecto que possa ameaçar o partido Novo: eles negam a ideia da profissionalização da política, eles parecem entender que a política é um fenômeno “business”, querem igualar o mundo da política ao empresarial. Não é, óbvio que não. Então, esta eleição está abrindo possibilidades de sucesso para quem já mostrou algo, seja como governador, seja como presidente. Isso ocorre, penso eu, por causa das experiências amargas que tivemos com aventuras políticas depois que certas pessoas chegaram ao poder nos Estados. O voluntarismo na política foi a onda de 2016 e de 2018. Já 2020 demonstrou que as coisas não foram mais para esse rumo. Política não é para qualquer um, por mais que se critique o fenômeno político e se tenha frustrações com ele, mas se exige carreira e conhecimento desse fenômeno em particular. O mercado político não é o mesmo mercado de consumo. O eleitor é um outro tipo de consumidor.
Marcos Aurélio Silva – Como está seu trabalho na academia no momento? Há algum novo livro ou publicação em vista?
A situação das universidades federais atualmente é muito complicada, a academia tem sido muito prejudicada nos últimos anos. Continuo fazendo minhas pesquisas, estive por duas vezes na Alemanha este ano, sou conselheira de um dos maiores centros europeus de estudos partidários, em Düsseldorf, também na Alemanha. A gente vai fazendo o que pode. Acabamos de publicar um capítulo de livro sobre o efeito do fim das coligações nas eleições municipais. Estamos produzindo sempre sobre partidos políticos e coligações, é o que eu estudo.