Italo Wolff e Aline Bouhid

Selene Peres Peres Nunes, é doutora em Contabilidade pela Universidade de Brasília (UnB), além de graduada em Economia pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e em Ciências Contábeis pela Universidade Católica de Brasília (UCB). É auditora federal de Finanças e Controle da Secretaria do Tesouro Nacional (STN), atualmente cedida para o Estado de Goiás, onde foi subsecretária do Tesouro Estadual e hoje é a secretária de Economia do Estado.

Também é professora de Finanças Públicas em Cursos de Pós-Graduação e recebeu quatro prêmios do Tesouro Nacional. Como Assessora Econômica do Ministério do Planejamento, Orçamento e Gestão, foi uma das responsáveis pela elaboração do Projeto de Lei de Responsabilidade Fiscal e pela sua negociação técnica no Congresso Nacional.

Foi autora das propostas para a Lei de Responsabilidade Fiscal do Equador, do Paraguai e da Jamaica. Foi Coordenadora de Normas de Contabilidade Aplicadas à Federação, área responsável pela edição dos Manuais da Secretaria do Tesouro Nacional e pela coordenação dos Grupos Técnicos de Padronização de Relatórios e de Padronização de Procedimentos Contábeis, precursores da Câmara Técnica de Normas Contábeis e de Demonstrativos Fiscais da Federação (CTCONF). 

Nesta entrevista ao Jornal Opção, Selene Peres fala sobre o Regime de Recueração Fiscal (RRF) em que Goiás está inserido, sobre a reforma tributária e o novo arcabouço fiscal. A secretária de Economia comenta ainda seus temas de especialidade nas Finanças Públicas: orçamento público, política fiscal, contabilidade pública e lei de responsabilidade fiscal.

Aline Bouhid — Recentemente, houve um encontro do ministro da Fazenda Fernando Haddad (PT) com o governador Ronaldo Caiado (UB) para discutir a saída de Goiás do Regime de Recuperação Fiscal (RRF). Estamos prontos para sair do regime? 

Não, Goiás não está pronto para sair do regime. O que aconteceu foi: a Secretaria do Tesouro Nacional elaborou uma nota técnica utilizando dados do Sistema de Informações Contábeis e Fiscais do Setor Público Brasileiro (Siconfi), que dispõe de informações incompletas. Segundo o Siconfi, as receitas que nós temos seriam suficientes para suportar o pagamento de juros da dívida com a saída do estado do RRF. 

Mas, segundo a regra do RRF, seriam necessárias receitas recorrentes. Ou seja, receitas que se repetem ao longo do tempo, em volume suficiente para pagar o fluxo de serviço da dívida. Então, nós enviamos à secretaria do Tesouro Nacional e ao Conselho de recuperação fiscal uma nota técnica mostrando que várias das nossas receitas não são recorrentes. Nós tivemos, por exemplo, a privatização da da Celg T. O dinheiro da venda dessa estatal entrou nas receitas que o tesouro nacional considerou como sendo recorrentes, mas ela não vai se repetir no ano que vem. 

Da mesma forma, perdemos arrecadação com a Lei Complementar (LC) 194/22, que desonera ICMS de combustíveis, energia, gás, transporte coletivo e comunicações. Essa perda vai se perpetuar ao longo do tempo, mas começou a surtir efeitos apenas em agosto do ano passado. Neste ano, desde já, ao longo dos 12 meses, estimamos perda de R$ 4 bilhões por conta dessa Lei Complementar, que foi considerada apenas por 5 meses de 2022.

Se, no primeiro semestre de 2022, tivemos um crescimento de 16,98% em relação ao mesmo período do ano anterior, essa não será a realidade deste ano. No segundo semestre de 2022, com a vigência dessa legislação, a gente teve uma queda nominal de 7,52% e isso vai se perpetuar. Portanto, não considerem que nós temos condição de sair do RRF porque a realidade do estado não será sempre aquela fotografada pelo Siconfi. 

Selene Peres cede entrevista na sede do Jornal Opção | Foto: Leoiran / Jornal Opção

Italo Wolff — Nessa reunião com Haddad, a senhora considera que o ministro compreendeu esses argumentos?

A gente explicou que desejaríamos sair antes, se possível. Goiás fez todo o dever de casa e, até a aprovação da LC 194, nos preparávamos para deixar o regime antes da data prevista de 2029. Mas a perda de receita modifica o cenário completamente. Fizemos a nota técnica justamente para mostrar que ainda não atingimos o equilíbrio fiscal previsto no regime. E não atingimos porque foi a própria União que deu causa à perda de arrecadação. Ao editar legislações que comprometem o equilíbrio fiscal do estado em nível federal – não fomos nós quem causamos essa perda ou um gasto imprevisto. 

Tivemos o piso de magistério editado pela União, o piso da enfermagem também em nível federal, o comprimento do salário mínimo, o aumento do Supremo Tribunal Federal (STF). Somos passivos nisso; nós simplesmente arcamos com as consequências. Nosso argumento foi justamente esse: “Não venham cobrar de nós algo a que nós não demos causa”. 

Na reunião com o ministro Haddad e nas várias reuniões que tivemos com a secretaria do Tesouro Nacional, foi sinalizada a possibilidade de modificar algumas regras do RRF. O secretário Rogério Ceron anunciou a possibilidade em uma coletiva. Os estados que estão no regime enviaram seus secretários de Fazenda e discutimos como essas regras poderiam ser alteradas.

Esperamos que a Secretaria do Tesouro Nacional divulgue o texto do que seria esse projeto de lei complementar para alterar regras do regime. De pronto, o que a gente pediu foi a revisão imediata das metas financeiras do regime. O regime precisa ser repactuado diante das novas condições, porque nada disso estava previsto e todos os estados em RRF tem dificuldade de cumprir com aquilo que foi acordado. 

Italo Wolff — A nota assinada pelo Rogério Ceron menciona que o resultado primário em Goiás foi de R$ 3,3 bilhões quando a meta era R$ 277 milhões. Goiás ficou acima da meta de restos a pagar, mas ficou abaixo do limite. Não será difícil convencer que o estado precisa permanecer no RRF?

Pelo cálculo do Tesouro, o resultado primário é de R$ 3,3 bilhões, mas seria necessário fazer uma série de deduções de despesas primárias extraordinárias, temporárias, pagamentos de sentenças judiciais e outros. O resultado primário de Goiás após o pagamento dessas obrigações seria de R$ 954 milhões. O serviço de competência para apuração de equilíbrio é da ordem de 2,4, o que significa que nós não teríamos resultado primário suficiente para suportar esse serviço por competência. 

Italo Wolff — Sobre o teto do RRF, às escutamos que Goiás tem dinheiro em caixa, mas não pode gastar para não romper o teto. Isso é verdade?

Goiás está submetido a dois tetos. Há um teto que se aplica às despesas correntes, que é o teto da LC 156. E existe o teto para quem está no RRF, que inclui investimentos, que é o teto da LC 159. O teto da LC 156, que afeta todos os estados, é muito mais rigoroso. 

Em 2018, no governo anterior, Goiás deu causa a um descumprimento de teto, e por conta disso nós seríamos penalizados com uma multa. Com muito esforço, nós negociamos junto a outros estados no Congresso Nacional a aprovação da Lei Complementar 178, que permite aos estados repactuar o teto ou levar o que não foi pago para o serviço da dívida. Goiás optou por repactuar esse teto por mais três anos.

Agora, esse período se encerra, mas já existe previsão para um novo descumprimento do teto neste ano. Uma das razões é justamente essa divergência que temos com o tesouro. No teto da LC 156, se deduz o mínimo constitucional que deve ser investido em Educação e Saúde. Mas esse mínimo constitucional é calculado como um percentual da receita. A gente se preparava para cumprir integralmente o mínimo constitucional de Educação e Saúde, até que houve a queda de arrecadação e passamos a gastar muito além do teto em Saúde e Educação. Não podemos deixar de gastá-lo pois se montou uma estrutura de hospitais, escolas, funcionários – gastos continuados que não podem deixar de ser feitos.  

Esse desequilíbrio orçamentário, logicamente, gerou uma pressão sobre o teto de gastos. Porque tudo aquilo que excede o mínimo constitucional conta como despesa que fura o teto de gastos. A diminuição na arrecadação acabou afetando também o cumprimento do teto de gastos da LC 156. Se soma à complicação o piso da enfermagem, piso do magistério, todas essas novas despesas a que não demos causa e que pressionam o teto. 

Então, essa é a razão pela qual o Goiás não pode gastar o que existe no caixa e também a razão pela qual a Procuradoria Geral do Estado (PGE) questionou a Secretaria do Tesouro Nacional (STN), entrando com uma Ação Cível Originária (ACO) no STF. Queremos considerar no cômputo do teto de gastos o fato de que nós não demos causa a menor arrecadação e maiores gastos. 

“Temos R$ 9 bilhões em caixa, mas não é um dinheiro livre para gastar – está comprometido com restos a pagar e a nossa receita caiu” | Foto: Leoiran / Jornal Opção

Italo Wolff – E como está a perspectiva? Como isso deve se desenrolar no supremo e na STN?

Estamos tentando evitar multas por duas vias. Na primeira, pedimos ao STN, e em outra, a PGE pediu ao STF para nos salvaguardar em caso de descumprimento de teto. De toda forma, estamos fazendo todo o esforço para cumprir o teto, inclusive com decreto editado pelo Poder Executivo limitando empenhos e exigindo o cancelamento de empenhos em andamento. 

Respondendo à sua questão original: sim, nós temos dinheiro em caixa, mas é preciso fazer algumas observações. Não é um dinheiro livre para gastar. Boa parte desse caixa está comprometido com os restos a pagar, com vinculações legais. Em segundo lugar, caixa não é receita; ou seja, esse foi um caixa acumulado no momento em que o estado tinha uma arrecadação mais elevada. Como a arrecadação caiu, será muito difícil continuar acumulando caixa. Por isso, precisamos tomar cuidado para criar despesas continuadas, caso contrário, vamos nos endividar no futuro, quando esse caixa acabar.

Além de tudo, fazer empenhos utilizando esse caixa compromete o teto de gastos, o que causa multa e significa mau uso do dinheiro público. Não convém utilizar esses recursos nesse momento. É preferível deixar para o ano que vem em diante, quando o novo arcabouço fiscal for implementado e as condições do teto LC 156 forem diferentes. 

Aline Bouhid — Quanto temos em caixa e de quanto seria a multa pelo descumprimento do teto?

Goiás tem cerca de R$ 9 bilhões em caixa. Descumprir o teto de gastos da LC 156 significa pagar cerca de R$ 2 bilhões a mais de dívida. Você teria condições de financiamento da dívida, mas a gente não quer o mau uso do recurso público. Não faz sentido pagar isso para a União quando se pode esperar. 

Não compensa para Goiás sair do regime, porque assim se teria de pagar muito mais dívidas, e o teto da LC 156 independe do RRF. Voluntariamente, não sairemos vamos lutar até o final para permanecer nele. O teto do regime, a LC 159, é mais abrangente, e não estamos preocupados com ele no momento. 

Aline Bouhid — O que se pode fazer para equilibrar a perda de arrecadação? 

Já estamos fazendo um esforço maior de fiscalização. Efetuamos grandes programas, como a operação safrinha, e outros, para combater a sonegação e a concorrência desleal no estado. O departamento de Trânsito também tem nos ajudado muito. Fazemos diversas operações específicas com o fisco, que tem feito um excelente trabalho. 

Italo Wolff — Quanto às mudanças na Lei de Responsabilidade com a aprovação do novo arcabouço fiscal. Como te parecem essas modificações?

Rio de Janeiro, Rio Grande do Sul, Minas Gerais e Goiás – o conjunto dos estados no RRF – ficarão submetidos ao teto de gastos da LC 159, que é indexado pela inflação via IPCA. Por isso, questionamos a União. Dissemos ao STN: “Vocês estão exigindo de nós uma coisa que nem vocês mesmos conseguem cumprir.” Não é justo que apenas estes estados fiquem presos ao teto de gastos enquanto demais estados se guiam pela nova regra. 

O arcabouço fiscal é mais brando, pois seu teto pode variar conforme a arrecadação. Ele considera o crescimento econômico, o que seria muito positivo para nós. Infelizmente, não está previsto para Goiás. Foi o que dissemos ao STN: “Vocês querem adotar uma regra para si e outra para os outros.” 

Houve receptividade no sentido de ouvir nossas queixas e sinalizar mudanças. Principalmente no caso de Goiás, que é um estado que cumpriu com todas as regras do RRF e bateu as metas financeiras. Goiás é considerado um bom aluno, nesse sentido, e consideramos que deveria ser premiado com um percentual do crescimento econômico. 

“Dissemos ao Tesouro Nacional: ‘Vocês exigem de nós algo que vocês mesmos não conseguem cumprir’” | Foto: Léo Iran / Jornal Opção

Aline — Por que a reforma tributária prejudica Goiás? 

Existem quatro pontos que prejudicam o estado de Goiás. O primeiro deles é o conselho federativo. A ideia de centralizar a arrecadação na União é algo que afronta o princípio federativo, que é uma cláusula pétrea da Constituição. Os estados e municípios têm as prerrogativas de arrecadar ICMS e ISS, e a ideia de que a União pode concentrar toda a arrecadação para depois distribuir aos estados e municípios fere o princípio em que se baseia a federação. 

A composição desse conselho federativo também é problemática, pois o critério populacional para votação neste conselho federativo causaria a concentração de poder na região Sudeste. Essa questão se relaciona com outra, que é o princípio do destino. Ou seja, a transição da arrecadação de impostos da origem de produtos para o local de destino onde são consumidos – isso privilegia os estados mais populosos do país, com maior mercado consumidor. 

São Paulo, Minas Gerais, Rio de Janeiro e alguns estados do Sul terão maior participação no conselho federativo e terão maior arrecadação por terem população maior do que a das regiões em desenvolvimento. Isso causa a concentração do poder e recursos e aprofunda as desigualdades. As regiões Norte, Nordeste e Centro-Oeste ficarão impedidas de conceder incentivos fiscais, que são as ferramentas que se tem para equilibrar o desenvolvimento regional do país. 

Este é o segundo ponto: estados produtores, como Goiás, perderão indústrias. Quem produz sempre busca reduzir seus custos, como o gasto com transporte. É natural que o produtor procure ficar próximo do seu mercado consumidor ou da origem de seus insumos, a depender do que é mais caro na sua estrutura de custos. Empresas estabelecidas em Goiás já destinam seus produtos ao maior mercado consumidor, que está nos estados do Sudeste, e é para lá que as empresas se sentirão atraídas, para reduzir seus gastos com transporte.

Hoje, o que temos para oferecer de modo a atrair empresas são os incentivos fiscais. Não apenas Goiás, mas todo o Norte, Nordeste e Centro-Oeste. Essa é uma pauta cara a todo o Brasil em desenvolvimento. Precisamos pensar: “Qual Brasil queremos ter no futuro? Queremos que os estados emergentes se desenvolvam? Ou queremos ter um um Brasil mais desigual, com mais concentração de recursos onde eles já estão historicamente se acumulando?”

Bom, no Norte existe a Zona Franca de Manaus, que foi incluída na reforma tributária como uma área de impostos completamente diferenciados. Então, se no Amazonas não se aplica o princípio do destino, com isenções tributárias em função da origem dos produtos lá produzidos, por que não contemplar também estados como Goiás? Por que empresas de outras regiões não podem ter suas condições tributárias mistas, divididas entre destino e origem, por exemplo? Por que temos de levar tudo para o destino?

O terceiro problema é a questão dos créditos fiscais. Hoje, temos o ICMS, que segundo a Constituição é um imposto não cumulativo. Ou seja, um imposto que não incide sobre o mesmo tributo recolhido em etapas anteriores. Na prática, as etapas posteriores dos processos produtivos ou de comercialização recebem créditos em função dos impostos pagos em etapas anteriores. 

Hoje, entretanto, as empresas exportadoras ou empresas no final da cadeia produtiva não conseguem essa compensação de créditos e tendem a acumulá-los. A ideia da reforma é privilegiar empresas exportadoras, atendendo primeiro aos créditos acumulados por elas, e o que sobrasse seria repartido entre estados e municípios. Esses impostos hoje são arrecadados, pois empresas não conseguem compensar os créditos, e passarão a ser renunciados. Os estudos dos impactos da reforma não levam isso em consideração. 

Por último, há o quarto ponto que prejudica nosso estado, que é a fiscalização. Quando se concentra a arrecadação no destino, a fiscalização precisa ir ao varejo. Os estados não têm grande tradição de concentrar sua fiscalização no varejo – pelo contrário, eles utilizam a substituição tributária e focam a fiscalização em grandes contribuintes. 

É uma questão de custo benefício. Para arrecadar impostos, é mais fácil fiscalizar os poucos e grandes contribuintes do que os vários pequenos do varejo. Ocorre que, se vamos concentrar toda a arrecadação no destino, passamos a depender do que acontece na “última milha”. Então, não adianta Goiás fiscalizar grandes contribuintes, pois é um estado produtor. Com o imposto sobre valor agregado (IVA), dependeremos da coleta no destino e de intensificar a fiscalização nos municípios, que estão despreparados para arrecadar no varejo. 

Italo Wolff — Mas eles podem se preparar, não é? Essa base fiscal pode ser modernizada.

A fiscalização pode se modificar após a aprovação da reforma,mas sabe que isso significa um investimento que não está sendo levado em consideração. A conta que todos usam para dizer que a reforma é maravilhosa não contempla todas as modificações colaterais que terão de ser adotadas, como a do fisco. Implementar qualquer coisa tem um custo, o preço da reforma é desconhecido. 

Intensificar a arrecadação na hora do consumo, nos municípios, exije maiores máquinas de arrecadação. Hoje, no interior, quem concede nota fiscal? Raros estabelecimentos, pois as pequenas cidades praticamente não possuem um corpo de fiscais capazes de coibir a sonegação. Isso não é questão teórica, é um dado da realidade, da prática. O Brasil hoje tem um índice de sonegação elevado.

Cidades grandes, como São Paulo e Rio de Janeiro, têm profissionais o suficiente para assegurar arrecadação de ISS, mas o Brasil tem mais de 5,5 mil municípios. Os estados precisarão investir uma quantidade ainda desconhecida de recursos para dar capilaridade a essa arrecadação.

“A reforma tributária é extremamente prematura e irresponsável” | Foto: Léo Iran / Jornal Opção

Italo Wolff — Gostaria de ouvir suas respostas a críticas ao modelo atual, como a de que os impostos sobre a produção desestimulam produtos brasileiros em detrimento dos estrangeiros, que hoje são comprados pela internet. 

Essa questão transcende a reforma tributária. Não temos como evitar o comércio eletrônico, e  acredito que a transferência das taxas para o destino agravam o problema. Se os impostos não são cobrados onde o produto é feito, a arrecadação dos estados vai embora com maior facilidade. Longe de ser uma solução, isso será um problema adicional para Goiás, que é um estado exportador. 

Ainda sobre a sonegação, eu quero lembrar que temos hoje o grande problema das empresas que fracionam o seu faturamento para permanecer no Simples Nacional (regime tributário diferenciado para negócios que possuem uma receita bruta anual de até R$ 4,8 milhões). A mesma empresa tem três CNPJs para evitar taxação. 

Existe também o fenômeno nas empresas noteiras, que só emitem nota fiscal para permitir o creditamento. A reforma tributária prevê o creditamento automático e com prioridade para arrecadação dos estados e municípios. O que vai acontecer? Vai aumentar o incentivo das empresas noteiras e as que fracionam seu faturamento. O resultado é perda de arrecadação. 

Então, não é verdade que a economia vai crescer e que vamos arrecadar mais com a reforma. Existem vários aspectos muito complicados nessa proposta que estão sendo ignorados, principalmente nos estados de regiões menos desenvolvidas. 

Aline Bouhid — Já temos algum estudo sobre a possível variação em nossa arrecadação caso a reforma tributária fosse aprovada da forma como está?

Esse estudo não existe. Temos nas mãos uma questão muito complexa, sobre a qual o governo federal sequer se debruçou. Primeiro, os proponentes da mudança não tinham nem ideia da nova alíquota. A ideia de que ela equivaleria a 25%, como se anunciou a princípio, foi fruto de uma “regra de três”. Pegaram a alíquota do IVA da África do Sul e projetaram no PIB do Brasil, como se fossem países idênticos. Um absurdo. São necessários estudos aprofundados.

Mais recentemente, pesquisadores do Instituto Mauro Borges (IMB) começaram a se debruçar sobre isso para saber qual será a alíquota. Existe a expectativa de qeu ela pode chegar a até 30%, mas, na realidade, tudo vai depender da quantidade de exceções que forem criadas. Quanto mais desonerações para alguns setores forem concedidas, mais pesada será a carga para os demais. 

Há ainda os efeitos intersetoriais, que não foram estudados pelos teóricos da reforma. Quando se faz uma alíquota que em princípio seria única, é muito possível que os serviços tenham um aumento de carga tributária. Ninguém estudou as capacidades de cada área do setor de serviços de suportar esse aumento, ou como o aumento dos preços nos serviços impactarão outros setores. 

Da mesma forma, não há estudos regionais para prever como as empresas vão se movimentar de um estado para outro. É uma questão grave, pois alguns municípios concentram sua atividade econômica em torno de uma empresa e podem ficar sem ela, caso deixe de haver razões tributárias para permanecer em Goiás. A reforma tributária é extremamente prematura e irresponsável.

Aline Bouhid — O fundo não supriria as perdas causadas aos estados? 

Para o Fundo de Desenvolvimento Regional estão previstos R$ 40 bilhões, aportados pela União. Mais recentemente, se ventilou a possibilidade de aumentar para R$ 75 bilhões. A questão é que esses valores são basicamente insuficientes. Este valor deveria ser oferecido em investimentos para motivar a permanência de empresas após o fim dos incentivos fiscais. Ocorre que apenas Goiás, que é um estado relativamente menor, concede R$ 14 bilhões de isenções e se estima que a quantidade de incentivos fiscais concedidos por todos os estados ultrapasse R$ 200 bilhões. Os incentivos de um fundo de R$75 bilhões não bastarão para convencer empresas que atualmente têm mais de R$ 200 bilhões em subsídios.

Há ainda outro problema mais profundo. Naturalmente, todos os estados vão querer um pedaço do Fundo de Desenvolvimento Regional, inclusive aqueles mais desenvolvidos. Não há razão para eles abrirem mão dessa disputa. Se a distribuição privilegiar estados mais populosos (pois o número de habitantes já é um critério cogitado), vamos aprofundar as desigualdades regionais, em vez de reduzi-las

Italo Wolff – É mais ou menos o problema que temos com o Banco Nacional do Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES), certo? Pois o BNDES também investiu dinheiro subsidiado principalmente no Sul e Sudeste. 

Exato. Os teóricos da reforma combatem tanto os incentivos fiscais, mas a União gasta uma fortuna com subsídios na forma de transferência para empresas, e gasta de uma forma que é extremamente concentradora. A maior parte dos estímulos da União vão para estados já desenvolvidos.