Médico goiano é o presidente da Academia Brasileira de Neurocirurgia, que realiza seu congresso nesta semana na capital

Foto: Fernando Leite/ Jornal Opção

Goiânia recebe nesta semana, de 14 a 17 de junho, o 17º Congresso da Academia Brasileira de Neurocirurgia (ABNc). O responsável pela vinda do evento para a cidade é também uma referência internacional na área: o goiano Osvaldo Vilela Filho, presidente da ABNc e também membro da diretoria da Sociedade Mundial de Neurocirurgia Funcional e Estereotáxica –fundou o Comitê de Cirurgia das Doenças Psiquiátricas, do qual foi o primeiro coordenador.

O congresso é como a tarefa final de sua gestão, que se iniciou em 2015. Estarão na capital goiana expoentes da neurocirurgia mundial de todas as áreas – além da neurocirurgia funcional e estereotáxica, autoridades em neurocirurgia pediátrica, tumores, coluna, aneurismas, entre outras.

Nesta entrevista à equipe do Jornal Opção, o neurocirurgião – que também é professor da Faculdade de Medicina da UFG – discorre, de modo bastante didático, sobre as principais doenças que acometem o cérebro e os procedimentos para tratá-las, com foco em sua área de atuação: as cirurgias cerebrais, que são envoltas em mitos e fantasiadas pelas pessoas, em boa parte por causa de experiências desastrosas com a lobotomia, na primeira metade do século passado. Osvaldo descreve como é o pós-operatório da maioria das cirurgias no cérebro: “A pessoa é operada hoje, come no fim do dia, se levanta no outro e no terceiro recebe alta. Mas só vai entender quem passar por isso.” O melhor? “São cirurgias que não doem, ao contrário do que ocorre quando se opera o tórax, o abdome ou algum membro.”

Euler de França Belém – António Damásio [neurocientista português, autor do livro “Mistérios da Consciência”] fala que, com a internet, o cérebro não precisa mais armazenar tanta informação, porque ficou muito fácil encontrá-la por consulta. O sr. concorda com esse ponto de vista?

Eu estou de acordo. Essa mudança está, de certa forma, trazendo às pessoas uma certa demência. Em outra época, todo mundo saberia a maior parte dos telefones das pessoas próximas de cor; hoje, a mãe não sabe o telefone do filho. Por quê? Porque tudo hoje está de fácil acesso.

Elder Dias – É o “efeito Google”, não? Antes era preciso consultar uma enciclopédia, hoje basta um clique…

Euler de França Belém – Damásio diz que ainda não é possível quantificar essa questão, mas os estudos estão avançando.

Faz muito sentido essa tese, até pelo que se observa no dia a dia. É uma observação empírica, o que não a torna menos válida.

Euler de França Belém – Saiu recentemente uma biografia do médico português Egas Moniz, ganhador do Prêmio Nobel de Fisiologia e Medicina por seu trabalho com o advento da lobotomia [cirurgia no cérebro em que se seccionam vias dos lobos frontais], avaliada na época como algo bastante avançado e moderno. Como o sr. avalia hoje o trabalho de Moniz e a lobotomia?

Na verdade, o trabalho original foi realizado na Universidade de Yale (EUA), por cientistas que usavam chimpanzés. Depois de observar os resultados e os efeitos medicadores da lobotomia pré-frontal nos animais – o que foi apresentado em um congresso mundial de neurologia em Londres, em 1935 –, Moniz, que era neurologista, juntamente com um neurocirurgião que com ele trabalhava, Almeida Lima, iniciou um procedimento similar em seres humanos. Ou seja, ele realizou aquilo que tinha sido feito em animais, em Yale, e aplicou a seres humanos. Costuma-se falar somente sobre os pontos negativos da lobotomia – que, sem dúvida, foram graves –, mas não se lembra de que aquilo na época, sem qualquer medicamento para as psicoses, foi algo extremamente relevante e trouxe uma melhora significativa para um número de pessoas.

Evidentemente, como não havia praticamente mais nada para tratar as doenças psiquiátricas, a lobotomia se disseminou e começou a ser praticada sem indicações adequadas. Mas é bom não nos esquecermos de que, naquele tempo, não havia medicação para tratar essas enfermidades. Depois, apareceram sequelas inaceitáveis com a lobotomia pré-frontal e fez-se uma guerra mundial contra o procedimento. Hoje, tudo mudou bastante em relação ao que se chamava “psicocirurgias” – atualmente denominadas cirurgias das desordens psiquiátricas, porque não se faz uma cirurgia “psíquica”.

Em todas as doenças psiquiátricas – depressão, transtorno obsessivo-compulsivo (TOC), esquizofrenia, etc. – observa-se alterações neuroquímicas cerebrais que alteram todos os circuitos e as provocam. Ou seja, as doenças mentais são de fundo neurológico puro, por alterações na química cerebral. Na depressão, há redução dos níveis de serotonina; na esquizofrenia, um aumento dos níveis de dopamina; e assim por diante. Isso em circuitos cerebrais específicos, não em quaisquer circuitos. Isso fez com que a cirurgia psiquiátrica fosse se desenvolvendo, apesar de tudo. Hoje, doenças como depressão, TOC, transtorno da ansiedade generalizada, todas elas podem ser tratadas de forma muito específica e com alvos muito discretos, muito restritos, no cérebro. Melhor: com resultados bastante significativos.

Augusto Diniz – Que números o sr. poderia citar?

Se considerarmos que a depressão tem uma prevalência, nas estimativas mais otimistas, em torno de 10% da população mundial e que de 10% a 20% desses pacientes são refratários ao tratamento conservador – medicações, psicoterapia adequada com profissionais competentes e mesmo à eletroconvulsoterapia [técnica chamada popularmente de “eletrochoque”], o que fazer? Deixar esses pacientes sucumbirem à doença? Há uma enorme taxa de suicídio entre deprimidos, então seria inaceitável não ter alternativa.

Para esses pacientes há a cirurgia psiquiátrica moderna, em que se pode fazer a destruição de pontos muito restritos no cérebro ou implantar eletrodos ligados a estimuladores – como se fossem marcapassos cerebrais – para tratar essas doenças. Isso vale, além da depressão, para as outras.

Euler de França Belém – Em que casos seria necessário fazer uma cirurgia?

Se os pacientes refratários têm uma depressão severa – e temos hoje uma escala para mensurar todas as doenças – e a causa traz impacto muito negativo em seu próprio funcionamento, são candidatos potenciais à cirurgia. O que precisa ficar claro é que a indicação jamais parte do neurocirurgião, é puramente psiquiátrica – e precisa ser do psiquiatra assistente daquele paciente. Isso é o mais importante.

Em segundo lugar, ninguém tem de ser operado de nenhuma doença. Isso somente ocorre quando existe indicação baseada na severidade, na qualidade de vida e somente para aquele que quiser ser operado. Ninguém é obrigado a se submeter a um procedimento.

Euler de França Belém – Houve uma polêmica em relação ao procedimento cirúrgico de sua área, divulgada até pela “Folha de S. Paulo”. O que houve realmente?

Foi algo um pouco complexo. Cada Estado tem sua própria regência, baseada no respectivo Conselho Regional de Medicina (CRM). Mas, mais importante, é o que há no cunho internacional: é preciso seguir normas precisas para a realização dessas cirurgias. Ou seja, a indicação precisa ser de um psiquiatra com a concordância de um segundo psiquiatra, o paciente tem de ter ciência dos riscos e benefícios da cirurgia e deve assinar o termo de consentimento.

Euler de França Belém – No caso específico do mal de Parkinson, como é a cirurgia?

Para ter ideia, a cirurgia para a doença de Parkinson antecede até mesmo a existência de seu tratamento clínico. A levodopa, substância que é o carro-chefe até hoje para o tratamento, só foi disponibilizada no mercado no final da década de 60. Já a cirurgia similar à que fazemos atualmente foi feita pela primeira vez em 1950. Com a levodopa, praticamente acabaram as indicações cirúrgicas.

As principais manifestações da doença de Parkinson são: tremor, rigidez, lentidão de movimentos – cujo nome técnico é bradicinesia (em grego, “bradi”, lento, e “cinesia”, movimento) – e alteração da postura, seja no equilíbrio ou na marcha. Dessas, a manifestação mais resistente ao tratamento medicamentoso é o tremor. Então, por muitos anos, somente esse sintoma, o tremor parkinsoniano, tinha indicação cirúrgica. Com o tempo, porém, houve a percepção de que de 50% a 60% dos pacientes medicados começaram a apresentar complicações que por vezes eram piores do que as manifestações da doença. Por exemplo, o encurtamento do efeito de dose – o paciente começava sendo tratado com dosagem de 12 em 12 horas, depois reduzindo para de 8 em 8 horas, depois de 6 em 6 e assim por diante. Isso tirava a qualidade de vida do paciente. Às vezes, também, desenvolvia movimentos mais incapacitantes do que as próprias manifestações da doença.

A doença de Parkinson, assim como o TOC, a depressão e outras, tem indicação do tratamento pelo neurologista e só tem cirurgia indicada quando a doença tem quadro severo e o paciente não está mais respondendo de forma adequada à medicação. Uma coisa que a gente sempre deixa claro é que aquele paciente que não responde à medicação da mesma forma jamais responderá à cirurgia. Ninguém tem de operar de Parkinson; opera apenas quando indicado e apenas quem está de acordo; ou seja, os procedimentos são sempre os mesmos e tudo feito com extremo critério.

Euler de França Belém – E o índice de sucesso do tratamento, qual é?

Avaliando as três principais manifestações da doença de Parkinson: em relação ao tremor, a chance de melhora é de 90% a 95%; em relação à rigidez, de 85% a 90%; já sobre a bradicinesia, de 68%. A cirurgia é boa para essas três manifestações. Se o problema principal é o distúrbio da fala ou algo relativo ao equilíbrio, então esse paciente não é candidato à cirurgia.

“Não falamos de cura para nenhuma dessas doenças – depressão, TOC, doença de Parkinson e outras. Nada disso a gente cura, tudo isso a gente trata”

Augusto Diniz – O sr. citou as vantagens que a lobotomia trouxe para a psiquiatria daquela época. Hoje se fala em neuroestimulação, mas a especialidade médica da neurologia e da neurocirurgia já consegue tratar com a sociedade e tirar o estigma que a lobotomia causou?

Aquela cirurgia não existe mais. Não se pode comparar o que se faz hoje ao que se praticou naquela época, quando se desconectava o lobo frontal do cérebro de toda a porção para trás. Era uma cirurgia enorme, uma grande desconexão, daí as muitas complicações. Com as técnicas modernas, seja por lesões restritas ou por neuroestimulação, não há mais aqueles efeitos. O risco de haver alguma complicação severa hoje – como ocorria com a síndrome pós-lobotomia, por exemplo – é menor que 0,5%. Para ter noção disso, se um paciente for operado de um tumor cerebral ou um aneurisma que tenha sangrado, as chances de complicações desse tipo, pós-lobotomia, são maiores do que nas cirurgias que se faz para as doenças psiquiátricas hoje.

Elder Dias – O custo dessas cirurgias, especificamente em relação à da depressão, é acessível às pessoas? Pode-se ser submetido a esse procedimento pelo sistema público de saúde?

Todas essas cirurgias eu posso fazer no Hospital das Clínicas (HC), ligado à Universidade Federal de Goiás. Até pouco tempo atrás, não tínhamos acesso à neuroestimulação para tratar a doença de Parkinson, por exemplo. O grande problema é que o procedimento estava previsto pela tabela do SUS, mas o valor que o Ministério da Saúde queria pagar para o sistema implantável no paciente era muito inferior àquele comercializado pela indústria – não temos fabricantes nacionais, são todos estrangeiros, três empresas reconhecidas pela Anvisa [Agência Nacional de Vigilância Sanitária]. Todos os sistemas são muito caros. Mais recentemente, uma empresa fabricante começou a fornecer a hospitais ligados às universidades esses equipamentos por um valor bem mais acessível. Um kit de neuroestimulação – que consta de um eletrodo implantado no cérebro, um marcapasso e um fio que faz a ligação – está sendo fornecido por R$ 16,1 mil.

Elder Dias – Esse é um valor considerado razoável?

É muito aceitável para o sistema público e, por conta disso, estamos conseguindo fazer essa cirurgia na UFG.

Elder Dias – Quantas cirurgias são feitas hoje desse tipo no Hospital das Clínicas?

Tenho dois dias para as cirurgias, às terças e às quintas-feiras. Mas não temos sistemas implantáveis para tantos pacientes assim. Em segundo lugar, no sistema público não é tão fácil conseguir autorização para realizar essa cirurgia; em terceiro, eu dependo de uma tomografia funcional para fazer o procedimento e no HC o equipamento está quebrado. A previsão é de que chegue o novo em agosto, já que a peça para reposição é muito cara, dizem que por volta de R$ 300 mil. Então, vão chegar dois aparelhos novos, mas com o que está lá não posso fazer. E não posso operar sem a tomografia.

Da mesma forma, preciso de um exame de ressonância, procedimento que se faz na véspera da cirurgia. O aparelho do HC para isso chegou há oito anos e agora é que vai começar a funcionar. Essas dificuldades nos hospitais públicos são enormes. E isso é muito triste.

Augusto Diniz – O corte de recursos às universidades públicas tem afetado as atividades do Hospital das Clínicas?

O hospital está funcionando, sempre com dificuldade, mas continua. Por não fazer parte da administração, eu não saberia lhe responder o quanto isso tem afetado.

Elder Dias – Mas como está o setor em que o sr. trabalha especificamente? Pergunto porque o sr. mesmo acabou de citar uma máquina que deveria estar funcionando e não está. Há outras complicações também?

Vamos voltar a falar das cirurgias. Por exemplo, precisamos usar os sistemas implantáveis com o neuroestimulador. Quando se faz o procedimento, se o hospital não tiver dinheiro, naquele momento, para pagar o fornecedor, este não vai querer entregar o próximo sistema implantável. São coisas que vão acontecendo e acabam por ir dificultando o caminho. Mas, apesar de tudo, a gente ainda tem conseguido fazer as cirurgias, felizmente.

Elder Dias – Sobre a questão da depressão, não existe a palavra “cura”?

Não falamos de cura para nenhuma dessas doenças de que falamos – depressão, TOC, doença de Parkinson etc. Nada disso a gente cura, tudo isso a gente trata. Isso é algo que o paciente tem de entender: os medicamentos continuam sendo necessários após a cirurgia, o acompanhamento neurológico, a fisioterapia – no caso de Parkinson –, a fonoterapia. Tudo isso tem de passar a ser parte integrante da vida do paciente, assim como comer, beber e dormir.

Elder Dias – Já que não se fala em cura, é possível ao paciente viver de forma assintomática?

Ele pode viver de forma muito melhorada, ter uma melhora bastante significativa em sua qualidade de vida.

Augusto Diniz – De forma geral, a depressão ainda não é vista como uma doença “séria” pelas pessoas. Algumas chegam a dizer que é questão de “tomar vergonha na cara”.

Não se pode confundir a depressão com a tristeza. Esta tem uma motivação para acontecer – a morte de alguém, ou aconteceu algo que a pessoa sinta como ruim. Já no quadro depressivo, pode estar tudo bem na vida de alguém, mas dentro dela está tudo muito mal. Isso é depressão.

Augusto Diniz – Em qualquer outro tratamento médico, não só na depressão, a prescrição nem sempre é seguida. Por que os pacientes psiquiátricos, no caso, chegam a um estágio em que consideram não precisar mais de se tratar?

O que chamamos de aderência é uma coisa fundamental para caracterizar a impossibilidade de tratar clinicamente determinado caso. É algo que precisa estar muito bem documentado para que, então, se passe a pensar em cirurgia. Em segundo lugar, é possível que as pessoas desanimem, depois de tentar tanta medicação e tantos profissionais sem a melhora adequada. As pessoas se cansam de ir a médicos e acabam se exaurindo.

Augusto Diniz – Como o 17º Congresso da Academia Brasileira de Neurocirurgia veio para Goiânia?

Temos uma academia muito democrática. Fazemos um revezamento regional pelo País. A cada dois anos, o congresso é realizado em uma das cinco regiões. O presidente eleito tem como tarefa realizar na região dele. Assim aconteceu em 2011, quando fui eleito para assumir a presidência em 2015 e o congresso é sempre ao final de sua gestão, o que está ocorrendo agora.

Elder Dias – Então a eleição ocorre seis anos antes do congresso? Há algo como um período preparatório para assumir e depois comandar a realização do congresso?

Exatamente. O presidente começa a fazer parte da diretoria, onde tudo se resolve e há esse treinamento para depois gerir a instituição.

Cezar Santos – Hoje se discute muito a questão da Cannabis em tratamentos terapêuticos e neurológicos. O sr. percebe haver uma abertura no Brasil para esse tipo de uso da maconha ou ainda existe um preconceito grande?

Normalmente eu não seria a pessoa ideal para discorrer sobre esse tema, já que minha abordagem é basicamente cirúrgica. Do muito pouco que sei sobre isso, vejo que as indicações têm aumentado para certas doenças, como alguns casos de epilepsia, Parkinson e outras. É importante que as pessoas entendam que o princípio ativo da maconha usado para tratar essas doenças não é o mesmo que dá o “barato”. Creio que também a aceitabilidade vai crescendo e as pessoas estão vendo essa questão com cada vez mais naturalidade.

Elder Dias – Pelo senso comum, as pessoas têm uma ideia de que “mexer” no cérebro é sempre algo muito perigoso. Até que ponto procede esse mito em relação às cirurgias cerebrais e seus riscos?

O risco de óbito ou alguma sequela grave nas cirurgias de todas as doenças de que falamos aqui é em torno de 0,5%. Meio por cento. Tudo na vida é questão de pesar na balança. É preciso agir com a razão e não com a emoção para tomar decisões importantes na vida. O paciente precisa colocar os prós e os contras. Na doença de Par­kinson, o risco de óbito ou se­quela séria – algo do mes­mo nível de um AVC, por exemplo – é de 0,5%. En­quanto isso, a taxa geral dos benefícios alcançados para a mesma cirurgia, em relação aos sintomas: tremor, de 90% a 95%; rigidez, 85% a 90%; bra­dicinesia, 68%. Isso é in­formado ao paciente e ele escolhe.

“Dependência química se assemelha ao TOC”

Elder Dias – O sr. está dizendo que o risco de uma cirurgia para tratar a doença de Parkinson é aceitável e parelho em relação à maioria das demais cirurgias de outras especialidades?

As pessoas não acreditam, têm dificuldade quando a gente diz essas coisas – e só vão entender depois de vivenciar o processo –, mas o pós-operatório dessas cirurgias é de dois dias de internação. O paciente submetido à cirurgia pela manhã vai comer no fim do dia e se levantar na manhã seguinte. São cirurgias que não doem, ao contrário do que ocorre quando se opera o tórax, o abdome ou algum membro. Se tudo ocorrer conforme manda o figurino, o paciente não fica dolorido, se levanta no outro dia e vai cuidar de sua vida, recebendo alta no segundo dia de pós-operatório.

Uma cirurgia de aneurisma descoberto sem sangramento, por descoberta acidental, tem mortalidade baixa demais. A pessoa é operada hoje, come no fim do dia, se levanta no outro e no terceiro recebe alta. Um tumor cerebral exige talvez quatro ou cinco dias no hospital, mas o pós-operatório das cirurgias cerebrais é muito rápido e o mais tranquilo e indolor para os pacientes. Só vai entender quem passar por isso.

Augusto Diniz – Falando sobre uma questão ética na medicina: no caso de um paciente terminal há abertura para um diálogo entre médico e paciente, na busca de humanizar o processo? Muitas vezes a vida de uma pessoa nessa situação é prolongada por insistência da família.

Isso é complexo, porque, além de tudo, envolve conselhos de medicina, legislação do País e outras questões. A abertura depende de cada paciente, de cada família e de cada profissional. Mas entenda que é um assunto muito difícil de abordar.

Augusto Diniz – Até que ponto a vontade do paciente deve ser levada em conta? Em Trindade, tivemos um caso de um jovem que precisava de hemodiálise para sobreviver. Ele se submeteu durante um tempo, mas resolveu abrir mão e a família entrou na Justiça para o obrigar a se tratar, contra o desejo dele, que alegava que nada daquilo adiantaria, porque o caso não tinha cura. Como proceder em um caso assim?

É um direito do paciente não querer se submeter a um tratamento, se ele estiver mentalmente equilibrado – e essa é outra questão difícil de definir. Alguém assim que recebesse uma notícia dessas estaria em condições de tomar uma decisão, de forma aguda? Depois de seis meses de tratamento, por exemplo, é uma coisa; outra é ter uma notícia e decidir “não, não quero” naquele momento.

Elder Dias – Existe alguma indicação cirúrgica para tratamento de pessoas com dependência química?

Quando se fala em dependência química, pode-se interpretar o processo como algo similar aos circuitos envolvidos no transtorno obsessivo-compulsivo – há uma obsessão pelo uso e uma compulsão pelo ato de usar. Isso atua nos circuitos cerebrais responsáveis pelos sistemas de recompensa. Nos anos 60 já se pensava e se realizavam cirurgias, ainda que de forma esporádica, para esse tipo de processo. Na era moderna, percebeu-se a importância de uma estrutura do cérebro chamada de núcleo accumbens [ligada à sensação do prazer], que faz parte desse sistema de recompensa, nos casos de usuários de drogas.

Tendo isso como base, os estudos passaram a ter tal núcleo como alvo de tratamento cirúrgico, na tentativa de reverter a dependência química. Inicialmente, tentou-se a lesão dessa estrutura, em milhares de casos. Isso ocorreu na China, no começo dos anos 2000. Os resultados iniciais mostraram-se satisfatórios para 90% dos pacientes. Comparados aos dos tratamentos conservadores, o índice de retorno ao uso das substâncias – que chamamos de “relapse” [“recaída”, em inglês] em seis meses é de 90%, enquanto que, com a cirurgia, ao contrário, a chance de sucesso era de 90% – ao longo do tempo, se percebeu que esse índice era, na verdade, mais próximo de 70%.

Elder Dias – Com o procedimento cirúrgico?

Exatamente. Depois disso, alguns grupos começaram, mais especificamente em Colônia, na Alemanha, a usar o núcleo accumbens como alvo de neuroestimulação, ao invés de lesão. Agora temos mostrado a efetividade dessa cirurgia em dependências químicas, em especial com relação ao uso de opiáceos, seja na forma de morfina, heroína e outras. O alvo que se usa para tratar isso é o mesmo usado para o tratamento do TOC, o núcleo accumbens e a porção imediatamente anterior acima dele, chamada de perna anterior da cápsula interna. Os resultados parecem satisfatórios, mas ainda não há uma série grande de casos com uso da neuroestimulação. Já nos casos de tratamento por lesão, o procedimento se mostrou bastante eficaz em longo prazo, com 70% de sucesso nos pacientes.

É importante frisar que, tão importante quanto a cirurgia, é o desejo do paciente. Não adianta a família querer se, por exemplo, o filho não quiser. A cirurgia parece eliminar a vontade da pessoa em fazer uso da substância, mas se ela quiser continuar procurando, vai procurar. Se ela não perceber que precisa ser tratada, então, será uma perda de tempo.

Augusto Diniz – Então, como pensar em uma política de internação compulsória, como a que o prefeito João Dória (PSDB) está implantando em São Paulo? Seria uma besteira, por essa lógica?

Pode ser compulsória como política pública, mas o paciente pode desejar. Se ele quiser, se ele quer ser ajudado, acho válido. Mas outra coisa que é fundamental em um processo desses é mudar totalmente os hábitos. A primeira atitude é jogar o celular dela no mato, com todos os contatos. É preciso colocá-la em um novo convívio, não se pode manter as relações que havia anteriormente e que favoreciam a procura da substância.

Euler de França Belém – Um dos efeitos colaterais de quem se submete à cirurgia bariátrica é a depressão. Um dos motivos, pelo que se sabe, é que o corpo emagrece, mas o cérebro da pessoa continua “gordo”. Como resolver essa questão?

É um assunto extremamente interessante e no qual estou extremamente envolvido. Em meados do século passado, havia um experimento com a estrutura chamada hipotálamo, que regula muitas questões do corpo – temperatura, temperamento, sistema nervoso autônomo, ingestão de líquidos e de alimentos. Em relação à alimentação, há duas áreas no hipotálamo o centro da fome e o centro da saciedade. A primeira, quando ativada, faz com que o indivíduo se alimente; a segunda, quando ativada, faz a pessoa parar de comer.

Em um experimento inicial, feito em animais, lesaram o centro da fome. O animal parava de comer e morria de inanição. Já quando era lesado o centro da saciedade, ele não sabia quando parar de comer. Ou seja, havia o centro da fome, mas não seu contrabalanço, e o animal ficava enorme, superobeso.

Estamos falando de fisiologia e o hipotálamo tem a ver com essas funções. Alguns grupos pelo mundo tentaram, para esse processo, o uso de eletrodos – a neuroestimulação, utilizaram correntes que poderiam ativar o centro da saciedade. Ou colocavam o eletrodo no centro da fome e o inibiam, com algumas correntes específicas. Estão tentando isso, mas, no meu ponto de vista, isso não vai funcionar. Por quê? Porque obesidade tem a ver, para mim, com compulsão pelo alimento, assim como no TOC há compulsão por determinados comportamentos e na dependência química, a compulsão por drogas. Em meu entender, seriam todos os mesmos circuitos.

Estamos com um projeto encaminhado em nosso departamento na Faculdade de Medicina da Universidade Federal de Goiás para ser colocado na Plataforma Brasil e enviado à Conep [Comissão Nacional de Ética em Pesquisa]. Aprovado, vamos começar um estudo para tentar usar o núcleo accumbens como alvo para o tratamento da obesidade mórbida. O estudo inicial será em cinco pacientes com a doença. Esse é o futuro do tratamento da obesidade, porque, como você disse, o cérebro continua “gordo”. A questão é a compulsão e não cortar o estômago ou desviar o fluxo do alimento no aparelho digestivo. Isso é atuar no problema lá adiante e não em sua origem.

Elder Dias – Nesse sentido, tratando o fenômeno como compulsão ou obsessão – como é tratado em vários filmes –, o amor não poderia ser “curado” pela lesão do núcleo accumbens?

(risos) Difícil essa pergunta. Mas o cérebro é essa coisa livre e aberta, como vocês podem perceber. Temos nele todas as possibilidades.

Euler de França Belém – Mesmo com leis e toda o grau de civilização que conseguimos, o homem ainda mata. Por que não avançamos no sentido de desaparecer com o bárbaro que há em nós?

Porque isso continua ainda em nosso cérebro, no sistema límbico, responsável pelos nossos comportamentos e nossas emoções. Ele é filogeneticamente mais antigo em relação ao córtex cerebral. Este exerce um efeito inibitório em relação às áreas daquele sistema, mais rudimentares. Matar é algo muito mais comum nos animais. Quanto mais inferior ele for, mais comum. De certa forma, em uma doença, se perderia a inibição do sistema límbico, que ficaria “frouxo” para se manifestar, inclusive matando. Outra questão é a ruindade humana. Isso não é só por aí e eu não saberia explicar. É algo que está dentro de nós.

Cezar Santos – Um dos problemas mais recorrentes dos dias atuais é o transtorno do sono. Há alguma cirurgia para isso?

Não existe cirurgia cerebral para insônia. É um transtorno para o qual não conheço nenhum ensaio clínico em andamento para seu tratamento.

Euler de França Belém – Por que é tão difícil tratar a síndrome de Guillain-Barré? O que ocorre com o organismo e como é o tratamento?

Isso é um tema neurológico, não neurocirúrgico. A doença é causada pela inflamação de várias raízes nervosas. Da medula espinhal saem as raízes para formar os nervos espinhais, que, por sua vez, se juntam para formar os grandes nervos que vão para braços e pernas. A inflamação na síndrome de Guillain-Barré ocorre naquelas raízes e tem a característica de se formar no sentido caudorrostral, ou seja, de baixo para cima, subindo pelo corpo. A inflamação pode acometer as raízes já na saída do bulbo, que é a parte mais baixa do tronco cerebral. Quando isso ocorre, sendo a parte mais alta da medula cervical, no pescoço, pode pegar os nervos que estão envolvidos com a respiração e causar uma apneia. O tratamento é feito geralmente com uso de corticoides e terapia imunossupressora, para poder facilitar o andamento do processo.

Osvaldo Vilela Filho, presidente da Academia Brasileira de Neurocirurgia: “Miguel Nicolelis merece ir ao Nobel” | Foto: Fernando Leite/ Jornbal Opção

Euler de França Belém – E o que o sr. poderia dizer a respeito da doença de Alzheimer?

Não posso falar da parte clínica, mas sim do que temos em andamento como forma de tratamento cirúrgico. A doença de Alzheimer é neurodegenerativa que acomete uma série de circuitos cerebrais, mormente aqueles envolvidos nos processos de memória e de alguns comportamentos. Em 2009, um grupo da Universidade de Toronto, no Canadá, começou a tentar usar a cirurgia do hipotálamo em um ensaio inicial para o tratamento da obesidade. Durante a cirurgia, quando houve o estímulo elétrico intraoperatório – o paciente é operado acordado, somente com anestesia local –, o paciente começou a se lembrar de certas coisas do passado. Então, o foco dos estudos se desviou para usar a ativação daqueles circuitos no tratamento da doença de Alzheimer.

Existe um circuito no cérebro chamado James Papez, dentro do qual há uma estrutura, o fórnix, que passa dentro do hipotálamo e que também tem a ver com a ativação da memória. Começaram um ensaio clínico com seis pacientes, por estímulo ao fórnix, para avaliação de riscos. Verificaram que dois dos pacientes não melhoraram nada, dois tiveram uma melhora e os outros dois com resultados inconclusivos. Olhando para trás, observaram que nos dois pacientes que tiveram uma melhora interessante tinham uma doença de início mais recente, o que trazia um problema: quando em seu início, a doença de Alzheimer não se detecta com absoluta certeza. Na fase 2, foram mais de 40 casos, com a implantação de um eletrodo adiante do fórnix.

Quando o paciente tem Alzheimer, é preciso estudar o metabolismo cerebral por meio de exames de medicina nuclear, como o Spect [sigla para “single photon emission computed tomography”, ou “tomografia computadorizada por emissão de fóton único”, em português] ou, então, o PET [sigla de “pósitron emitted tomography”, ou “tomografia por emissão de pósitron”, em português]. Nessa doença, há uma redução do metabolismo da função na região parietal e temporal do cérebro. Nos pacientes que melhoraram com a estimulação do fórnix, houve a reversão do padrão metabólico e aquelas regiões que estavam com o metabolismo diminuído começaram a ter uma perfusão normal novamente. A doença de Alzheimer causa uma hipotrofia de uma estrutura que está envolvida com a memória, que é o hipocampo. Verificaram, fazendo estudos com ressonância para avaliar o volume do hipocampo desses pacientes, que, além não haver redução de volume em um ano, nesse período ele aumentou.

Elder Dias – Em todos os casos?

Naqueles que melhoraram. Foram então para testes com animais e descobriram que ocorriam duas coisas com a estimulação elétrica do fórnix. No hipocampo dos ratos da pesquisa, observaram que estava havendo multiplicação celular dos neurônios. Portanto, havia bastante evidências de que os estudos deveriam seguir. Só que, voltando para os pacientes, para nossa tristeza, descobriram que não havia diferença estatística significante entre o grupo de quem estava sendo estimulado e o de quem não estava. A única coisa que ficou de evidência era que os pacientes que tinham doença de Alzheimer iniciada quando mais velhos, em torno de 70 anos, reagiam melhor do que os que eram acometidos mais jovens. Portanto, naquele grupo a cirurgia parece atuar – lembrando que tudo isso é experimental.

Esse estudo, em Toronto, foi conduzido por Andrés Lozano, que se formou juntamente comigo e considero um irmão. Já na Universidade de Colônia, na Alemanha, quem coordena os estudos é o professor Volker Sturm. Lá estudaram um paciente que tinha doença de Parkinson, com um déficit de memória acentuado, possuindo um complexo Parkinson-demência. Para tentar melhorar a demência, colocaram uma estrutura chamada núcleo basal de Meynert. Notou-se que esse paciente – que não era um caso de Alzheimer – começou a ter uma melhora da memória. A partir disso, o grupo alemão fez um estudo em seis pacientes utilizando o núcleo de Meynert como alvo para implantar o eletrodo. Quatro dos seis pacientes de Alzheimer tiveram melhora, embora não muito significativa.

Uma outra coisa que está acontecendo contra Alzheimer é o chamado ultrassom profundo de alta intensidade, que consegue atravessar a caixa craniana e a barreira hematoencefálica, que precisa ser ultrapassada para que as substâncias atuem no cérebro. Por exemplo, para reduzir ou eliminar uma substância inadequada que atua na doença de Alzheimer. Com esse ultrassom profundo de alta intensidade em um ambiente de ressonância magnética, para um ponto específico do cérebro, podemos conseguir fazer degradar essa substância ruim e descartá-la. É algo que começou a ser testado em animais e já está em fase experimental com seres humanos.

Augusto Diniz – Que pesquisadores de neurocirurgia virão a Goiânia para o congresso?

Temos 16 unidades internacionais. Em minha área de atuação específica, que é a neurocirurgia funcional e estereotáxica e que lida com a neuroestimulação, virão Andrew Parrent, que está em Ontário, no Canadá; David Roberts, dos Estados Unidos; e Roberto Martinez, de Madri. Também estarão presentes outras 13 autoridades internacionais em diversas áreas, como neurocirurgia pediátrica, tumores, coluna, aneurismas. Todas as áreas são contempladas.

Euler de França Belém – Goiânia se tornou um centro importante de sua área?

Desde os anos 70, Goiânia sempre foi um centro de referência no Brasil para neurocirurgia e neurocirurgia funcional.

Euler de França Belém – Como tem sido a evolução do tratamento do AVC [acidente vascular cerebral]? Há algum tratamento mais eficaz?

O AVC é a doença cerebral mais prevalente. Ele pode ser isquêmico – quando se entope uma artéria que leva sangue a alguma parte do cérebro – ou hemorrágico – quando uma artéria se rompe e derramou sangue no cérebro. O AVC isquêmico é território de atuação do neurologista. Se o paciente chega nas primeiras horas de sua ocorrência, é possível reverter o quadro com procedimentos endovasculares. Se o vaso está entupindo, injeta-se um trombolítico e se desfaz o trombo. Assim, conseguimos resgatar o paciente. Isso é território da neurologia, não da neurocirurgia. O neurocirurgião pode ser chamado, nesse caso, se a isquemia estiver provocando pressão intracraniana por edema e, para salvar a vida do paciente, seja preciso fazer uma cirurgia para descomprimir o cérebro. Ou, de outro modo, desentupir uma artéria por cateter, no caso de um neurocirurgião endovascular.
No caso do AVC hemorrágico, quando há uma quantidade de sangue derramada, isso pode estar comprimindo o cérebro e suas estruturas. Será necessário abrir para drenar o sangue e o neurocirurgião terá uma ação bem mais significativa. Os AVCs hemorrágicos podem ser apenas pela hipertensão arterial ou provocada por um aneurisma ou malformação cerebral. Nesse caso, o neurocirurgião terá de tratar essas doenças.
Existem trabalhos em andamento com uso de células-tronco para reverter danos de AVC, mas com resultados ainda incipientes, mas também tentativa de uso da neuroestimulação para ajudar na recuperação.

Euler de França Belém – Como o sr. avalia as pesquisas de Miguel Nicolelis sobre recuperação de movimentos dos membros?

Miguel Nicolelis foi um dos pioneiros nesse tipo de estudo, em que se usa o registro da atividade elétrica cerebral por meio de microeletrodos nos neurônios com transmissão a um sistema de computador que, por sua vez, move um membro mecânico. São estudos extremamente relevantes. Nicolelis já deveria, sem dúvida alguma, ter sido indicado ao Prêmio Nobel.

Euler de França Belém – O sr. chegou a conviver com o dr. Enéas Carneiro [cardiologista e político candidato a presidente da Re­pública, morto em 2007]. Ele ficou marcado pela rapidez de sua fala como candidato e acabou, por conta disso, tornando-se também uma figura vista como folclórica. Mas como médico, o que ele era?

Brilhante. Enéas era professor universitário, extremamente respeitado no meio acadêmico e seus cursos de eletrocardiografia eram famosos, gente do Brasil inteiro afluía para participar. Fizeram uma caricatura dele como candidato, mas se esquecem de que ele não tinha tempo na TV, a não ser para falar “meu nome é Enéas” e poucas palavras mais. Mesmo assim, ele foi muito longe e conseguiu se comunicar. Hoje vemos que ele estava correto em muita coisa que expunha em suas ideias. Sua morte foi uma perda, também para a política, porque era uma pessoa que não tinha o apoio adequado para ir adiante. Ele mereceria, porque era uma pessoa séria no meio da política.

Elder Dias – O sr. acredita que Enéas deixou herdeiros na política?

Não vejo ninguém com seu perfil.

Euler de França Belém – Nem mesmo Jair Bolsonaro [deputado federal pelo Rio de Janeiro e pré-candidato a presidente pelo PSC]?

Não acho. São discursos completamente distintos. Bolsonaro pontua questões polêmicas em relação à atualidade. Esse não era o foco de Enéas, que alertava para um País vilipendiado e com tantos recursos naturais não aproveitados. A ideia dele era aproveitar essa riqueza para tornar o Brasil uma grande Nação. Por isso, não vejo algo a ver entre os dois, exceto que sejam figuras de discórdia. Fora isso, não vejo semelhança.

Elder Dias – Ao falar de vilipêndio, não tem como não falar sobre a revelação desse volume inimaginável de verbas e recursos desviados pela corrupção. E não tem como não ligar isso ao setor de sua atuação, a saúde. Em que medida isso afeta nosso presente e nosso futuro? O Brasil poderia ser totalmente diferente se a corrupção, que não pode ser extinta, tivesse níveis toleráveis?

Sem dúvida. Não só a saúde como todas as necessidades primárias – também a educação e a segurança. A corrupção indubitavelmente inviabiliza que aconteçam melhorias para esses e outros setores. Mas que mandatário quer um povo educado?

Euler de França Belém – A mente de um corrupto é igual à de um não corrupto?

O que me preocupa mais é que essa questão é tão arraigada no povo brasileiro que chega a ser cultural. Vê-se a corrupção em todos os níveis possíveis e imagináveis. Observemos cada um de nós no dia a dia: quem na vida nunca tentou furar uma fila, ou um semáforo, ou tomar qualquer vantagem indevida? São coisas mínimas, mas que se tornaram um problema cultural. Vejo amigos do exterior e eles parecem sempre muito diferentes. Pessoas do Canadá, por exemplo: elas parecem tão mais puras do que nós, essas coisas do noticiário parecem não fazer parte de seu universo. Para nós é algo rotineiro. É muito triste. A gente deveria se envergonhar do “jeitinho brasileiro”.

Elder Dias – Mas, insistindo nessa questão – e que tangencia sua área de atuação na medicina –, as regiões cerebrais do corrupto contumaz não têm uma configuração diferente do cidadão comum?

Eu acredito que não. Ocorre que, quando uma pessoa desenvolve comportamentos repetitivos, determinadas áreas cerebrais começam a funcionar mais. Assim ocorre com os músicos, com as pessoas voltadas à linguística, cada um desenvolve mais certas áreas, porque usa determinados circuitos. Mas não dá para falar em uma configuração diferente do ponto de vista estrutural.

Elder Dias – Então dá para se falar em “malhação” cerebral?

Sem dúvida.

Elder Dias – E não tem idade limite para isso?

Teoricamente, quando se finaliza o encabamento dos fios cerebrais, que são os axônios, em conjunto com uma gordura chamada mielina, não haveria como. Mas não é o que se observa na prática: é possível fazer com que áreas do cérebro funcionem cada vez melhor. Então, é indubitável que a gente consiga desenvolver habilidades. Claro que, quando maior a idade, maior é a dificuldade para que isso ocorra. De qualquer forma, mesmo as pessoas idosas conseguem ainda desenvolver novas habilidades cerebrais.

Elder Dias – Muitos idosos têm bastante dificuldade para lidar com um simples telefone celular. Já as crianças parecem ter uma percepção quase que automática do funcionamento do aparelho.

Isso é verdade. Mas, por outro lado, veja qual é a dificuldade que uma pessoa de pouca idade tem para aprender tricô ou bordado. Vai também ter um grande grau de dificuldade, porque é uma habilidade que a pessoa tende a desenvolver mais tarde.