Um dos mais importantes pesquisadores de recursos hídricos na região do Cerrado, professor da UFG faz alerta grave sobre a falta de dados primários para projetar de forma mais efetiva o que pode estar acontecendo com o maior dos rios goianos e todo o sistema hidrológico do Estado

Foto: Fernando Leite/Jornal Opção

Natural de Mendoza, o professor Maximiliano Bayer tem origem alemã — sua família veio para a América do Sul entre a Primeira e a Segunda Guerra Mundial, em meio à crise econômica que daria a ascensão ao poder a Adolf Hitler —, nasceu na Argentina (Mendoza fica a cerca de 1,1 mil quilômetros de Buenos Aires) e, depois de trabalhar por quase dez anos na indústria do petróleo na Patagônia, construiu sua carreira acadêmica no Brasil. Mais especificamente, em Goiás, no Instituto de Estudos Socioambientais (Iesa) da Universidade Federal de Goiás (UFG).

Geólogo de formação, ele chegou a Goiânia em 1998, com uma bolsa para alunos estrangeiros. Naquele momento, sob orientação do professor e também argentino Edgardo Manuel Latrubesse — hoje na Universidade do Texas (EUA) —, tomou a Bacia do Araguaia como tema. Assim, tanto em seu mestrado em Geografia como seu doutorado em Ciências Ambientais, ambos na UFG, são versados sobre os impactos sobre os recursos hídricos dessa região.

Com a experiência de quase duas décadas com “o rio de todos os goianos”, Bayer aponta riscos sérios pairando sobre o manancial. A combinação entre avanço da fronteira agrícola e as características particulares do solo no alto da bacia faz com que as erosões cresçam e que a quantidade de sedimentos que chega ao leito do Araguaia seja cada vez maior. “Sem dúvida, o Rio Araguaia está doente, basicamente por causa do excesso de carga (de sedimentos) que está recebendo”. O professor concedeu esta entrevista ao Jornal Opção — a primeira na nova sede — após chegar de um tour pela Amazônia, em pesquisa que estuda impacto das hidrelétricas naquele bioma.

Elder Dias — O sr. é uma das maiores autoridades do país na área de recursos hídricos e uma das maiores, senão a maior, no que diz respeito ao processo hidrológico do Rio Araguaia. Qual é seu trabalho como acadêmico e pesquisador?

No âmbito local, o foco de minhas pesquisas são o Rio Araguaia, principalmente, e algumas outras regiões do Estado que estão com problemas de disponibilidade de recursos hídricos, como o Vão do Paranã, no Nordeste goiano, e Cristalina. No laboratório em que atuo, temos projetos com financiamento do CNPq [Con­se­lho Nacional de Desenvolvimento Cien­tífico e Tecnológico] tendo esses focos. La­mentavelmente, como a maioria dos projetos, não temos recursos. Por mais que os projetos sejam aprovados com uma determinada quantidade de verba, não chegou ou não tivemos como ter acesso à maior parte disso, que ficam contingenciados.

Euler de França Belém — Diz-se que é impossível que um país continental com as características do Brasil não utilize como fonte de energia recursos hidrelétricos. Porém, é preciso repensar como se dá esse processo. Como o sr. vê essa política nos governos brasileiros?

A geração de energia por meio de hidroeletricidade é muito mais econômica que por outros procedimentos. Equipamentos para a adoção de energia fotovoltaica, por exemplo, são caros, por conta dos tributos — ao contrário de muitos países, em que há uma desoneração justamente para aplicar essas formas alternativas e viabilizar novos projetos. No Brasil, portanto, essas formas continuam onerosas se comparadas à energia elétrica. Temos de partir de uma realidade: o País conta com 12%, 15%, até 18% de todos os recursos hídricos superficiais do planeta. Seja qual porcentagem for, isso é um volume inimaginável. Ninguém deveria jamais estar passando por algum tipo de desconforto em relação a abastecimento por aqui. Esse foi o paradigma sobre o qual sempre trabalhamos. Mas por que acontece a escassez?

Há aquele slogan “agro é tech, agro é pop, agro é tudo” [propaganda institucional da Rede Globo sobre o setor de agronegócios]. Mas onde está a água nesse negócio? Sem água, não há nem “pop” nem “tech”, nem nada disso. Esse problema sempre foi escondido. Temos uma abundancia tal de água que nunca se imaginou que alguém pudesse sentir falta, que isso fosse um problema.

O que ocorreu, então, é que começamos a fazer a gestão dos recursos hídricos de forma muito retardatária. A denominada Lei das Águas [Lei 94.33/97] se baseou em legislações europeias do fim da 2ª Guerra Mundial, quando o quadro hídrico era complicado. Pegamos essa lei e tentamos fazer uma adaptação, mas que ficou muito complexa, embora bem elaborada. Há problemas, como: o fato de ter de fazer a adequação da realidade. Não dá para fazer para todo o Brasil, uma lei que gere as águas da Espanha ou da França, cujo território é pouco maior do que o Estado de Goiás. Ora, o Brasil tem mais de 8 milhões de quilômetros quadrados.

Com a mesma lei para toda essa extensão, criam-se, então, situações muito heterogêneas. Dos 15% do total de recursos hídricos de que o País dispõe, mais de 80% se encontram na Bacia Amazônica, onde há apenas 4% da população brasileiras. Já em algumas regiões do Nordeste, com importantes núcleos populacionais, temos valores de disponibilidade de recursos hídricos muito baixos.

Elder Dias — Que cidades seriam essas?

Basicamente todo o litoral nordestino, que chamamos de Atlântico Ocidental, a Bacia do Parnaíba, estão com disponibilidade muito baixa. No Sul e no Sudeste, temos os recursos hídricos mais explorados, com maior quantidade de investimentos. Lá, há um problema muito grave com respeito à qualidade desses recursos — basicamente em volta dos núcleos urbanos e da grande concentração industrial.

Por outro lado, temos nossa região, o Centro-Oeste, que está inserida no que chamamos hoje da área de “avanço da fronteira agrícola”, com conflitos com o agronegócio. Em nossa região, reflete-se muito fortemente o efeito do uso dado às águas no Brasil. Basta dizer que 70% de todos os pedidos de outorga são para irrigação. Se tomarmos isso como tendência, diante do quadro que temos, é algo insustentável.

A mesma problemática se repete em escalas locais, como, por exemplo, em Goiás. Existe um valor, estabelecido pela Organização Mundial da Saúde (OMS) de 1,5 mil metros cúbicos por habitante por ano. Com esse valor acima, temos uma situação confortável de abastecimento; menos do que isso, as condições começam a ficar mais críticas. Ora, na Amazônia, esse valor chega a 500 mil metros cúbicos por habitante, um índice gigante; no Centro-Oeste, isso está na ordem de 6 mil a 8 mil metros cúbicos por habitante; mas no Nordeste, há menos de 1,5 mil metros cúbicos, às vezes de mil metros cúbicos. Ou seja, já é uma situação crítica.

Da mesma forma, tudo isso se reflete em Goiás. Temos conflito de múltiplos usos e uma quantidade insuficiente de água para cobri-los. É o caso de Cristalina, o município com maior quantidade de pivôs centrais e de superfície irrigada em todo o Centro-Oeste — e, também poderia afirmar, em todo o Brasil, com disputa também com a vizinha Paracatu (MG), na divisa entre Goiás e Minas Gerais. Lá temos uma grande quantidade de extração de água por pivôs centrais do manancial do Rio São Marcos, que não é dos maiores do Estado. O que acontece a partir daí? Conflitos, dilemas, vamos gerar energia ou fortalecer a produção de alimentos?

Cezar Santos — Isso resume muita coisa.

O problema é que, se hoje há 2 mil pivôs de irrigação em Goiás, vamos supor que poderíamos trabalhar para achar uma solução para esse problema. Só que mais problemático ainda é o fato de que há 5 mil pedidos de instalação de pivôs que existem na fila. Se um fazendeiro tem um pivô e o outro vê este encher os bolsos de dinheiro, o vizinho vai querer um em sua propriedade também. Que argumento haveria para dar a este último a negativa do pedido? Ou seja, o problema não são os 2 mil ou 2,5 mil pivôs, mas o dobro de pedidos em relação a esse número, além da falta de argumentos técnicos para dizer que não se pode liberar mais. A falta de disponibilidade de água para usos múltiplos é, portanto, um dos principais problemas de impacto que temos.

Marcelo Mariano — E qual seria outro problema sério em termos de recursos hídricos?

Outro problema é a perda de qualidade. Nesse caso, encaixa-se o exemplo do Vão do Paranã, onde está Terra Ronca [parque estadual situado nos municípios de São Domingos e Guarani de Goiás, no Nordeste goiano, conhecido por abrigar um conjunto de cavernas]. É uma das regiões de Índice de Desenvol­vi­mento Humano (IDH) mais baixo do Estado. Ali, a Serra Geral faz o limite entre Goiás e Bahia. Do lado baiano, está a região onde há o maior Produto Interno Bruto (PIB) do País, em termos per capita. O Oeste da Bahia foi totalmente desmatado e hoje é o coração de uma zona agrícola, que faz parte do eixo mais importante do agronegócio, o Matopiba [região que compreende partes de Maranhão, Tocantins, Piauí e Bahia].

Lá, os produtores tiraram toda a cobertura vegetal original, de Cerrado, mudando o sistema radicular natural, profundo, por uma cobertura vegetal de gramíneas, soja, milho, que tem, no máximo, 60 centímetros de profundidade. O equilíbrio hídrico fica totalmente afetado, já que a água, como não tem mais como infiltrar, começa a escoar superficialmente, causando dois grandes impactos: por um lado, sem infiltração, não há recarga do lençol freático; por outro, produzem-se grandes enxurradas e, a partir disso, erosões.

Isso compromete a maior parte das nascentes da Serra Geral e chegam ao Vão do Paranã — e que basicamente geraram o sistema cárstico [relevo geológico com corrosão natural das rochas e consequente aparecimento de uma série de características físicas, tais como cavernas] de Terra Ronca. E o conjunto de cavernas de Terra Ronca é um dos mais mágicos do mundo. Há países com muito menos recursos estéticos naturais do que os que temos lá — como a Croácia e a Sérvia — em que há um turismo basicamente associado à exploração das cavernas. Por quê? Porque ao entrar na caverna, há música clássica, um barco para passear, toda a infraestrutura. Em nossas cavernas há um imenso potencial para esse tipo de turismo, são ainda maiores e mais bonitas. Mas há um porém: se não há água nos rios internos, essas cavernas passam por um processo de tensão e se fossilizam. As estalactites e estalagmites começam a ficar prejudicadas pela falta de umidade e são destruídas.

“Temos processos erosivos que cresceram centenas de metros de largura. A voçoroca Chitolina, a erosão mais conhecida do Araguaia, tem quilômetros de comprimento, centenas de metros de largura e 60 ou 70 metros de profundidade”

Elder Dias — Todo esse processo é causado pela destruição do Cerrado na região do Oeste da Bahia?

Não há somente esses impactos. Os produtores da região usam aviões para pulverizar agrotóxicos nas lavouras. Por uma questão de pressão, se há chapada e um vale com uma diferença de 200 metros de altitude, obviamente tudo isso vai se acumular no vale. A consequência é que há alguns anos a Saneago teve de levar caminhões-pipa para abastecer a população da região, porque a qualidade da água era muito ruim.

Ou seja: temos problemas com a falta de água, como em Cristalina; com a qualidade da água, como no Vão do Paranã; e problemas com ero­são e assoreamento do sistema flu­vial, como ocorre na alta bacia do Araguaia.

Euler de França Belém — É verdade que existe um processo de desertificação em curso no Sudoeste goiano?

É um termo que a academia ainda não adota totalmente. Para tanto, teríamos de entrar na definição do que é um deserto, que, tecnicamente, é um lugar onde não chove, ou chove menos de 300 milímetros por ano. Em Goiás, chovem pelo menos 1,5 mil milímetros. O mais correto é dizer que há um processo de arenização. É um processo semelhante ao que ocorre no deserto, mas em áreas onde chove muito mais, como ocorre em Goiás. São grandes manchas de solos arenosos — basicamente quartzos — que todos os anos vão se expandindo e nas quais se criam áreas onde a fertilidade natural fica muito baixa.

Elder Dias — É o que ocorre na Bacia do Araguaia?

Em algumas regiões, basicamente na alta bacia do Araguaia. Lá já temos alguns núcleos de arenização que ano após ano vão aumentando. Porém, esse problema é um fator que afeta basicamente deixa esse tipo de solo mais frágil. Cada vez que chove — ou se passa um simples arado —, esse solo é transportado com muita facilidade. Somente no município de Mineiros, em levantamento que fizemos no ano passado, identificamos via satélite mais de 6 mil feições erosivas. Imaginem a magnitude de um processo desses para que consigamos vê-lo em uma imagem de satélite.

Elder Dias — Todas são visíveis por satélite?

Sim, algumas com quilômetros de comprimento, e apenas no município de Mineiros. Esses focos erosivos entregam uma quantidade imensa de sedimentos aos sistemas fluviais.

Marcelo Mariano — Por que isso ocorre?

Temos de nos ater a dois fatores. O primeiro é a disposição natural do solo. A maior parte da geologia da Alta Bacia do Araguaia está no formato de rochas sedimentares muito antigas, paleozoicas e basicamente mesozoicas. Essas rochas — e basicamente as nascentes do Araguaia — estão em uma formação geológica que se chama Formação Botucatu, a mesma que forma o Aquífero Guarani. Ocorre que em São Paulo esse aquífero está a 2 mil metros de profundidade e aqui temos essas areias em superfície. Essas areias são muito frágeis e não tem resistência ao processo erosivo. Então, cada vez que chove, se acima dessa formação se tira a cobertura vegetal e surgem linhas de fluxo [por onde correm as águas das chuvas], pode se construir uma grande erosão em poucos dias. Temos processos erosivos que, em poucos anos, cresceram centenas de metros de largura, dezenas de metros de largura e muitos metros de profundidade. A voçoroca Chitolina, provavelmente a erosão mais conhecida do Araguaia, tem quilômetros de comprimento, centenas de metros de largura e possivelmente 60 ou 70 metros de profundidade. E, apesar dos esforços em controlá-la, sabemos que isso é muito complicado.

Cezar Santos — Quer dizer que essa voçoroca continua a aumentar?

Ainda que em menor velocidade, com menor movimentação, continua, sim. Não deixa de ser um processo natural.

Elder Dias — A existência dela seria um processo natural do rio, independentemente da ação humana?

Exatamente. O problema é que a condição natural geológica já favorece a condição, por ser um solo frágil e fácil de ser transportado. Se a isso juntarmos o desmatamento e a falta de práticas conservacionistas, como curvas de nível, estamos diante de uma situação superdelicada.

Cezar Santos — E há providências sendo tomadas?

Basicamente, não temos feito nada.

Euler de França Belém — Há décadas atrás, o Ministério Público (MP-GO) fez uma campanha para preservação das nascentes do Araguaia. Isso teve algum efeito? Está sendo levado adiante?

A gente encontra cartazes em alguns locais, mas na maioria dos casos não há um monitoramento para ver a real efetividade. Não há dados para saber o quanto cada ação está sendo efetiva. O problema que se deriva, de fato, é que todos os sedimentos chegam aos mananciais. E todos os mananciais levam esses sedimentos ao Rio Araguaia, que é o eixo condutor de tudo. E então, qual começa a ser o problema imediato que permeia todos os outros? A falta de dados primários.

Marcelo Mariano — De que maneira?

Para fazermos uma gestão minimamente séria, precisamos de dados primários, básicos. E, quando falo em dados primários, não estou pensando em saber detalhes sobre a qualidade da água, mas simplesmente quanta água temos. É básico.

Cezar Santos — Isso é algo que caberia à academia. Ela está fazendo essa tarefa?

Ao contrário, isso não cabe à academia. Tudo que é relativo a dados para a gestão de recursos hídricos, pela Lei das Águas, está a cargo da Agência Nacional das Águas (ANA) e toda essa informação deveria estar obrigatoriamente em uma base de dados chamada HidroWeb, acessível pela internet.

Elder Dias — Então, a partir desses dados, a academia proceder o uso desses dados para pesquisas.

Sim, e para a partir daí, por exemplo, também liberar os pedidos de outorga. Como hoje a Secima [Secretaria do Estado de Meio Ambiente, Recursos Hídricos, Infraestrutura, Cidades e Assuntos Metropolitanos] concede outorgas sem saber quanto temos de água? Em Goiânia ainda sabemos quanto temos de água, porque há uma estação no Rio Meia Ponte e é possível fazer uma medida. Podemos ter uma base de como será no próximo ano, em cada época do ano.

Mas, e o Araguaia? Nos últimos 15 anos, na base de dados da HidroWeb, há 20 medidas. Veja bem, 20 medidas em 15 anos! Ou seja, é praticamente nada! (enfático)

Euler de França Belém — Mas, nessas poucas medidas, o Araguaia tem ficado menor?

Ora, se as medidas forem concentradas no mês de julho, provavelmente teremos essa visão turística do Araguaia — praias, bancos de areia, grande volume de sedimentos. Mas, e se as medidas são em janeiro? Aquelas praias ficarão cinco ou seis metros abaixo. A dinâmica do rio é muito diferente nesses dois momentos. E quando falamos não apenas de água, mas da quantidade de sedimentos, que podem provocar assoreamento e outros impactos, a coisa fica pior.

Supondo que agora, nesta época [mês de agosto], o Ara­guaia deve ter uma vazão de 200 me­tros cúbicos por segundo, de­vendo estar levando uma concentração da ordem de 50 miligramas por litro. Com esses dados, podemos calcular que o rio transporte por dia aproximadamente 4 mil toneladas de sedimentos. Se colocarmos isso em caminhões, seria uma fila de 400 veículos. Porém, se fizermos uma modelagem do A­raguaia em fevereiro, quando, em vez de 200 metros cúbicos de água, tem vazão de 3,5 mil metros cú­bicos e, em vez de 50 miligramas por litro de sedimentos, leva o quádruplo. A fileira subiria para 7 mil caminhões carregados de sedimentos.

“Não há como ter uma hidrovia no Araguaia”

Euler de França Belém — No século 19, Couto de Magalhães tentou a navegação do Araguaia e do Tocantins. Como o sr. vê a navegação hoje no rio?

Nossa pesquisa — e aqui, sim, está claro o papel da academia — nos leva a afirmar contundentemente que não há qualquer possibilidade de haver uma hidrovia no Rio Araguaia. Explico: a areia da Formação Botucatu para no leito do Araguaia. Até a altura de Aragarças e Barra do Garças (MT), o rio desce, a cada quilômetro, de dois a quatro metros — o que já é pouco. Desse local em diante, são apenas 20 centímetros de declive por quilômetro. O que acontece? Até Barra do Garças, o rio está “encaixado”: não tem praia, não tem planície de inundação, apenas os famosos cânions, da região de Santa Rita. A partir daí, perdendo declividade, perde também velocidade e passa a ter dificuldades para transportar toda essa areia. E, então, o Araguaia começa a deixar essa areia nas laterais, o que formam as praias e atraem cada vez mais turistas. Mas, ao mesmo tempo, isso está nos dizendo que o rio está com problemas.

Observamos que essa quantidade de areia está aumentando a cada ano, ainda que não tenhamos dados básicos, mas fazemos trabalhos com drones e outras formas de monitoramento. Como o rio não tem a capacidade de transportar todo esse sedimento, a tendência é que ele comece a engolir suas margens para poder levar essa água. Portanto, o rio vai ficando cada vez mais largo, mas cada vez menos profundo.

Cezar Santos — Isso pode configurar o caso de dizer que o Rio Araguaia está doente?

Sem dúvida. Está doente, basicamente por causa do excesso de carga (de sedimentos) que está recebendo.

Euler de França Belém — Mas o Araguaia é um paciente terminal ou tem cura?

Isso é controverso, quando falamos de “cura” em termos de recursos hídricos: chama-se “tempo de resposta”. Agora, com a estiagem, começam a aparecer no Iesa os secretários de Meio Ambiente, pedindo soluções para o córrego da cidade que secou, falar que não há vazão, dizer que o abastecimento vai ficar em situação crítica. Pedem o que fazer para o próximo ano. Eu respondo: “É melhor ir caminhando para Trindade para pedir muita chuva, porque para o próximo ano não há o que fazer”. O tempo de resposta de um sistema fluvial até voltar a incorporar relações naturais que permitam a infiltração e o reabastecimento do lençol freático é de décadas. São 10, 15, 20 anos, no mínimo, para que o lençol freático se recupere.

Da mesma forma, os planos de revitalização se mostram apenas para uma primeira fase, de mudança visual, paisagística. Isso não significa que o equilíbrio hidrológico foi recuperado.

Elder Dias — Isso é especificamente mais crítico em um bioma como o Cerrado, não?

Obviamente, até por que o Cerrado é considerado o “berço das águas”. Eu até poderia concordar, mas desde que a isso se seguisse uma questão: até quando? Porque o Cerrado se constitui em berço das águas por seus parâmetros naturais: uma área alta, relativamente plana, onde há um índice alto de precipitações. O que acontece é que a água infiltra, recarrega os lençóis freáticos e cria toda a rede de nascentes. Aqui estão nascentes de 8 das 12 regiões hidrográficas do País. Até boa parte da Bacia Amazônica é constituída de água do Cerrado. E essa água serve a distintos propósitos: para o Sul (Bacia do Paraná), é fornecimento de energia elétrica; para a Bacia do São Francisco, a agricultura; e assim por diante.

Euler de França Belém — O Rio Tocantins está em melhor condição que o Araguaia?

O Tocantins sofre basicamente os mesmos problemas que temos com o Araguaia. Uma informação interessante é que nossa região hidrográfica se chama Tocantins-Araguaia, mas deveria ser o contrário, porque é o rio de maior vazão que tem a primazia. A grande diferença entre os dois rios é o ambiente geológico, o que impossibilita de fazer uma barragem no Araguaia, devida à imensa quantidade de sedimentos que se depositaria. O Tocantins, ao contrário, tem condições muito mais adequadas.

Vejam bem o que faz a falta de dados. Há alguns anos, lançou-se a proposta de uma usina hidrelétrica em Santa Rita do Araguaia, no alto da bacia. O Ministério Público nos enviou o estudo de impacto ambiental, para que trabalhássemos nele. Era preciso calcular a vida útil de uma barragem assim e o depósito de sedimentos é que define o quanto tempo ela vai durar. Ela dura determinado tempo até assorear. A questão era: qual o prazo de vida útil teria a barragem no Araguaia? Isso é importante, porque durante 30 anos o que se tira de energia vai para quem fez a barragem e só depois isso volta para o governo. O que observamos é que haveria uma forma de forçar o aumento dessa vida útil, com prazos muito maiores, a par de favorecer o empreendimento.

Ocorre que, quando começamos a calcular, a vida útil se mostra muito mais curta do que estariam tentando estabelecer. O que dá mais indignação é que se aproveitam da falta de dados primários — de que já falamos. Para isso, usam dados de outros rios — no caso, uma pesquisa feita em rios do Canadá e dos Estados Unidos — em que 10% dos sedimentos vão pelo fundo e 90% em suspensão. A carga em suspensão não prejudica tanto a vida útil da barragem, porque, em tese, ela segue com o fluxo da água, ao contrário do que vem pelo fundo e fica retida.

Ora, com as condições do Araguaia, a relação é inversa. Poderia dizer, muito tranquilamente, que seria de 50% pelo fundo e 50% em suspensão, embora possa dizer que é viável a hipótese de ele carregar mais pelo fundo do que em suspensão. Então, a vida útil não pode ser calculada sobre os 10% tradicionais em um rio como o Araguaia, teria de ser 50% ou 60%. Então, quando se faz isso, a vida útil cai de 120 anos para 20 ou 30 anos. Eu sei disso por conta de meu conhecimento e dos monitoramentos que já fizemos por drones. Posso medir, mas onde estão os dados primários que deveriam estar na HidroWeb? Se a Lei das Águas diz que todas as informações teriam de estar ali, repassadas pela ANA, por que não estão à disposição da academia? O que ocorre é que estamos liberando PCHs [pequenas centrais hidrelétricas], outorgas e tudo o mais sem saber quanta água temos.

Elder Dias — O agronegócio em Goiás faz uma projeção sobre sua sustentabilidade, em termos de recursos hídricos?

Eu acho que fazem isso, mas olhando para o próprio umbigo. Assim, condicionam tudo a seus números e encontram valores que dizem que — dependendo do tipo de solo, da declividade, de condicionantes naturais, a Bacia do Araguaia tem aquela tal superfície de hectares para expandir em atividades agropecuárias.

Euler de França Belém — A Amazônia é mesmo o “pulmão do mundo” ou isso é um mito?

Talvez seja mito o fato de que ela atue como uma espécie de filtro. Mas, sem dúvida, a Amazônia sempre cumpriu a função de aparato circulatório de umidade mundial — pelo menos em relação ao lado americano. A repercussão que a região amazônica tem no restante do continente é muito grande. No Centro-Oeste, estamos dentro de um corredor de umidade condicionado pela Amazônia, no vaivém que ela proporciona. Há alguns estudos que dizem que a situação no Centro-Oeste ficará crítica com o aumento da temperatura mundial em dois ou três graus, já que a região seria afetada drasticamente no índice de chuvas. Mas isso ainda são suposições.

O que temos de concreto é o efeito das chamadas ilhas de calor. Em Goiânia já podemos observar uma diferença térmica entre bairros que chegam até cinco graus. A região de Cam­pi­nas é um forno, se observar sua imagem térmica. Isso está produzindo algum desequilíbrio nas precipitações.

Por mais que estejamos tendo os 1,5 mil milímetros por ano, isso está sendo condensado em muito menos dias de chuva do que antes. Se isso vinha em cem dias de chuva, hoje cai em 20 dias. E o que acontece? Com a impermeabilização, essa água não infiltra, escoa superficialmente, afetando o sistema de bocas de lobo. Alguns bairros, mesmo novos, já estão enfrentando o problema, precisando de redimensionamento de seu sistema de galeria pluvial. Isso porque a intensidade das chuvas mudou, bem como sua concentração.

Elder Dias — Existem estudos sobre o Rio Meia Ponte? O que se pode dizer sobre sua bacia?

Há vários fatores afetando a Bacia do Meia Ponte. O reservatório do João Leite nunca passou por um monitoramento para sabermos se está assoreando, se está perdendo volume ou não. Dizem que poderemos ficar tranquilos em relação à água por 30 ou 50 anos. Não dá para saber, porque tudo depende desses dados. Outra vez, então: faltam dados básicos.

Há também um projeto para fazer mais de 20 PCHs no curso do Rio Meia Ponte. Isso é uma “escadinha”, com vários lagos formados. É um desastre ecológico, acabará com o rio e com seus processos, como a piracema. Temos às margens do Meia Ponte o único segmento do que conhecemos da chama Mata Atlântica em Goiás, no chamado Mato Grosso Goiano, vai ficar embaixo d’água.

Euler de França Belém — Mas o sr. não se impressiona com a capacidade de resistência do rio? Mesmo estando altamente poluído, alguém consegue ainda pescar um peixe grande. O rio luta para ficar vivo?

O que eu digo é que um peixe pescado no Meia Ponte não deve servir de alimento. Muita gente, se está comendo peixe de lá, pode estar ficando doente sem saber que a culpa é do peixe. Há vários estudos sobre metais pesados presentes no organismo dos peixes e que são bioacumulativos. Ou seja, são repassados do peixe para o organismo humano depois da ingestão. De vários quilômetros antes de entrar na cidade de Goiânia até depois de Senador Canedo, a quantidade de metais pesados nos peixes é totalmente inaceitável para consumo.

Euler de França Belém — A Prefeitura de Buriti Alegre autorizou a construção de um prédio com 20 andares e 40 apartamentos, além de térreo e dois pavimentos de garagem, às margens do Lago das Brisas, ponto turístico da região. Como o sr. vê um caso assim?

Há uma discrepância entre o que está definido pela lei e o que ocorre de fato. Sabemos bem como isso ocorre, porque dependendo da largura do córrego ou do rio, deve ser respeitada uma determinada distância, como APP [área de preservação permanente]. Só que há uma questão: mais de 80% do sistema fluvial que temos em Goiás não tem APP suficiente para poder assegurar o cumprimento dos requisitos ambientais.

O problema acaba sendo do próprio Código Florestal. Supondo que o rio meça 10 metros de largura, seria necessário deixar uma distância de 30 metros de APP de cada lado. Então, eu pergunto: se alguém vai ao Araguaia neste mês, tem 200 metros de largura e, pela lei, teriam de ser respeitados 150 metros de cada lado. Mas, e se formos em janeiro, quando o rio chega a ter três quilômetros de largura? Qual medida vamos usar? Quem vai definir isso? Não há uma regra geral, porque cada rio é diferente. Se um rio é encaixado, não precisaria de muita APP quando ele estiver na cheia; mas, se for no caso de um rio como o Araguaia, caso ele suba dois metros, vai alagar três ou quatro quilômetros lateralmente. Ou seja, os limites estabelecidos pelo Código Florestal de 2012 geralmente não são práticos para uma gestão de recursos hídricos. Não é nem que cada rio tenha uma identidade própria, uma morfodinâmica própria; isso se vê a cada trecho de cada rio. Ou seja, o estabelecido pela lei não é útil como deveria ser para a conservação ambiental.

Euler de França Belém — O Parque Flamboyant, construído há mais de dez anos, está secando, porque teve minas soterradas e agora está cercado de prédios de alto padrão. Como o sr. vê esse tipo de situação?

A primeira coisa a dizer é que faltam dados primários. É falta de fazer uma modelagem para saber qual a capacidade dessa bacia ou microbacia para suportar um empreendimento como esse. Há técnicas, ferramentas, tecnologia, para fazer uma avaliação dessas. O que falta é determinação política para começar a trabalhar seriamente sobre o processo de ocupação.

Em teoria, isso deveria ser regulado pelos planos diretores. Em Goiânia, este ano ocorrerá uma revisão do Plano Diretor da cidade. Em meu instituto, o Iesa, há vários professores envolvidos nesse tema, bem como na elaboração do Plano Metropolitano. Fica, no entanto, uma questão: vamos começar de novo, como deveria ser feito, ou vamos protelar, remediando a situação para que, no rumo em que está, se consiga seguir um pouquinho mais? O que vão fazer?

Em Goiânia, os parques urbanos que ainda não estão nessa situação crítica, certamente vão chegar nela. Isso porque, no momento da chuva, a água não vai infiltrar, o lago vai encher e vai inundar, causando uma série de transtornos. Quando passar o período chuvoso e vier a seca, veremos o outro lado, o do assoreamento.

Euler de França Belém — O sr. fala que há um limite de 25 a 30 anos de água para a região da Grande Goiânia. E depois que se esgotar o reservatório do João Leite, onde vamos buscar o abastecimento?

Lamentavelmente, pela geologia que temos, de rochas magmáticas e metamórficas que, por natureza, não têm porosidade nem permeabilidade. Essas rochas não suportam grandes volumes de água. O que pode passar de água fica nas fraturas, que permitem que a água se infiltre, diferentemente do que ocorre na Bacia do Araguaia, em que todas as rochas, na verdade, são areia.

Professor Maximiliano Bayer, do Iesa/UFG, fala à equipe do Jornal Opção: “Será que todos esses usos da água têm pedido de outorga? Será que obtiveram permissão para ter essa água toda?” | Foto: Fernando Leite/ Jornal Opção

Euler de França Belém — O sr. é otimista em relação ao Brasil na questão das águas e em geral?

Na verdade, não sou. O que vejo é o hábito de cobrir uma coisa com outra e ir remediando. Há alguns problemas que são ainda mais complicados. A Lei das Águas apresenta um Sistema Nacional de Gestão de Recursos Hídricos, para âmbitos nacional, estadual e municipal. Na base desse sistema, estão os comitês de bacias, nos quais teoricamente a sociedade poderia desempenhar uma participação ativa a respeito dos recursos hídricos. Em São Paulo, Minas Gerais e até na Bahia, vemos que em torno de 90% do território está coberto por comitês de bacias minimamente organizados, articulados. O estágio mais desenvolvido de um comitê de bacia é ter a capacidade de estabelecer a precificação do litro da água. Caso o interessado discorde, que procure o valor em outra bacia. Ou seja, cada bacia fazendo gestão de seu próprio uso e disponibilidade.

Já na região Centro-Oeste, começamos a observar que a participação é mínima. Em Goiás, somente as bacias do Sul — notadamente as que fazem parte do Rio Paranaíba — têm comitês. Todo o Norte do Estado se encontra sem comitês de bacia. Às vezes tem alguém como presidente, mas sem nenhuma ação, nunca houve nada. Temos mais de 60% do território goiano sem comitês de bacias. Dessa forma, não há quem se preocupe com o que está ocorrendo com os recursos hídricos.

Os comitês de bacias seriam a única maneira de efetivar uma participação, por concentrar informações importantes e poder estabelecer as ações necessárias. Se se fala de outros Estados, como Mato Grosso e Mato Grosso do Sul, os comitês de bacia são ainda mais refreados. Para o agronegócio não interessa um comitê de bacia para lhe dizer que “aqui pode e aqui não pode”.

Elder Dias — Quanto mais forte o agronegócio, menor é o poder dos comitês.

Exatamente, porque a ação seria para controlar, fiscalizar, cobrar. Estive recentemente trabalhando no Fica [Festival Internacional de Cinema e Vídeo Ambiental, na cidade de Goiás] e observando a condição do Córrego Bacalhau, que ano passado secou e este ano está com muito pouca água — da mesma forma o Rio Vermelho. Então, quando falávamos que o Rio Vermelho estava secando ou algo assim, levantava-se aquela turma para dizer que choveu menos, que é uma questão ligada à mudança climática, que não se podia fazer nada.

Só que, observando a quantidade de precipitações ano a ano, não houve nenhuma alteração significativa nos últimos 10 ou 20 anos, a ponto de causar o esvaziamento de um rio. Entretanto, se tomarmos das nascentes do Rio Vermelho até a entrada da cidade de Goiás, vamos ver que há 25 represas, 10 tanques de piscicultura, 3 pivôs centrais e uma indústria de abate de frangos que gasta um metro cúbico por hora. Ou seja, o problema do Rio Vermelho na cidade de Goiás, como em vários outros lugares, não é que esteja chovendo menos ou que haja mudança climática: é que estão utilizando água demais do rio. Será que todas essas utilizações têm pedido de outorga? Será que ganharam permissão para usar essa água toda? E, caso afirmativo, será que quem concedeu a outorga não se tocou que talvez o rio não tivesse água para toda essa demanda? E então, de novo, voltamos à mesma questão: onde há um dado primário para dizer quanta água tem, para dizer se se pode usar ou não aquela água?

Mesmo que estejamos vivendo um momento de crise moral, da Previdência, política, econômica etc., o que posso dizer é que também nos encontramos diante de uma crise de recursos hídricos a qual só não se mostra mais ameaçadora porque nos faltam dados. Não podemos ainda pintá-la mais feia do que está porque não temos dados primários. Se os tivéssemos, provavelmente veríamos uma situação muito mais dramática do que estamos agora reconhecendo. E, sobre essa falta de dados primários, não se vê nenhuma ação mais contundente.