Aline Bouhid, Italo Wolff e Marcos Aurélio Silva

A presença do médico endocrinologista Sérgio Vencio no cargo de secretário de Estado de Saúde é, antes de qualquer questão política, um tributo à capacidade profissional. Ele é médico pela Universidade Federal de Goiás – “devo tudo à UFG”, diz ele –, com título de especialista em Endocrinologia, também pela instituição, e Gestão em Saúde pelo Instituto Israelita de Ensino e Pesquisa Albert Einstein. Também na UFG ele fez mestrado e doutorado em Ciências da Saúde também pela UFG.

Vencio é, ainda, editor-chefe da Diabetology and Metabolic Syndrome Journal, periódico oficial daSociedade Brasileira de Diabetes, da qual já foi vice-presidente, foi diretor de Ensino e Pesquisa do Hospital Estadual Dr. Alberto Rassi (HGG) e é investigador principal do Instituto de Ciências Farmacêuticas (ICF), atuando principalmente em diabetes e medicina laboratorial.

Empossado como secretário da pasta em 16 de novembro de 2022, ele conversou com a equipe do Jornal Opção em entrevista exclusiva para, além de outros temas, tratar das mudanças no modelo de gestão das organizações sociais (OSs), aprovadas pela Assembleia Legislativa de Goiás (Alego) e que vão trazer alterações importantes na relação entre o poder público e as entidades do setor da saúde no Estado.

Marcos Aurélio Silva – O modelo de gestão por OSs [organizações sociais] existe há mais de uma década no Estado, com casos de sucesso, mas também problemas, como casos de corrupção e operações policiais. Agora, foi aprovado na Alego um projeto de lei que muda a relação do Estado com essas entidades. O que vai ocorrer, na prática?

É um que vem sendo discutido internamente na secretaria há mais de dois anos, já passou pela PGE, pela CGE e a Comunitas [Oscip que vem prestando um serviço gratuito ao Estado para nos ajudar na formatação desse projeto. Se olhar em detalhes, a ideia foi separar a Saúde das demais pastas, porque nós precisamos de uma regulamentação muito própria, tanto da lei do SUS, das portarias do Ministério da Saúde, da lei de transplantes. Então, tudo é muito específico. Assim, qualquer coisa que fôssemos precisar mudar na lei, isso alteraria também para outras pastas que porventura pudessem se beneficiar de OSs. Na Alego, passou a lei geral, agora estamos trabalhando nas regulamentações, tomando como base experiências exitosas, vendo o que houve de errado e de correto nesses últimos anos e implementar, por meio de decreto, o que pode melhorar a qualificação. O que está, de fato, nas mãos da secretaria em relação à OS? O Estado é moroso para muitas coisas, por conta da Lei das Licitações. Na Saúde, a gente vivia problemas por causa disso. Quando fiz faculdade, era comum ver hospitais que não tinham soro, dipirona etc. Isso acabou. Por quê? Porque com o advento das OSs, essas compras, as contratações de médicos e outras coisas, tudo ficou mais fácil. A questão é que se abriu outra porta: é que, com a falta de fiscalização, passamos a ter alguns problemas.

Com essa lei aprovada, queremos implantar algumas mudanças que estão na mão da secretaria. O primeiro item é a precificação. Obviamente, quando vieram as primeiras OSs não havia histórico do custo do serviço de saúde. Agora, já temos anos de trabalho nas unidades, que nos fornecem a informação sobre quanto custa uma cirurgia cardíaca, qual a média de uma consulta de cardiologia, quantos exames por ano faz uma unidade, e assim por diante. Com uma precificação bem feita, podemos fazer um edital que seja mais específico para aquela determinada unidade, o que é outro ponto identificado e que precisamos mudar: os termos para cada licitação precisam ser bem feitos e bem esclarecidos para aquela unidade. Então, se estamos falando do HGG, por exemplo, é preciso estar bem claro que é uma unidade de transplantes, precisamos ter ideia da quantidade de cirurgias que faz, que não tem pronto-socorro, saber quantas consultas atende etc. É uma unidade muito específica, que tem uma atenção que a gente chama de “quaternária”. Portanto, um HGG não pode ter um edital igual ao de uma policlínica. Hoje, esses editais são muito parecidos nos termos que são usados. Isso abre margem para as OSs questionarem [judicialmente] as glosas, as cobranças que são feitas nos processos. A lei, então, já nos ajudou com poder ter uma precificação bem feita, com um edital que exija uma qualificação melhor.

O primeiro ponto da lei é que ela separa OSs de saúde. A partir de agora, para uma OS entrar em um edital, ela precisa ter pelo menos três anos de atuação em saúde – antes, isso era exigido apenas de seu responsável ou dirigente. Agora, é a OS que precisa ter essa experiência na área de saúde. Além disso, passamos a exigir que apenas 3% do valor do contrato seja gasto em despesas administrativas, e com autorização prévia da Secretaria da Saúde. Vamos regulamentar uma série de implementações que a gente ainda precisa fazer na lei, melhorando essa qualificação.

A exigência técnica dos dirigentes precisa ser de acordo com a unidade que estamos licitando. Não podemos ter à frente de uma unidade como o Crer [Centro de Reabilitação e Readaptação Dr. Henrique Santillo], por exemplo, uma pessoa que sempre foi de outra área, que não se relaciona com a complexidade que há no Crer ou, para dar outro exemplo no Hugol [Hospital de Urgências Governador Otávio Lage]. Para cada unidade, sua especificidade. Basicamente, a ideia é melhorar os chamamentos e a qualificação dessas OSs. Também vamos garantir que haja punições, com sanções e desqualificação. A desqualificação hoje é difícil de ser executada, porque a lei não ampara, a não ser em casos extremos. Precisamos construir algo que ainda não foi feito: um instrumento – e que seja regulamentado pelo governador – para que constantes avaliações feitas nas OSs que não atinjam seus objetivos – sejam financeiros, sejam metas, sejam por mau uso do dinheiro etc. – culminem com a desqualificação. De outra forma, ficamos sem poder de cobrança junto às OSs.

Secretário Sérgio Vencio fala aos jornalistas Marcos Aurélio Silva e Aline Bouhid, na sede do Jornal Opção | Foto: Walter Sales

Marcos Aurélio Silva – Procede que deve haver mudanças no prazo de vigência da validade dos contratos com as OSs, para ampliá-los?

Houve uma mudança na lei geral, antes da aprovação da lei das OSs específica para a saúde, em que os contratos poderiam ser – à discrição apenas do governador – ampliados de 12 para 24 anos. Mas isso não é uma obrigatoriedade. Hoje, a maioria dos contratos é feita no prazo de 4 a 5 anos, podendo ser renovados anualmente para até 12 anos, quando, se for do interesse estratégico do governo, ser renovado por até mais 12 anos, mas também com renovações anuais. É um ponto que é positivo, porque, se há uma empresa prestando um bom serviço ao Estado, toda vez que for aberto um novo processo licitatório, obviamente ele precisa ser respeitado e, eventualmente, outra empresa pode ganhar e não ter o mesmo desempenho. O que queremos, por óbvio, é que todos os nossos editais promovam essa qualificação e que, independentemente de quem vencer, seja mais fácil atingir esse objetivo. É uma carta na manga que o governador passa a ter, nem o próprio secretário pode autorizar.

Aline Bouhid – Uma das críticas é de que esse novo modelo vai concentrar muito poder nas mãos do governador. Como responder a isso?

Na verdade, vamos poder ter essa resposta só depois que tudo for regulamentado. Digo isso porque todas as leis podem ser regulamentadas e modificadas a pedido do governador, passando pela aprovação da Assembleia. Isso vale para todas as leis. No caso específico, a Alego entendeu, depois de nossa explicação, que a intenção é aumentar o nível de qualificação das OSs e, eventualmente, abrir brechas para outros tipos de parcerias. Hoje falamos só de OS, mas há, por exemplo, as parcerias público-privadas (PPPs), uma modalidade pouco explorada no Estado ainda, porque a empresa privada precisa colaborar. Dando um exemplo: qual é nosso grande diferencial na saúde em Goiás? É a atenção secundária, que está sendo montada por meio das policlínicas. Pouquíssimos Estados têm isso, se é que têm. Todo Estado tem hospital, tem atenção primária – que vai para a responsabilidade dos municípios –, mas a atenção secundária, às vezes, é largada de lado, apesar de ser fundamental para doenças que matam. Estamos falando aqui de hipertensão, de doença pulmonar crônica, de diabetes, enfermidades que, depois de acidentes e câncer, são as que mais matam.

Nesse sentido, algo muito importante é a telemedicina. No próximo ano, um de nossos objetivos estratégicos será levar a telemedicina para as policlínicas, o que vai proporcionar que a gente tenha um superespecialista Posse [município referência do Nordeste goiano], sem que necessariamente ele tenha de estar lá fisicamente. Eventualmente, para operacionalizar, podemos ir atrás de uma PPP, a partir de um investimento X. Uma empresa privada que se qualifique pode entrar com metade do valor para ter metade do lucro da operação. Veja que é algo diferente da OS, que, em tese, não pode ter lucro – o que é um problema em si mesmo. O grande problema das OSs é este: como fazer um contrato no qual se fala que não se pode ter lucro? Quem trabalha para não ter lucro? É uma coisa meio complicada, mas é o que está na lei. Na PPP, isso fica claro: estamos entrando com o mesmo montante para ter o mesmo lucro. O que o Estado vai fazer com sua parte é problema dele, da mesma forma vale para a empresa privada.

Temos também outros tipos de parceria, como o termo de fomento, que é o que foi feito em Aparecida de Goiânia, onde foi construído um edital em que se abre para OS e para empresas sem fins lucrativos, como foi o caso do [Hospital Albert] Einstein naquele município.

Marcos Aurélio Silva – Na prática, como funciona o Einstein nesse sistema em vigor em Aparecida? O hospital consegue ter lucro?

O Einstein, o Sírio [Libanês] e outros hospitais de alto nível têm outro CNPJ, pelo qual atuam como empresas de responsabilidade social. Então, eles querem prestar esse serviço, por vários motivos. E acabam fazendo isso muito bem. Hoje, sei que uma parte dos médicos do Einstein aqui em Goiânia atende também lá em Aparecida, o que para os aparecidenses é maravilhoso. Tudo é baseado na gestão Einstein, é feito todo um treinamento, muito diferente até mesmo do que costumamos ver aqui em nossos hospitais privados. Essa é outra possibilidade que temos. A ideia, que a Assembleia atendeu, é que o governador terá esse aumento de poder, mas que, assim que o decreto for finalizado e aprovado, é que poderemos dizer se tal poder foi bem usado ou mal usado. Eu acho que será bem usado.

Marcos Aurélio Silva – Assim que o governador assumiu o Estado, foi elencando prioridades ano a ano. Em 2019, ele anunciou que a prioridade do ano seguinte seria a saúde. E, por coincidência, tivemos o curso da pandemia. Dentro das prioridades, Caiado citou a questão da regionalização do atendimento, que era um problema já identificado há muito tempo, com pacientes de todo o Estado se concentrando em Goiânia e Aparecida. Como está hoje esse quadro? Foi possível atender satisfatoriamente?

Em termos da atenção terciária, o quadro está quase completo. Em 2023, vamos inaugurar o Hospital de Águas Lindas. O que vai ficar faltando, na questão da regionalização, é a rede oncológica, que virá com o Hospital do Amor, cuja construção começa no ano que vem. Com isso devemos fechar essa cadeia. Mas essa descentralização ocorre de maneira muito mais eficaz pela atenção secundária, com as policlínicas. Tivemos um corte na saúde da ordem de R$ 580 milhões para o ano que vem, por conta do ICMS e talvez seja esse o empecilho de fazermos as policlínicas já em 2023. Mas isso está, sim, no planejamento do governador e, nos próximos quatro anos, vai acontecer.

Uma coisa importante é que, ao longo do tempo, caminhamos na SES para um prontuário único. Então, um paciente que for atendido em uma unidade de Goiânia terá seu prontuário encaminhado para a policlínica ou um hospital regional, como Itumbiara, Posse ou Uruaçu. Isso porque se usa o mesmo sistema de gestão. Só que, para isso tudo funcionar de verdade, precisamos ter muito apoio das prefeituras, na questão da atenção primária, que é atribuição dos municípios. Essa relação é algo que vem sendo construído e aprofundado. Estamos muito próximos do Cosemes [Conselho dos Secretários Municipais de Saúde], porque depende dos secretários essa pactuação, quem pode atender o munícipe de qual outro município, que dinheiro vai de um para outro, onde falta isso ou passa aquilo. A gente sabe que a regionalização nunca vai ser algo 100%, porque trabalhar com saúde é sempre complicado e as demandas estão sempre surgindo, mas tudo pode melhorar bastante com essa comunicação melhor entre Estado e municípios e isso está sendo construído de diversas maneiras.

Marcos Aurélio Silva – Algo que é sempre um tema sensível é a regulação. O que pode ser feito para que a população tenha, mais do que um entendimento melhor sobre esse ponto, um atendimento adequado?

Regulação é um ponto fundamental dentro do sistema, porque é onde se faz a comunicação entre quem solicita e quem oferta determinada vaga. Os municípios têm suas próprias regulações e, de alguns anos para cá, por exemplo, os hospitais do Estado de Goiânia tinham a regulação feita pelo município. Porém, o governo estadual entendeu – e eu concordo plenamente – que quem tem de fazer essa regulação é o próprio Estado, porque é ele quem paga a conta. Temos aqui hospitais caríssimos, como o Hugol e o Crer, que precisam que o Estado, que aporta ali milhões e milhões todo mês, mande quem está internado lá dentro. Existe uma coisa chamada plano de fortalecimento, em que o Estado paga alguma conta do município relacionada à saúde. Por exemplo, determinado município tem um hospital, que pode até ser privado e atender o SUS, e que estendeu os leitos de UTI por conta da Covid-19. E agora, por um motivo ou outro, pediram a continuidade da UTI, porque a cidade precisa, para não encaminhar toda hora um paciente para Goiânia. Isso faz parte do processo de regionalização. Quem paga a conta dessa UTI é o Estado, mas quem regula o paciente é o município. Ou seja, o Estado paga a conta, mas, se precisar da vaga, pode não ter acesso a ela. É uma questão complicada e que precisa de uma comunicação feita de forma mais fluida. Entendo que cada rede tem de ter sua própria regulação, só que elas precisam conversar melhor entre si, para que a gente tenha esses leitos mais acessíveis e de forma mais rápida a todos os usuários, que é o que interessa no fim das contas.

Italo Wolff – O sr. mencionou hospitais privados que atendem ao SUS. Recentemente, o Jornal Opção fez uma matéria em que mostramos que o número de unidades que faz esse tipo de atendimento está caindo muito porque há uma grande defasagem na tabela. Da mesma forma ocorre com os hospitais filantrópicos. Definir os valores dessa tabela não é atribuição do Estado, mas há algo que possa ser feito nesse nível?

Não, infelizmente não temos o que fazer em relação ao SUS, já que tudo vem do Ministério da Saúde. O que o Estado tenta fazer é contribuir de alguma forma. Por exemplo, a Santa Casa de Anápolis é “toda” SUS e regulada pela prefeitura de Anápolis. Mas a gente contribui com R$ 2 milhões mensais pelo Estado, porque sabemos que o dinheiro do SUS não é suficiente para o serviço, que é altíssima qualidade – há uma rede de gestantes, por exemplo, que é fantástica. Na secretaria, estamos estruturando um núcleo de captação de recursos voltado para os municípios para oferecer uma estrutura de informática, auxílio jurídico etc., para que eles possam fazer esse caminho de obtenção de verbas no Ministério da Saúde. Tem muito recurso no ministério, o que falta é saber pedir. A gente vai fazer essa interface, o dinheiro não vem para o Estado, mas todo dinheiro que vai para os municípios economiza ao Estado, de alguma forma.

Por tudo que vivemos na pandemia, falar de mais imposto é algo complicadíssimo

Marcos Aurélio Silva – O novo tributo sobre o agro vai servir a um fundo de infraestrutura. O sr. acha que poderia ser pensado algo assim para a saúde?

Eu acho que o governador não tem mais artéria para isso não (risos). Falando sério, eu acho difícil. Acompanhei o sofrimento dele nessa questão, porque o Estado perdeu R$ 6 bilhões. Este é um ponto importante: não é um imposto, é uma contribuição para quem já recebe algum benefício do Estado. Essa pessoa pode optar por uma coisa ou outra, não é obrigatório pagar essa contribuição, é só abrir mão do benefício, ou é um ou é outro. E esse dinheiro, segundo fui informado, não chega a R$ 1 bilhão. Só que o Estado perdeu R$ 6 bilhões. Ou seja, mesmo esse dinheiro entrando e garantindo bastante coisa para a infraestrutura, não será suficiente para cobrir os gastos. Mas, por tudo que vivemos na pandemia, com a recessão econômica, tudo o mais, falar de mais imposto é algo complicadíssimo. Temos conversado bastante com os secretários de Saúde dos municípios, que pedem para aumentar o investimento do Estado e digo que a saída não é essa. Precisamos buscar soluções mais inteligentes em que todos se unam e revejam essa integração entre municípios e Estados, otimizando o processo. Ninguém consegue nada com esse aumento de dinheiro o tempo todo.

Aline Bouhid – O sr. poderia aprofundar um pouco mais na ideia de os municípios captarem recursos diretamente com o Ministério da Saúde?

Vou dar um exemplo: agora em novembro o governo federal comunicou Estados e municípios que a rede Rami [Rede Materno-Infantil] teria pouco mais de R$ 600 milhões a investir, mas seria necessário atender a algumas exigências para acessar o dinheiro. A informação já existia há algum tempo, então quem havia se preparado para isso saiu na frente. Conseguimos nos beneficiar dessa notícia porque já estávamos correndo atrás disso com os municípios. A ideia é fazer isso sempre nos antecipando. Pedimos ao governador para enviar à Alego a restruturação do organograma da SES para ter, lá dentro, primeiramente uma minicontroladoria-geral para fiscalizar os contratos e uma terceira linha de auditoria.

Aline Bouhid – Então haverá um controle interno na SES?

Exatamente, uma espécie de CGE [Controladoria-Geral do Estado] dentro da secretaria. Além disso, vou pedir a criação de uma Subsecretaria de Planejamento, na qual haverá uma parte dedicada à captação de recursos. Quero que já esteja planejado o que vai ocorrer no próximo ano, para preparar os municípios para a captação, de modo que estejamos sempre prontos. No caso da Rede Rami, depois de sair a informação oficialmente, havia apenas 15 dias para adaptar. Pouquíssimos conseguiram fazer.

Aline Bouhid – A vacina contra a Covid para crianças em segunda dose voltou a estar na ordem do dia. Como o Estado está se preparando para ofertá-la?

Estamos prontos. As doses vêm do Ministério da Saúde e tivemos conhecimento de que já chegaram algumas doses da vacina bivalente, que pega a ômicron e as cepas mais antigas. Já têm dois tipos de vacinas, que serão distribuídos a partir de janeiro, mas não conseguimos nada, porque essa distribuição vem pelo Ministério da Saúde. A Superintendência de Vigilância Sanitária, sob o comando da superintendente Flúvia Alcântara, preparou bem a rede que vai até os municípios. A gente precisa agora receber a vacina. O fortalecimento da Vigilância Sanitária é um de nossos objetivos estratégicos para o próximo ano, inclusive com a abertura de concurso público para fiscais, algo que já precisamos há algum tempo. Também precisamos estruturar uma unidade de resposta rápida para pandemias, algo que não existia e que queremos deixar formatado. Precisamos tomar esse aprendizado para tudo que formos fazer, inclusive em relação à construção de hospitais. Não faz sentido mais ter UTI de pronto-socorro sem boxes individuais, que foi um problema terrível durante a pandemia, porque precisávamos fechar uma unidade inteira porque um único paciente estava com Covid e o que tínhamos era um salão.

Como um pai vai conviver com um filho paralítico, tendo de explicar que não o vacinou por causa de uma teoria tal

Marcos Aurélio Silva – Nos últimos anos, por conta de uma campanha antivacina, tivemos baixa da imunização contra todas as doenças. O que o sr. pensa que pode ser feito para reverter esse problema?

Não sei como resolver. Virou uma coisa cultural, complicada, não só no Brasil. Continuo atendendo em meu consultório – sou endocrinologista – e esses dias recebi um americano que se mudou para cá e que se nega completamente a se vacinar, tendo toda uma teoria para justificar esse comportamento. Mas, se a campanha não está resolvendo, sem ela é muito pior. O governo federal precisa comprar as vacinas, distribuir em tempo útil e financiar as campanhas. O Estado tem de contribuir, capacitar as pessoas para fazer a distribuição e aplicação e, como você disse muito bem, o problema não está restrito à Covid. Nós nunca vacinamos tão pouco contra a poliomielite, contra o sarampo. São doenças que já haviam sumido do mapa e de repente voltaram. É uma coisa ridícula, ao mesmo tempo em que estamos trabalhando na secretaria com o Dr. Marcelo Rabahi, da UFG, para erradicar a tuberculose – que é um programa nosso para o ano que vem, tivemos mais de 800 casos da doença no Estado –, ver esse reflorescimento da pólio. Como um pai vai conviver com um filho paralítico, tendo de explicar para ele que não o vacinou porque tinha uma teoria tal que dizia tal coisa sobre a vacina? As pessoas precisam pensar nisso, porque é muito fácil falar em não vacinar. Não se pode proibir matrícula de aluno não vacinado, chegamos a discutir isso profundamente em reuniões, mas podemos pedir ao pai que encaminhe o cadastro vacinal e, com esse dado, ter uma ação – por meio de assistência social, por exemplo – que traga esse pai ou essa mãe como parceiros.

Precisamos mostrar que estão colocando os filhos sob um risco totalmente necessário. Voltemos para a Covid: qual foi o último boom de internação? Foi a faixa de zero a 9 anos. E se o filho morrer, como os pais vão lidar com isso? O filho pode ser vacinado contra a Covid e morrer, pode, mas isso ocorrer é bem mais raro. As vacinas claramente mudaram o curso dessa doença. O que as pessoas precisam entender é que a vacina contra a Covid, assim como contra a gripe, não vai evitar a doença, mas vai fazer com que ela venha na forma leve. Isso porque esses vírus mutam, diferentemente da pólio, do sarampo ou do tétano. Para essas, a vacina existe para não pegar a doença. Para a Covid, a vacina não é para não ter mais a doença, vacina-se para não morrer. No meu caso, depois da quarta dose de imunização, já peguei Covid duas vezes. Mas os sintomas passaram quase despercebidos – em uma das vezes, fui fazer uma visita e, por precaução, fiz o teste e descobri que estava com o vírus. Se ainda há quem não queira enxergar que a vacina mudou tudo, realmente é uma situação difícil.

Marcos Aurélio Silva – A UFG, como o sr. citou em relação à tuberculose, tem vários estudos em desenvolvimento. Durante a pandemia, a instituição colaborou bastante com o poder público. É uma parceria que vai “pegar”?

Sem dúvida. Na pandemia, a UFG nos ajudou com a produção de testes, com dados e projeções – uma delas em um modelo matemático que foi criticado, mas que acabou se mostrando correto. Semanas atrás, tivemos uma reunião sobre um programa do Ministério da Saúde para tratamento de hipertensão na atenção secundária. Aqui em Goiás, esse programa vai ser implantado por meio da Liga de Hipertensão da UFG, coordenado pelo dr. Weimar [Kunz Sebba Barroso de Souza], meu colega de residência médica. É um projeto que já existe em outros Estados e para o qual há verba, inclusive para os municípios – para capacitação de médicos, enfermeiros, técnicos etc., para tratamento etc. São parcerias em que todos ganham e eu, pessoalmente, devo tudo à UFG, onde fiz minha formação, residência, mestrado e doutorado. Tive uma pauta com o dr. Waldemar [Naves Do Amaral] e o dr. Fernando Calheiros, diretores [respectivamente] da Faculdade de Medicina e do Hospital das Clínicas. Temos em conjunto um programa para doença pulmonar obstrutiva crônica (DPOC) e asma que foi premiado, inclusive, por ser o melhor programa de assistência – juntamente com o Centro Juarez Barbosa, nossa farmácia de alto custo – para tratamento desses pacientes.

Marcos Aurélio Silva – O que o sr. diz sobre a judicialização de atendimentos de saúde?

É uma questão complicadíssima. Em muitos casos, a judicialização fere o princípio do SUS, que é o de atender toda a população – ou seja, tudo o que o sistema oferecer precisa ser disponível para todos. Com a judicialização, o sistema passa a entregar para um caso o mesmo que custa para atender milhares. O argumento é de que é uma vida em jogo. É verdade, mas, por outro lado, é um dinheiro que poderia ser investido em milhares de outras vidas. É sempre uma decisão muito difícil. O Estado não tem, obviamente, dinheiro para atender tudo.

Temos tentado nos antecipar, com quadros competentes para isso. Por exemplo, em relação à diabetes – que é da minha área –, saiu um remédio que previne insuficiência renal. Só que é caro. O que fizemos? Uma diretriz de tratamento pela qual delimitamos quais pacientes podem se beneficiar com esse comprimido. É um estudo de custo-benefício, porque, tratando determinados pacientes, podemos impedir que eles vão, lá na frente, para a hemodiálise, o que também significa economia. Assim, podemos evitar a judicialização.

Marcos Aurélio Silva – A aprovação do piso salarial da enfermagem preocupa Estados e municípios, em termos financeiros?

Vamos ter um impacto grande. Vários secretários municipais têm se queixado conosco, dizendo que vão precisar de mais ajuda do Estado.

É um custo realmente grande para um município. Um ponto a ser levado em conta é que, na gestão dos hospitais do Estado que são geridos por OSs, algumas delas não vão ter impacto nenhum, porque já pagavam o piso. Têm algumas que pagam além do piso, mas muitas que pagam muito abaixo do piso. E aqui entra um questionamento: algumas unidades estavam contratando equipes por pejotização e isso vai se tornar proibido pela Justiça do Trabalho. Então, fica a pergunta: por que algumas OSs conseguem pagar CLT dentro do piso e outras, não? Parece que fica claro que é uma questão de gestão.

Marcos Aurélio Silva – Que novidades teremos em relação ao Hospital do Amor?

Estamos finalizando o plano de trabalho para enviar à Alego, com a Fundação Pio XII, do Hospital de Barretos (SP) [referência em tratamento de câncer no País]. Por conta da especificidade, o governo entendeu que essa parceria seria interessante para ter um modelo de gestão que apresenta, realmente, uma mortalidade menor do que a média brasileira. A administração doou para o Estado a planta do hospital que querem construir. A rede oncológica está sendo fortalecida, já existe em Anápolis e estamos abrindo leitos dessa área em Itumbiara e Uruaçu, além do Hospital Araújo Jorge, em Goiânia, que é uma instituição filantrópica. Se tudo der certo, vamos inaugurar a ala pediátrica em 2024. A ala adulta vai ficar para o próximo governo.

Marcos Aurélio Silva – Muitos atendimento ficaram represados por conta da pandemia. Como o Estado está lidando com essa sobrecarga agora?

Tivemos uma reunião no Araújo Jorge e a situação é crítica, pelo número de pacientes que procuram. Alguns tiveram a imunidade reduzida e não podiam vacinar nem sair de casa, e uma parte chegou a abandonar o tratamento. Outros não tiveram como procurar médico e não foram diagnosticados precocemente e, agora, o tratamento fica mais complicado. Estamos trabalhando com um incremento financeiro para quem faz o tratamento oncológico, como as Santas Casas e o Araújo Jorge.

Outro gargalo são as cirurgias eletivas. Estamos fazendo pontualmente. Em Aparecida de Goiânia, fizemos um plano de fortalecimento para acabar com a fila de cirurgias vasculares em seis meses. É um ponto importante, porque são cirurgias feitas por hemodinâmica, em qualquer lugar do corpo. Com elas, a gente previne, por exemplo, uma amputação de perna, como nos casos de diabéticos. Os pacientes ganham maior sobrevida. Hoje temos 160 pacientes na fila e temos a expectativa de zerá-la em seis meses.

Também temos filas para cirurgias cardíacas, neurológicas e ortopédicas – esse o grande problema, porque aqui entram órteses e próteses, que têm um custo muito alto, com cirurgias de R$ 50 mil a R$ 100 mil. Realmente, falta dinheiro para acelerar essa fila.

Marcos Aurélio Silva – Qual o papel que o Ipasgo tem hoje na gestão da saúde do Estado?

A situação da saúde pública sem o Ipasgo seria bem pior. É uma forma de atendimento que alivia a carga de pacientes das unidades públicas, principalmente para atendimento eletivo.

Marcos Aurélio Silva – Profissionais que atendem ao Ipasgo, à Unimed e a outros planos se queixam do valor repassado. Dizem que ganham muito mais em seu próprio consultório. Nesse sentido, alguns acabam pedindo descredenciamento. É também algo que está precarizando a saúde?

É uma questão complexa. Penso que os planos têm uma relação ruim com os médicos. Nada ficou tanto tempo sem reajuste como o valor recebido dos planos de saúde. A queixa dos hospitais é válida, porque a criação da Unimed, que seria para fortalecer a classe médica, de uma certa forma acabou por enfraquecer a relação.

Marcos Aurélio Silva – Como o sr. analisa a atuação do governador Ronaldo Caiado frente à pandemia, já que ele foi alvo de muitas críticas e teve alguns embates?

Como médico, posso dizer que ele foi muito feliz e tenho de concordar com ele em 100%. Muitos políticos da própria base ficaram contra o governador. Até entendo essa atitude dentro da política, mas o que deve guiar a saúde é sempre a ciência. O dia em que abrirmos mão disso vamos ter de mudar o nome. Abraham Lincoln [presidente dos Estados Unidos de 1861 a 1865, quando foi assassinado] dizia que não colocava pesquisadores em seu gabinete, porque eles mudam muito de ideia. A ciência é isto: hoje os dados são esses; amanhã, podem ser outros. O que não pode ocorrer é ir contra a evidência científica.

Portanto, o governador agiu baseado no que a ciência estava falando. Pode ser que daqui a alguns anos cheguem à conclusão de que aquilo era errado. Não tem problema, porque os conceitos mudam. Mas no momento da pandemia o governador fez o que a ciência recomendava. E, assim, agiu muito bem.