Um dos maiores especialistas no fenômeno da nova classe média brasileira diz que tecnologia, redes sociais e poder de consumo obrigam os personagens da
política a mudar sua prática

Renato Meirelles
Foto: Fernando Leite/Jornal Opção

Elder Dias

Antes de estar na moda fa­lar de classe C, o publicitário e comunicólogo Renato Mei­relles já apostava no mercado emergente. Foi assim que investiu suas fichas no projeto do Data Popular, um instituto de pesquisa voltado para estudos da chamada nova classe média brasileira. Aposta certeira: ele se tornou referência no tema, uma espécie de guru de empresários que queiram investir nesse mercado — que um dia já foi considerado “segmento”, como faz questão de ressaltar o pesquisador.

Renato Meirelles esteve na capital goiana na quarta-feira, 23, para mi­nis­trar uma palestra destinada a em­presários em evento de lançamento de um novo shopping em Aparecida de Goiânia, voltado exatamente para a classe C. O centro de compras ainda não começou a ser construída, vai estar pronta somente em 2016, mas já tem 42% de seus espaços já vendidos, o que só reforça o poder de fogo que tem essa fatia de brasileiros que mudaram de nível econômico nos últimos dez anos e que somam 40 milhões, número que chega a um quinto da população nacional e maior do que todos os demais países da América Latina, à exceção de México, Colômbia e Argentina.

Com MBA em Gestão de Negócios pela Escola Superior de Propaganda e Marketing (ESPM), Meirelles garante que o Brasil mudou definitivamente: as pessoas ascenderam de nível social querem mais e as redes sociais potencializam o alcance da verdade. “O cidadão está mais exigente, não há mais espaço para o político que sabe falar, mas não sabe ouvir. Da mesma forma, com a tecnologia e as redes sociais não há espaço para mentir ou tentar esconder alguma verdade.”
Em consonância com o que declarou à “Veja” o também pesquisador Mauro Paulino, do Datafolha, Renato Meirelles também vê a Copa do Mundo no Brasil como fator determinante para as eleições de outubro. E, por mais paradoxal que possa parecer, diz que os black blocs podem ajudar Dilma Rousseff, se conseguirem transformar as iminentes manifestações durante a festa esportiva em cenário de tumulto e violência. “O radicalismo afasta o cidadão médio e cria rejeição por parte dele.”

 

"Rolezinhos já existem desde 2007, mas ganharam relevância maior no último ano. basicamente é a movimentação dos jovens de classe c, que consomem mais que os jovens das classes a e b juntas”
“Rolezinhos já existem desde 2007, mas ganharam relevância maior no último ano. basicamente é a movimentação dos jovens de classe c, que consomem mais que os jovens das classes a e b juntas”

Parafraseando um ex-presidente, nunca antes na história deste País houve uma ascensão tão rápida de tanta gente ao mesmo tempo. Essa nova estrutura, essa mudança de status, causa uma reacomodação de espaços na sociedade brasileira. E isso gera conflitos e uma óbvia necessidade de adaptação a esse novo formato, não?
É verdade. Temos, em dez anos, 40 milhões de pessoas que passaram a integrar a classe média brasileira. Quarenta milhões de pessoas é mais do que a população da maioria dos países da América Latina [de fato, somente México (115 mi­lhões), Colômbia (45 milhões) e Argentina (42 milhões) têm população superior a isso]. É muita gente, é um país, é quase um continente a mais. Somente o número de pessoas que moram em favelas no Brasil movimentam o correspondente ao total do consumo da Bolívia somado ao consumo do Paraguai. Há mais favelados do que gaúchos no Brasil. E esse povo consome, movimenta muito nossa economia.

O governo Lula foi fundamental para o surgimento da nova classe média ou isso ocorreria independentemente da política petista?
Boa pergunta. O governo Lula foi fundamental, indiscutivelmente. Na verdade, tudo começou com o Plano Real e o controle da hiperinflação lá atrás, na gestão do presidente Fernando Henrique Cardoso (PSDB). Sem ele, não haveria a base econômica necessária para que alcançássemos o patamar a que chegamos. O Brasil não chegaria onde chegou sem isso. Mas foi o governo Lula aquele que distribuiu renda, foi quando houve uma real geração de empregos. Foi também no governo Lula que houve uma política de valorização real do salário mínimo, em que se criou a regra de que este salário sempre crescer por meio da reposição da inflação mais o avanço do PIB [Produto Interno Bruto] de dois anos antes, o que faz com que continuamente se tenha um ganho real. Esse processo de valorização do salário mínimo é muito bom, sob todos os aspectos.

O que se pode observar, de certa forma, é que o crescimento da classe C, até o momento, se deu apenas na questão econômica, em termos de poder aquisitivo. Isso leva as classes A e B a olhar esses emergentes como, grosso modo, uma espécie de “novos ricos”, pessoas que não deveriam estar onde estão por não terem os mesmos costumes ou, além disso, o mesmo grau de instrução. O que isso refletiu nisso que a gente poderia chamar de “luta de classes”, entre aspas mesmo, uma disputa de espaço dessa forma?
A renda, que vem diretamente da geração de emprego, cresceu antes de que se houvesse o avanço da educação ou a ampliação dos hábitos culturais. Isso é natural em qualquer economia do mundo, primeiro ganha-se o dinheiro e depois ele dá acesso à educação de maior qualidade, à internet etc. É o dinheiro que faz com que se tenha a cinema, a teatro, a shows dos mais diversos tipos. Efetiva­mente, é o dinheiro então que torna todo o restante possível. Não há nada de estranho nisso, portanto. Mas é bom observar que a escolaridade também tem se desenvolvido nos últimos anos. Basta o número de 3 milhões de estudantes universitários dessa classe C, nos últimos dez anos.

Ocorre que, como esse contingente cresceu com esse tanto de gente de uma só vez, as classes A e B ficaram incomodadas. Essas classes sempre buscaram exclusividade e esse fenômeno fez com que a renda da classe C crescesse sem que houvesse expansão dos espaços de consumo. O que aconteceu, como consequência, é o que a gente vê com o movimento dos rolezinhos ou com os aeroportos, que, na visão das classes mais altas, viraram rodoviárias. Isso tudo eu expus em uma palestra que elaborei sobre o preconceito que a elite têm com a classe C. Mas, o que posso dizer é “sinto muito, classes A e B!”. Ainda bem que as pessoas não precisam mais ficar três dias dentro de um ônibus. O novo Brasil é assim.

É interessante ver desabafos de pessoas dessas classes mais abastadas reclamando de que agora ter de registrar sua empregada doméstica. Então, eu pergunto: mas essas pessoas não queriam viver em um país de primeiro mundo? Pois no primeiro mundo é assim que funciona, ter uma empregada doméstica lá custa caro. É o ônus de ser “de primeiro mundo”.

O sr. disse, há alguns anos que esta década, dos anos 10, seria a década da economia brasileira. Nos últimos dois anos, no entanto, o ritmo mudou, para menos. Como fica essa reacomodação, inclusive do consumo da classe C, dentro dos novos prognósticos, não tão otimistas? Enfim, onde isso vai dar?
De fato, a economia desacelerou. Obviamente, o Brasil não vai crescer mais na mesma velocidade com que crescia em 2010, até porque a base de pobreza de que o País partiu — e que possibilitava uma margem de crescimento maior — não existe mais. O Brasil, antes, era um país de pobres; hoje, é um país de classe média. Simples assim. Então, se se parte de uma base menor, tende-se a crescer mais. Porém, é bom lembrar que metade dos lares brasileiros ainda não tem máquina de lavar roupa. Ou seja, ainda há um potencial gigante de crescimento.

Há também um mercado formal de trabalho consolidado. O que temos visto são duas tendências: o Brasil se consolidando como um país de classe média e o surgimento de uma nova elite. Hoje, 44% das classes A e B são a primeira geração de pessoas de tal classe da família. Ou seja, o pai não era da classe A ou B, a mãe, idem, mas esse indivíduo, sim, passou a ser. São pessoas que têm bolso de classe A e cabeça de classe C. Isso é uma tendência que veio para ficar e que a novela “Avenida Brasil” [exibida pela Rede Globo no horário das 21 horas de março a outubro de 2012] deixou muito claro como é esse comportamento.

"Se os black blocs liderarem AS manifestações,  este seria o melhor cenário para o governo na copa, porque o radicalismo e a violência afastam o eleitor médio”
“Se os black blocs liderarem AS manifestações,
este seria o melhor cenário para o governo na copa, porque o radicalismo e a violência afastam o eleitor médio”

O espaço não mudou, mas abriga mais gente e agora está sendo disputado. É o que ocorre nos aeroportos e nos shoppings, como os rolezinhos. Esse fenômeno é um modismo ou vai além disso?
O rolezinho já existe desde 2007. Acontece que isso ganhou uma relevância maior no último ano. Basicamente, os rolezinhos são a movimentação dos jovens da classe C, que movimentam R$ 130 bilhões por ano, mais do que a soma que consome os jovens das classes A e B. Então, esses jovens começaram a chamar seus amigos para se encontrar naquele shopping em que ele compra suas roupas de marca. Chamaram isso de rolezinho. A questão é que esse rapaz tem dezenas de milhares de amigos no Facebook, são os “famosinhos” das redes sociais. Os shoppings centers sempre se posicionaram como locais aberto ao lazer, ao entretenimento, não apenas como centros de compras. O jovem entendeu isso e vê o shopping dessa forma, com esse olhar.

O funk ostentação, uma adaptação do estilo próprio dos rappers, é uma questão à parte dentro do fenômeno do rolezinho para os jovens brasileiros?
A ostentação é a celebração da melhora da qualidade de vida. Vamos a um exemplo: a camiseta da Lacoste é algo de que todos gostam, da classe A à classe C. Só que a camiseta da Lacoste da classe A é lisa e a da classe C é toda colorida e tem um jacaré [marca da grife] enorme. A camiseta da Polo usada pela classe A tem um cavalo [marca da grife] pequenininho e a da classe C tem um cavalo gigantesco. Então, a relação que essas pessoas tem com as marcas é diferente. O grande erro é que as pessoas confundem “querer ser rico” com “querer ser como rico”. Esse pessoal não quer ser como rico. Acham que o rico é perdulário, que joga dinheiro fora, que não tem valores familiares. Essa é a diferença dessa nova classe média e dos novos ricos que estão surgindo por aí. O aspiracional é o vizinho que deu certo, não mais o cara da elite.

O sr. consegue fazer alguma conexão do aumento do consumo no País com o crescimento da violência urbana e a crise na segurança? Existe uma correlação ter mais dinheiro na praça e ocorrer mais violência?
Estamos tentando estudar isso. O que a gente sabe é que hoje se notifica muito mais violência do que se notificava antigamente. As causas tradicionais de violência, que era a falta de escola, não ter renda fixa, isso existe muito menos hoje do que no passado.

Não é algo apenas social que está envolvido.
Tem uma coisa que não foi refletida ainda, com certeza. O que se sabe é que o aumento da criminalidade não se dá pela questão da desigualdade — considerada a “eterna” causa da violência —, porque essa desigualdade efetivamente diminuiu.

A classe em ascensão que está tomando sua parte no mercado e que está se educando foi efetiva para as mudanças que acontecem no momento atual do Brasil, com as jornadas de junho no ano passado. Ou seja, pode-se dizer que o governo que impulsionou essa ascensão é o mesmo que agora está sofrendo com o novo grau de exigência. É uma situação irônica, não?

A régua está mudando. Quem achava que tomar sidra era uma delícia e experimentou Veuve Clicquot [marca de champanhe famosa internacionalmente por sua qualidade e sofisticação] não vai voltar à sidra e achar isso normal. Ora, se a régua mudou, teremos um consumidor mais exigente com relação à qualidade dos serviços públicos. Se o sujeito experimentou um plano de saúde privado, logicamente vai exigir mais do SUS [Sistema Único de Saúde], por exemplo. Ou seja, essa relação muda e não volta.

E esse cidadão quer isso do Estado?
Ele quer ter acesso a isso de forma gratuita, não necessariamente do Estado. O ProUni [Programa Universidade para Todos, subsídio do governo federal aos estudantes universitários em instituições privadas de ensino] não é do Estado, mas é o Estado quem paga. Esse cidadão não está nem aí se quem está fornecendo o serviço é o governo ou a iniciativa privada, o que ele quer é que seja de graça e que seja um serviço de qualidade. Não quer mais cesta básica, ele quer um plano nacional de banda larga.

E o Brasil está preparado para esse novo grau de exigência do cidadão? Parece que não.
O Brasil está se preparando. Têm alguns desafios efetivos para isso. Tem o desafio da produtividade, que precisa ser alcançado com um novo salto; tem a questão da melhora dos níveis de educação; o Brasil também não tem uma meritocracia no serviço público, algo fundamental para a melhoria da produtividade.

No meio dessa corrida toda que o Brasil já encara, há uma Copa do Mundo para ocorrer por aqui em um mês e meio. Seria um evento para nos afirmar como uma Nação diferente do estereótipo que pintam lá fora. O sr. acha que o País vai conseguir mostrar algo positivo?
Não tenho dúvida nenhuma de que vai. O Brasil será uma vitrine para o mundo, tem muita coisa bonita para mostrar, da mesma forma que tem muitos defeitos para revelar também. Todos esses defeitos também serão mostrados, vão ter manifestações nas cidades-sede da Copa, vão ser explicitadas nossas desigualdades. Calhar o ano eleitoral com a Copa do Mundo é algo ruim.

Ruim para quem?
Ruim para o Brasil, porque se politiza um evento desse porte em um nível desnecessário. Isso não precisaria ser politizado dessa forma. É uma mentira sair propagando que o dinheiro da Copa tira a verba que seria para a saúde. Claro, a Copa custou muito mais cara do que deveria ter custado, isso é fato. Está errado. Mas, quais são as reais polêmicas e quais são as falsas polêmicas? Como sair do senso comum? Essa é que tem de ser a discussão.

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O diretor do instituto Datafolha, Mauro Paulino, afirmou que a Copa do Mundo desta vez, diferentemente das outras, será fundamental para o resultado das eleições. Como o sr. vê essa argumentação?
Concordo 100% com Mauro Paulino. Não estou arriscando prognósticos eleitorais porque tem uma Copa no meio do caminho e tudo pode acontecer. Que vão ocorrer manifestações, isso é dado. Ponto. Se houver uma liderança dessas manifestações pelos black blocs, este seria o melhor cenário para o governo Dilma, porque o radicalismo e a violência afastam o eleitor médio, o cidadão padrão. Se a crítica à Copa for feita de forma alegre, leve, com caras pintadas, com conteúdo e sem violência, este será o melhor cenário para a oposição.

Na oposição quem ganha mais com alguma intercorrência durante a Copa?
Não dá para saber.

O PSDB — e, no caso, Aécio Neves — leva alguma desvantagem por já ter estado no poder e, portanto, pelo fato de o eleitor já conhecer o que foi seu governo e o ter trocado pela oposição de então?
Primeiramente, não é todo o povo que sabe o que foi o PSDB no poder. Os jovens não têm ideia do que é viver em um país de hiperinflação. A questão vai passar pela capacidade que Aécio Neves e Eduardo Campos (PSB) vão ter para se posicionar de forma diferente, alternativa em relação ao que aí está. O problema da oposição hoje é que ambos os candidatos se posicionam como a outra face da mesma moeda. E o problema está na moeda, o problema é esta moeda, essa classe política. As pessoas não podem achar que Eduardo ou Aécio estão criticando Dilma Rousseff só porque querem o lugar dela. O compromisso do político tem de ser melhorar a vida das pessoas.

“O que Sheherazade fez é apologia ao crime”

Eduardo Campos foi ministro no governo de Lula e esteve na base de Dilma até 2012. Digamos que ele pegou a “parte boa” do governo. Da mesma forma, sua provável vice, Marina Silva (PSB), também ex-ministra. Há chance dessa dobradinha dar certo diante dos olhos da população?
Eles têm o posicionamento mais adequado, dentre os três principais candidatos, para fazer uma discussão de futuro e não de legado. Tenho dúvidas é sobre a capacidade de Eduardo e Marina não se “matarem” durante a campanha. Não é verdade que eles tenham um pensamento comum sobre a maioria dos temas. Eles pensam diferente sobre modelos de desenvolvimento, regulação da economia e outros. São dois grandes brasileiros, que já contribuíram muito para o Brasil, mas não será uma relação fácil. Têm origens diferentes, pensamentos diferentes, enfim, muita coisa diferente.

A Copa tem sido tratada como algo maléfico ao País por grande parte da população. Diante de todas as manifestações, protestos, etc., além de um certo espírito apolítico, o brasileiro amadureceu como cidadão ou essa aversão a políticos é um sinal de alienação?
O brasileiro é tudo, menos alienado. A questão é que, para algumas coisas, ele considera essa discussão mais importante e, para outras, ela fica menos importante. A Copa do Mundo impõe um debate sobre a questão dos serviços públicos. Palavras de ordem como “saúde padrão Fifa” ou “educação padrão Fifa” mostram, na prática, a demanda por um tratamento mais uniforme, uma relação mais transparente. Não sou daqueles que acham que o brasileiro é alienado, bem como sou daqueles que não acreditam que só exista uma forma de engajamento. Existem várias, o problema é que a classe política estava acostumada com uma só forma e não faz a menor ideia, por exemplo, de como é o processo de formação de opinião das pessoas na internet e nas redes sociais.

O sr. costuma dizer que o político brasileiro só responde o que quer, que aprendeu a falar, mas não a ouvir, e por isso sofre com a dificuldade de interação. Essa nova forma de interação veio para ficar? O político vai ter de mudar?
Ou o político muda ou mudam os políticos. É uma nova geração que está surgindo, mais otimista, mais crítica e que não suporta a mentira. Imagine hoje, com a internet, se seria possível editar aquele último debate dos então candidatos Luiz Inácio Lula da Silva e Fernando Collor de Mello, em 1989? Seria impossível. O mesmo podemos falar daquele caso da bolinha de papel que atingiu José Serra (PSDB) em 2010 e tentaram explorar como se fosse uma pedra. Impossível manipular. A Rede Globo, no “Big Brother Brasil” do ano passado, foi obrigada a debater se houve ou não estupro de uma participante do reality show por conta da polêmica criada por alguém que, pelo pay-per-view, gravou a cena e a divulgou no YouTu­be. Da mesma forma, a tecnologia obriga o político a ser sincero.

Dentro desse cenário das novas tecnologias, o Congresso aprovou e a presidente Dilma sancionou, esses dias, o Marco Civil da Internet…
(interrompendo, enfático) O maior avanço para a democratização da informação dos últimos anos. Ponto.

O sr. considera mesmo dessa forma, com essa importância?
É o maior avanço para uma internet plural, uma internet livre, que não seja ditada pelo interesse de empresas ou de governos.

Mas muitos se preocupam com uma possível maior interferência do Estado na rede.
As pessoas têm muita paranoia em relação a essa questão da vigilância. A NSA [agência de segurança norte-americana] já está vigiando tudo, não tem espaço para censura. Mas é preciso haver mecanismos que promovam a regulação. E regular não é vigilância. Essa discussão em torno do que seria uma suposta censura. A imprensa é campeã em falar dessa forma, toda vez que se pensa em algum modelo de regulação as pessoas alegam censura. Mas, então, o dono do jornal é um censor? O editor é um censor? Por que o editor ou o dono do jornal teria mais direito de censurar uma pauta A ou uma pauta B do que alguém que foi eleito? É esse o debate que tem de ser conduzido. É esse o real debate sobre a regulamentação de mídia. A tal liberdade de imprensa — que tem de ser celebrada, pois é um princípio da democracia — é algo lindo, mas precisa servir para os dois lados. Não se pode privatizar a censura, e é isso que acontece hoje.

Nesse ponto, uma polêmica surgida nos últimos tempos diz respeito a declarações dadas por jornalistas nas bancadas dos telejornais, como ocorreu com Rachel Sheherazade, no “Jornal do SBT”, em que ela, no episódio da agressão ao garoto suspeito de um furto e preso a um poste no Rio de Janeiro, considerou legítimo o direito das pessoas se revoltarem. Até onde esse tipo de posicionamento pode ser considerado correto dentro do cenário de liberdade de imprensa?
Obviamente, eu e boa parte dos brasileiros de bom senso não concordamos com o que Sheherazade geralmente fala. Igualmente, eu e boa parte dos brasileiros acreditamos na liberdade de cada um falar o que quer. Dado isso, o que a legislação diz? Diz que o que ela fez não tem a ver com liberdade, mas com apologia à violência. E isso é crime, está na lei assim. E é bom ressaltar que ela não falou o que falou como comentarista, mas foi praticamente um editorial.

Entretanto, é preciso ressaltar que o mesmo que se critica sobre a polêmica em torno de Sheherazade se deve fazer também em relação aos programas policiais. Também vou pôr em questão outra polêmica: comerciais para criança. Engraçado que, quando se fala em comercial infantil, ninguém se lembra de censura, da possibilidade de manipular as crianças. A faixa etária mínima para poder assistir a um filme no cinema é uma censura? Não, é uma questão de regulamentação. Na prática, portanto, não estamos falando em censura, mas de regulamentar, de defender os princípios da Constituição brasileira — que defendem a liberdade religiosa, que são contra a apologia à violência — sejam respeitados. No caso de Sheherazade, o que houve, na prática, foi que o Ministério Público, acionado pelo Poder Legislativo, interveio para dizer que o Estado não pode financiar, mesmo que indiretamente, a apologia ao crime. Era isso que aconteceu na TV, em uma concessão pública. Essa foi a decisão do MP. Se Sheherazade quiser falar o que fala em um blog, não tem problema; mas não se pode pedir para o Estado financiar um blog que faça apologia ao crime.

Publicitário Renato Meirelles ao redator-chefe do Jornal Opção Elder Dias: “O brasileiro, no fundo, só quer ser respeitado”
Publicitário Renato Meirelles ao redator-chefe do Jornal Opção Elder Dias: “O brasileiro, no fundo, só quer ser respeitado” | Foto: Fernando Leite

Para parte da população, ficou a sen­sação de que Rachel Shehera­za­de foi amordaçada como jornalista.
Na prática, ela representa a opinião de uma parcela considerável de brasileiros. Só que tem esta questão: televisão aberta é concessão pública. TV aberta não é um blog, não é um jornal impresso, não é um portal na internet. Rádio e TV são concessões públicas, portanto, no limite, pertencem ao Estado — não ao governo, ao Estado. Empresas que têm concessões públicas têm de prestar serviços públicos de acordo com a lei. Simples assim.

Interessante é observar que, se ela tivesse dito o que disse em um programa policial, não haveria tido nenhuma repercussão maior. Espera-se que isso possa acontecer em um programa como os de Marcelo Rezende (Record) ou de José Luiz Datena (Band), mas não em um telejornal de horário nobre.
É bom ressaltar que o que foi dito é errado em qualquer lugar, mas concordo em 100% com você ao dizer que em um telejornal, que teoricamente buscaria uma neutralidade, causa uma grande estranheza.

O brasileiro parece sempre alguém em busca de um salvador da pátria. Na internet, figuras como a própria Rachel Sheherazade ou Joaquim Barbosa [ministro-presidente do Supremo Tribunal Fe­de­ral]. Um banner nas redes sociais pede uma chapa que seria o “sonho de 99% dos brasileiros”: Bar­bosa para presidente e She­he­ra­zade para vice. Esse messianismo é algo sempre iminente no povo brasileiro? Isso é próprio da nossa cultura? Vai diminuir com o tempo?
Primeiro, somente para esclarecer, não é verdade que 99% da população brasileira concordaria com uma chapa dessas. Joaquim Barbosa enfrentaria vários problemas se resolvesse sair candidato, porque ele é autoritário — o que se mostrou claramente quando ele foi criticado por um jornalista e então solicitou a demissão da mulher dele, que trabalhava no STF. No próprio ambiente com seus pares, ele mostra esse autoritarismo. Ele tem uma prática que não é exatamente exemplar.

Mas o que Barbosa e Shehe­ra­zade têm de mérito? Eles fazem o discurso do justo. No momento em que muitos não acreditam mais na polícia nem nos políticos, duas pessoas que não são da classe política tomam a frente para enquadrar os políticos. Esse discurso do justo fala para uma enorme parcela da população brasileira e causa grande identificação.

Então podemos concluir que sempre vai haver “mercado” eleitoral para figuras como o deputado federal Jair Bolsonaro (PP-RJ)?
Claro, sempre. Eleição proporcional serve para isso: nela, não se busca o voto de todos, mas de uma parcela que se identifica com seu pensamento.

Essa parcela, digamos, mais radical da população tentou um avanço recentemente sobre a opinião pública, com a reedição da Marcha da Família, movimento que apoiou o golpe de 1964. Desta vez, pediram uma intervenção militar. Foi um fracasso. Que conclusão se pode se extrair a partir desse fiasco?
Conclui-se que foi uma ação ridícula e que a democracia é um valor consagrado para a sociedade brasileira.

Esse tipo de pensamento representa a direita brasileira?
Não, longe disso. A direita brasileira é muito mais inteligente do que isso. A “boa” direita, a di­rei­ta liberal, que teve um Roberto Campos [economista, intelectual e ex-ministro durante o regime militar] como pensador, ou mesmo Delfim Netto [economista, ex-deputado federal e ex-ministro por várias vezes no regime militar] em outro momento, pessoas que tradicionalmente refletiam sobre o sistema, não existem mais. Como a direita não consegue ocupar mais o espaço desse tipo de nível de debate, acaba abrindo caminho para posicionamentos mais extremados de blogueiro e de personalidades como Rachel Sheherazade.

Como figuras como o ex-rebelde Lobão e o filósofo Olavo de Car­valho trabalham esse espaço na direita, em seu ponto de vista?
Sem falar especificamente de alguém, essas figuras mais polêmicas ocupam o espaço da histeria, e não o espaço do debate, da inteligência. Chamar alguém de “petralha” contribui tanto quando falar em “tucanoduto”. É preciso acabar com esses rótulos, isso não ajuda em nada a fazer crescer a democracia e a reflexão sobre a conjuntura.

Essa política baseada no “Fla x Flu” tem se espalhado pelas redes sociais. Não se pode criticar alguém de um dos lados sem ser imediatamente associado — ou rotulado mesmo — ao lado oposto. É possível superar essa polarização em um futuro próximo?
Eu não sei responder isso. Espero que sim, mas hoje a tendência é que se mantenha a radicalização e a discussão superficial. As redes sociais também contribuem para isso, porque se convive com os amigos, que geralmente têm opiniões semelhantes. Uma coisa interessante é que, no instituto Data Popular, conseguimos divulgar nossas pesquisas tanto na “Carta Ca­pi­tal” quanto na “Veja”. E é im­pressionante ver como o mesmo dado é interpretado de maneira totalmente diferente pelos leitores de uma revista em relação aos da outra. Claro que a linha editorial também influencia no que é postado, mas têm então todos os comentários sobre aquilo. Não me pauto mais pela repercussão que ocorre sobre as pesquisas na internet.

Como nasceu o Data Popular?
O Data Popular começou seus trabalhos em 2001, antes mesmo de estar na moda falar em classe C. Naquele momento, o Goldman Sachs [um dos maiores grupos financeiros do mun­do] lançou um estudo em que apontava que o futuro estava em países como Brasil, Rússia, Índia e China. Começamos como instituto de pesquisa e hoje temos um time muito diverso. Meu braço direito é a cientista social pela USP [Universidade de São Paulo] Maíra Saruê Machado; nossa gerente qualitativa é doutora em Antropologia pelo Museu Nacional do Rio de Janeiro; temos também vários economistas e estatísticos. Tudo isso sempre com uma visão que se baseia em juntar pensamentos diferentes, com métodos analíticos diferentes, para conseguir traçar um retrato mais preciso da sociedade brasileira. Com isso, a gente passou a ter muita demanda de empresas que queriam não só entender os resultados das pesquisas, mas traçar estratégias de negócios específicas para as classes C e D. Hoje, metade de nosso negócio vem de pesquisas e a outra metade vem de estratégias para essas classes.

E o trabalho de fazer um levantamento inédito nas favelas brasileiras? Como aconteceu essa iniciativa?
Esse trabalho foi fruto de uma parceria minha com Celso Athayde, fundador da Central Única das Favelas (Cufa). Em minha opinião, Athayde é um dos maiores empreendedores sociais da história do Brasil, um sujeito que foi menino de rua, que passou fome na infância, que trabalhou para o tráfico e que conseguiu se reinventar e criar uma solução diferente. Nós nos reunimos e dissemos “bom, vamos entender a favela”. Mas não queríamos buscar isso como alguém que trabalha com ratinhos de laboratório. Os moradores da favela têm de fazer a pesquisa, analisá-la efetivamente, para serem protagonistas da história que estão contando. Então, criamos o Data Favela, uma sociedade minha com Celso Athayde, que soma a experiência dele com a favela e a minha em metodologia de pesquisa para criar um grande instituto. Fizemos uma pesquisa enorme, que ouviu 2 mil moradores de favela no Brasil inteiro e que apresentamos no ano passado, no Copacabana Palace. Agora, em junho, vamos lançar um livro sobre a realidade das favelas brasileiras, chamado “Um País Chamado Favela”.

Que cidades entraram nesse levantamento?
Foram 30 cidades, do Brasil inteiro. Para toda pesquisa, fazemos um sorteio amostral e aqui no Centro-Oeste o levantamento foi feito na cidade satélite do Sa­mam­baia, no Distrito Federal. Nem sempre é a favela como se imagina naquele estereótipo, mas o que o IBGE [Instituto Brasileiro de Geografia e Estatísticas] chama de aglomerado subnormal, territórios frutos de ocupação e sem regulamentação fundiária.

Dessa experiência nas favelas, qual foi um dado que particularmente chamou sua atenção?
Noventa e quatro por cento dos moradores de favela são felizes.

É uma constatação impressionante. E que lição se pode tirar disso?
(risos) Que as classes A e B precisam tomar menos Prozac [remédio antidepressivo], olhar de frente para a vida e ver que a felicidade depende de cada um, de suas relações sociais, do ambiente familiar. O brasileiro, no fundo, só quer ser respeitado, poder reunir seus amigos e sua família com segurança.

E o fenômeno das UPPs [unidades de polícia pacificadora]?
Vamos estudar isso agora mais profundamente. Se por um lado, as UPPs avançaram contra o tráfico e no controle do Estado sobre o território das favelas, por outro lado impediram a cultura dentro da favela e encareceram os empreendimentos nas comunidades. O tráfico ficou menos ostensivo, mas ainda está presente na vida dos moradores. Só se pode pensar no fim do tráfico a partir do momento em que houver uma matriz econômica que o substitua nas favelas, ou seja, que faça tanto dinheiro rodar por lá como o tráfico gera. Isso ainda não ocorreu com o controle das UPPs. Por mais que os moradores de favelas consumam R$ 63 bilhões de reais por ano, isso poderia ser um montante muito maior.