“Nosso partido é o único em Goiás a apresentar uma mulher para o Senado”
29 maio 2022 às 00h00
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Ex-deputada diz que retorna à política para ajudar a “recuperar o Brasil do desmonte profundo deixado pelo atual governo”
Os tempos são duros e, exatamente por que são esses os tempos que vivemos, Denise Carvalho está de volta à batalha. Procurada por seu partido, o PCdoB, para concorrer ao Senado Federal, ela não pensou duas vezes. Aceitou o convite e, com o espírito de luta que sempre a caracterizou, passou os olhos pela concorrência e notou: “Até agora, o meu é o único nome de mulher para o Senado. Fico pensando: não é possível uma coisa dessas.”
Em seus quatro mandatos parlamentares – como vereadora de Goiânia entre 1988 e 1991 e deputada estadual de 1991 a 2003 –, sempre se caracterizou por fazer um trabalho voltado aos movimentos sociais, à educação, à ciência e à luta das mulheres – o que levou a se tornar secretária de Estado em Goiás de 2003 a 2010 em duas pastas – a da Ciência e Tecnologia e a de Política para as Mulheres. Ela se orgulha de ter participado de uma das legislaturas da Alego, a de 1995-1999, com maior presença de mulheres. “Éramos sete deputadas: Dária Rodrigues, Mara Naves, Onaide Santillo, Vanda Melo, Rose Cruvinel e Nelci Spadoni, além de mim”, conta.
Aos 59 anos, a memorável líder do movimento pula-catraca, cuja luta nos anos 80 rendeu o benefício do meio passe estudantil no transporte coletivo, diz estar pronta para outra batalha: ajudar a reerguer o Brasil em um novo mandato de Luiz Inácio Lula da Silva (PT), a quem ela espera ver eleito presidente em outubro. Nesta entrevista ao Jornal Opção, Denise relembra sua trajetória, fala sobre sua pré-candidatura ao Senado e sobre o que considera “esses tempos sombrios” de governo de Jair Bolsonaro (PL).
Marcos Aurélio Silva – De onde vem sua força para querer concorrer a uma vaga ao Senado, diante de toda a conjuntura desfavorável dos dias atuais?
Isso vem de toda a minha história. Há muita gente envolvida. Tem o carinho com que o PCdoB aventou meu nome, uma geração inteira de pessoas com quem eu convivi nesses 40 anos de militância. É uma força fenomenal, de ideias, de disposição, de gente que está enxergando luz nesse caminho. É tudo isso que constrói essa vontade, que não é só minha, mas de toda a turma que quer recuperar o Brasil.
Marcos Aurélio Silva – Quais foram os caminhos que conduziram a sra. à vida pública e ao engajamento político?
Principalmente o movimento estudantil e a luta democrática no início dos anos 80. Quando entrei na universidade, em 1980, já comecei a militar no movimento estudantil e, dois anos depois, já fui eleita vice-presidente do DCE [Diretório Central dos Estudantes], quando fizemos a primeira greve de estudantes de Goiás, pelo direito à educação pública, gratuita e de qualidade. No ano seguinte, fui eleita presidente do DCE, quando fizemos aquela memorável luta do movimento “pula catraca”, pelo meio passe no transporte coletivo. Em 1984, começamos a grande luta das Diretas Já e, em 1985, o movimento Muda Brasil, pela eleição de Tancredo Neves (PMDB). Estávamos no auge das lutas democráticas no Brasil e em Goiás.
Depois que fizemos todo esse movimento, como presidente do DCE, em 1985 saí para ser presidente da União da Juventude Socialista (UJS), que estava começando a ser construída. Foi o período em que participei da criação de entidades de mulheres no Estado, como o Cevam [Centro de Valorização da Mulher] e do Centro Popular da Mulher. Era um momento de um certo renascimento da democracia, das lutas populares, o processo da Constituinte. A UFG [Universidade Federal de Goiás] fez uma Estatuinte na época, discutindo profundamente quais temas deveriam ser levados ao Congresso Nacional, como a remoção do entulho autoritário. Então, os anos 80 foram essa beleza (risos).
Marcos Aurélio Silva – E como começou sua carreira política?
Em 1988, pelo PCdoB, fui eleita vereadora, a segunda mais votada para a Câmara de Goiânia. Somente Darci Accorsi (PT), que tinha sido candidato a prefeito [em 1985], teve mais votos. Dois anos depois, me tornei deputada estadual, a mais votada em Goiânia. Fiquei na Assembleia Legislativa por três mandatos.
Marcos Aurélio Silva – Quais conquistas permanecem hoje dessas lutas de 40 anos atrás?
Sem dúvida, a maior é a manutenção da universidade pública, gratuita, de qualidade, democrática e em crescendo. Naquela época, já havia o acordo MEC-Usaid [série de convênios realizados a partir de 1964 durante o regime militar, entre o Ministério da Educação (MEC) e a United States Agency for International Development (Usaid)], que o governo dos militares tentaram impor, um projeto de privatização das universidades, o qual estão agora querendo ressuscitar. Nesta semana, o tema está na ordem do dia, a votação de projeto de lei para a cobrança de mensalidade nas universidades, o que é um profundo e imenso atraso.
“A Constituição de 88 é o grande ganho de todas as lutas democráticas”
Foi com nossas lutas que conseguimos eleições diretas para reitor, para diretores de unidades acadêmicas, bem como a discussão de como seria o currículo dos cursos, de forma bem aberta e democrática. A universidade também ficou bem mais ligada à sociedade, até porque não pode ser um castelo de saber isolado, é preciso estar em profunda sintonia com a população. Nesse período, cresceram muito os projetos de integração com a sociedade. Em particular durante os governos Lula [PT, de 2003 a 2010], o acesso à instituição foi democratizado de forma bastante abrangente. Quando eu entrei na faculdade, eram pouquíssimos os cursos. Hoje, eles cresceram em volume e número de vagas. Da mesma forma, há um grande acesso via instituições privadas, com os programas do governo federal. A juventude passou a ter muito mais oportunidades de ensino superior, coisa que ainda era muito restrita nos anos 80.
Tudo isso é fruto dessa luta. Fundamentalmente, a Constituição Cidadã de 1988 é o grande ganho de todas essas lutas democráticas e estudantis da época. Foi no processo da Constituinte que criamos o Estado de Direito da democracia no Brasil, que colocamos fim ao período de 21 anos de domínio dos militares. Foi um marco da redemocratização do Brasil que gerou possibilidades as mais abrangentes para toda a população – de crescimento, de participação, de consciência e de decisão sobre seu destino. Basta dizer que só em 1989 nós pudemos votar para presidente. Tudo é fruto dessa luta popular.
Marcos Aurélio Silva – A militância estudantil, principalmente, serviu como suporte para seu trabalho em seus mandatos?
Quando fui eleita vereadora, participei da legislatura que elaborou a Lei Orgânica de Goiânia, que é como a Constituição municipal. Nela, consegui aprovar 200 emendas ao documento. Fundamentalmente, eram emendas pela democratização dos espaços de poder. Criamos muito em relação aos conselhos populares, mas também bastante coisa para o enfrentamento da especulação imobiliária na capital, a defesa das áreas verdes e da qualidade de vida da população, também políticas públicas para garantia de trabalho e renda. A Câmara foi muito importante para ampliar as pautas do município.
Na Assembleia, a partir de 1990, meu protagonismo foi presidindo a Comissão de Educação e Cultura. Criamos o Fórum Goiano sobre Cultura, que vigorou por seis anos e criamos, por meio dele, a Lei Goyazes de Incentivo à Cultura. Também na comissão criamos a Lei de Diretrizes e Bases (LDB) da Educação em Goiás. Fomos os primeiros Estado a ter uma LDB estadual, uma lei muito avançada, fruto desse trabalho da comissão toda – a relatora foi a deputada Mara Naves (PMDB) –, enquanto ainda estava em discussão a lei federal, de autoria do senador Darcy Ribeiro (PDT).
Também presidi a Comissão de Reforma Agrária, durante oito anos, e a Comissão de Mulheres Deputadas. Chegamos a ter sete mulheres no Parlamento goiano e a comissão havia sido criada para qualificar nossa ida à Conferência da ONU [Organização das Nações Unidas] a Beijing [outro nome para Pequim, a capital da China], em 1995. Fui a representante de Goiás no evento, que discutiu de forma muito abrangente a pobreza em todo o mundo. Vimos ali que a pobreza tem uma cara, e é feminina e negra. Foi um marco nas políticas públicas dos 186 países que assinaram o compromisso. A partir dali, vieram os objetivos para o novo milênio e a pauta da mulher entrou em uma dimensão mais institucional, de dever do Estado. Foi uma experiência ímpar.
Euler de França Belém – Na Comissão de Reforma Agrária, como foi seu trabalho naquele momento?
Trabalhamos o deputado Osmar Magalhães (PT) e eu à frente. Andamos em todos os acampamentos e assentamentos de trabalhadores rurais do Estado. Elaboramos uma visão de mundo, de que o desenvolvimento precisava estar integrado à democratização – dos bens, do acesso à terra, das oportunidades. Foi um período muito rico de contato com os trabalhadores rurais. Esse tipo de ação se desdobrou em atividades como a Marcha das Margaridas, quando eu já não estava mais no Parlamento, mas na secretaria de Estado.
Euler de França Belém – Quando a sra. foi vereadora, conseguiu barrar a construção de um shopping no Setor Marista, com muita luta. Hoje o bairro está cheio de prédios e a cidade parece que perdeu o controle das construções. Como foi essa história?
Nós fizemos uma ação popular e ganhamos a batalha na Justiça. Era algo que feriria totalmente o traçado da região. A população do Marista e também do Setor Sul se mobilizou muito na época. Recebi representantes em meu gabinete, fomos em frente e vencemos. Ali eu já recebi as primeiras ameaças de morte contra mim. Denunciei isso à Polícia Civil e tive de ter proteção policial por um certo tempo. Meu filho, que tinha 6 anos, também teve de ser protegido. Foram as primeiras ameaças, mas não as únicas. Em toda nossa história, sempre tive momentos de confronto com poderes muito instituídos e alguns deles bastante violentos.
Marcos Aurélio Silva – Todas essas pautas que a sra. citou, que datam de mais de 30 anos, parecem ainda muito atuais. A sra. também vê assim, inclusive como pré-candidata ao Senado?
Algumas dessas pautas ganharam até mais relevância hoje. A defesa da educação está hoje sob uma ameaça maior ainda do que naquele período. A gente estava saindo de um processo de ditadura, de esforço pela privatização, e agora essa ameaça está presente de novo no dia a dia. A pauta da saúde, a qual nós já abraçávamos – e que se constituía, então, da construção do SUS [Sistema Único de Saúde] – agora retorna, com a necessidade de lutar para salvar o SUS da privatização. Veja a importância que esse sistema teve diante do mundo nesta pandemia da Covid-19: quem salvou a vida de milhões de pessoas foi o SUS, pela vacinação, pelo atendimento gratuito. Em outros países, é preciso pagar uma fortuna para ter tratamento; no Brasil, é uma preciosidade ter esse atendimento de graça e com qualidade, feito por profissionais com formação humanista. Isso tudo está ameaçado, porque o clima desumano que paira sobre o País, de banalização da morte, é um fator a mais que aumenta a necessidade dessas lutas.
“A penetração do capitalismo no campo se deu de forma predatória”
Da mesma forma, posso falar sobre a reforma agrária. A terra continua concentrada, muito concentrada, no Brasil. Naqueles tempos, havia muito latifúndio improdutivo, hoje o formato é outro – a monocultura predatória para exportação. Não há mais o padrão de antes, mas a penetração do capitalismo no campo se deu de forma predatória, com relações de trabalho de muita exploração e de muita degradação ambiental. O problema muito que é o esgotamento da água potável no planeta não deveria ser motivo de preocupação para nós, que temos a maior reserva do mundo. Mas temos o Pantanal perdendo muita água, assim como todo o Centro-Oeste. Tudo isso ocorre, além das alterações climáticas, também por causa do modelo econômico.
Euler de França Belém – O PCdoB teve uma força política muito grande, com nomes como Aldo Arantes, Euler Ivo, Fábio Tokarski, além da sra., obviamente. Por que o partido foi perdendo força em Goiás?
Eu tenho uma leitura muito particular sobre isso. O processo eleitoral brasileiro foi se alterando ao longo do tempo e isso prejudicou, em grande parte, os setores democráticos populares que se elegiam no debate de ideias. A redução do prazo de campanha, o domínio do poder econômico sobre as eleições, tudo isso foram fatores que dificultaram um maior crescimento. Você citou Goiás, mas em outros Estados, como no Maranhão, o partido chegou a ter o governador [Flávio Dino, hoje no PSB, foi eleito em 2014 e reeleito em 2018 pelo PCdoB]. Por que aqui não teve esse crescimento tão grande? Talvez porque aqui o conservadorismo se expresse de uma forma mais contundente, mais orgânica e organizada, o que trouxe mais barreiras para nós.
Euler de França Belém – Não houve uma perda de contato do PCdoB com a universidade, com os movimentos estudantis?
O movimento estudantil tem muita presença do PCdoB, por meio de nossa corrente, a UJS. Mas é tudo muito diferente do que era nos anos 80. Hoje, por exemplo, as redes sociais têm outro papel no debate de ideias na universidade. A mobilização da juventude é outro aspecto que mudou bastante. O movimento de mulheres, por exemplo, nos anos 80, viveu um processo de ascensão, de consciência mais elevada. Retiramos toda aquela legislação atrasada que tinha no Código Civil – em que as mulheres eram penalizadas por tudo, em que o marido podia devolver a esposa para o pai se descobrisse que ela não era mais virgem. Hoje, vemos que há, principalmente neste período mais recente, uma expressão forte da misoginia, do ataque às mulheres, de sua penalização por quase tudo. É preciso recuperar essa consciência. Vejo agora algo positivo: todos os partidos falando na TV da questão da mulher – e isso é fruto da nova legislação eleitoral, que estabelece que todos precisam não só colocar suas mulheres na tela, mas também falar das pautas delas.
Em nosso caso, o PCdoB não só tem mulher como presidente, tem suas mulheres protagonistas, mas hoje também apresenta uma mulher para o Senado em Goiás. É o único partido a fazer isso, dando esse passo a mais na defesa de nossos direitos. É um momento diferente de recuperação depois de muito ataque que temos sofrido, especialmente nestes últimos anos.
Euler de França Belém – O País sempre teve correntes conservadoras e mesmo de extrema-direita, como a TFP [Tradição, Família e Propriedade], mas agora há uma corrente de extrema-direita muito orgânica. Isso se deve a quê?
Primeiramente, é preciso dizer que isso é um fenômeno mundial. O ultraliberalismo – que não é nem mais um neoliberalismo – preconiza o fim do Estado, a privatização extrema, a própria consciência humana sendo transformada em mercadoria. Esse regime quer impor uma agenda de fome, de exploração extrema do trabalho, de remuneração mínima do trabalhador e precisa historicamente adotar métodos de conduta mais fechados, ditatoriais. É algo visto no mundo inteiro e no Brasil se expressou dessa forma absurda, particularmente depois do golpe contra Dilma [Rousseff (PT), presidente de 2011 a 2016 e destituída por impeachment], em que se tenta destruir as instituições democráticas. É uma corrente de forte cunho ideológico, não apenas conservadora. Isso não é só conservadorismo, mas um fundamentalismo que nega a ciência, um reacionarismo que nega o processo civilizatório da humanidade, nega coisas básicas e preconiza a morte pela distribuição de armas, que é uma de suas principais bandeiras. Tudo é resolvido pela força, não pelo diálogo. A esperança vai sendo reduzida, a juventude é levada à descrença, ao fim dos sonhos, a não entender que um outro mundo é possível. É muito sério e fruto desse modelo ultraliberal, imposto para salvar o capitalismo selvagem no planeta. Nós acreditamos em outro modelo e achamos que é muito possível que ele venha a ser revigorado e ser o dominante no Brasil: um modelo civilizatório, humanista, calcado na solidariedade, na geração de oportunidades, e não no ódio.
“A valorização das mulheres é, no fundo, a salvação da família brasileira”
Euler de França Belém – O pesquisador estadunidense Mark Lilla tem um livro no qual ele afirma que a preocupação excessiva da esquerda com as causas identitárias prejudicou um pouco sua inserção na sociedade. Ou seja, a esquerda não mais prioriza as questões sociais mais gerais e isso teria prejudicado seu desempenho mundialmente? O que a sra. pensa sobre isso?
Há muita confusão entre o que é causa identitária e o que causa social. Por exemplo, a luta contra o racismo no Brasil não é apenas identitária. Tem, lá dentro, um viés identitário, mas é fruto do modelo de produção que vigorou por 300 anos e que explorou a força escrava do povo negro no País. Portanto, a luta contra o racismo é uma luta social profunda no Brasil, não é uma causa identitária nos moldes do que têm sido definido pelos movimentos nos Estados Unidos e na Europa, há uma fisionomia própria aqui.
A luta das mulheres é outro exemplo. Somos 52% da população e o que buscamos? Respeito, direitos – ainda –, fim da violência, inserção social e igualdade de condições. As mulheres até hoje recebem menos do que os homens exercendo o mesmo trabalho e elas chefiam metade das famílias brasileiras. São mulheres sozinhas. Então, a luta das mulheres não é uma luta por identidade apenas – é “também” por identidade. É uma luta econômica, política, social e que diz respeito a toda a família e à sociedade como um todo. Então, quando valorizam as mulheres, é o povo que está sendo valorizado, um novo modelo de relações sociais. No fundo, está salvando a família brasileira.
Marcos Aurélio Silva – Um documento lançado por militares da reserva na presença do vice-presidente Hamilton Mourão (Republicanos), chamado Projeto de Nação, no qual eles fazem uma projeção do Brasil a partir do ano 2035, quando, pelo que escreveram, ainda estariam no poder. Esse projeto coloca em xeque a gratuidade do SUS e das universidades. É algo que preocupa?
Nós enfrentamos isso nos anos 80, com os famigerados acordos MEC-Usaid, já citados. Com o ultraliberalismo, que quer tirar o Estado de tudo, querem inclusive abolir o que é essencial: educação, saúde, geração de emprego e renda, segurança e também do fomento à produção. Não existe capitalismo desenvolvido sem que o Estado tenha atuado na própria produção, na geração de riquezas do país. Os ultraliberais preconizam a retirada do Estado, numa pauta antiga do neoliberalismo, agora agravada. Os militares sempre tiveram uma corrente mais entreguista, para a qual sempre foi um anseio implantar esse tipo de projeto.
O governo Bolsonaro, desde o primeiro dia, tenta privatizar a universidade e acabar com a ciência e com a tecnologia. Para o SUS havia um plano concreto de aniquilá-lo – ironicamente, foi a pandemia que o salvou da privatização imediata. A intenção era essa. Por isso, é uma luta constante defender esses patrimônios todos, que são essenciais à vida. No caso da privatização da educação, entendê-la como um gasto é algo de profunda ignorância. Não há desenvolvimento de um país, de um povo, sem investimentos massivos na educação. O caso da Coreia do Sul é exemplar: todo seu desenvolvimento econômico foi baseado em tecnologia e ciência. Todos sabem disso, exceto esse atraso que está sentado no Palácio do Planalto.
Euler de França Belém – O PV está protestando contra o que chamam de imposição do nome do professor Wolmir Amado (PT) para disputar o governo. No entanto, há uma federação entre os dois partidos mais o PCdoB. Como a sra. enxerga esse tipo de situação?
Não vi esse tipo de protesto. O que sei é que o PT em Goiás já tem trabalhado seu nome ao governo desde o ano passado, que é o do professor Wolmir. Houve vários debates programáticos com ele, muitas reuniões e encontros regionais. Então, é legítimo que o PT trabalhasse seu nome para a chapa de apoio ao presidente Lula. Assim como o PCdoB apresentou meu nome para o Senado, o PT, com todo o direito, também apresentou o nome dele à federação, que tem os três partidos. Em seguida, quando se formalizou a aliança nacional com a chapa Lula – Geraldo Alckmin, o PSB apresentou o nome do ex-governador José Eliton como pré-candidato ao governo, também. Chegamos a uma situação em que, na reunião de 25 de abril, entre os quatro partidos, tivemos três nomes apresentados: o PSB e o PT apresentaram nomes para o governo e o PCdoB apresentou o meu para o Senado. Naquela reunião, o PV ainda não tinha apresentado alguém, depois colocou em debate o nome de Cristiano Cunha [presidente do PV em Goiás]. É um processo natural, basta a gente entender que só agora a federação foi reconhecida pelo TSE [Tribunal Superior Eleitoral]. É um modelo novo e é natural que haja um processo de acomodação. Até lá, vamos discutindo com os partidos para no fim chegar a um formato que fortaleça a chapa nacional em Goiás, bem como também aqui no Estado, um projeto de caráter democrático e popular.
Euler de França Belém – Mas a tendência hoje está em o candidato ser Wolmir, já que o PSB saiu das negociações?
Há muito a conversar, mas vai ser comum esse tipo de situação. Temos um acordo de coligação entre os quatro partidos – o PSB mais nossa federação. Há também uma compreensão robusta entre todos nós de que o nome de José Eliton é visto com bons olhos, porque amplia o diálogo com setores que estão além das esquerdas. Ele pode ampliar a base social de apoio a Lula. Tudo isso está sendo visto com muito cuidado, não há decisão tomada ainda. O que posso dizer é que o nome dele é bem acolhido, inclusive pelo próprio PT. Estamos discutindo isso sem nenhum espírito de contenda interna, mas buscando um caminho para fortalecer a chapa de Lula em Goiás.
Euler de França Belém – E como fica a situação de vocês com o ex-governador Marconi Perillo (PSDB), cujo partido não tem mais candidato à Presidência?
Não sei o que o PSDB vai fazer, João Doria [ex-pré-candidato à Presidência] desistiu nesta semana. É uma incógnita nacional. Estamos construindo nosso caminho, independentemente do que eles venham a escolher.
Marcos Aurélio Silva – A sra. vê nas federações uma forma saudável de fortalecer a esquerda?
Penso que sim, as federações nos ajudam muito na construção dos processos de unidade. Os três partidos que compõem a federação vão ter de ficar juntos durante quatro anos. Isso é muito rico, porque se começa a fazer uma afirmação programática, de métodos de trabalho, de inserção nas lutas populares. Essa unidade ganha uma força muito mais permanente, longeva, do que um mero processo eleitoral. As coligações também ampliam, nos ajudam, mas as federações fortalecem e aprofundam os laços de unidade. Tendo a achar que, no Brasil, vamos crescer bastante nesse processo, porque aprendemos muito com duros golpes recentes. Vimos, na queda de Dilma, que não basta ganhar eleição, é preciso ser inserção de fato na sociedade como um todo, fundamentalmente nos movimentos populares, para que as conquistas não se percam, para que não fiquemos ameaçados o tempo todo. Para um processo de mudança democrática vingar, há muita coisa antes a ser removida do conservadorismo dominante. Aprendemos muito e temos de aprender ainda mais esses lados.
Em tempo, é preciso lembrar que o PSOL e a Rede Sustentabilidade [que formaram entre si, também, uma federação] também estão na coligação nacional, embora não estejam na federação, vão participar de todo esse movimento.
“Privatização da Petrobrás é mais que um equívoco, é crime de lesa-pátria”
Euler de França Belém – A sra. considera que a articulação da privatização da Petrobrás, a grande empresa estatal brasileira, é um outro equívoco?
É mais do que um equívoco, é um crime de lesa-pátria. A Petrobrás foi criada como um esteio do desenvolvimento deste País, uma empresa de caráter público que pudesse fomentar vários ramos da economia. Então, no afã entreguista deste governo, tentam vendê-la de qualquer maneira. É essa mesma sanha entreguista que faz com que o preço do combustível esteja como está. Os preços estão pautados por uma política focada nos interesses neoliberais. A gente precisa rever tudo isso em um governo democrático e popular.
O pré-sal, quando foi descoberto, era uma imensa esperança de recursos volumosos para a educação, para a saúde, para os setores mais essenciais do orçamento nacional. Agora, tudo isso vai por terra com Paulo Guedes [ministro da Economia] e sua política entreguista?
Euler de França Belém – Lula está falando que, se for eleito, fará uma revisão da reforma trabalhista. O que a sra. considera que precisa ser revisto nessa reforma?
A reforma trabalhista veio para liquidar com direitos dos trabalhadores. O objetivo central foi isto: acabar com os direitos e com a organização sindical, com os sindicatos. Da mesma forma, acabaram com a aposentadoria do povo, que só aposenta depois de morto. Em um governo popular, é preciso ser feito um retorno dos direitos dos trabalhadores. Lula é um operário, vem do movimento social, não sei em que grau ou velocidade, mas tenho segurança de que será um governo de defesa dos trabalhadores e do povo que teve todas essas perdas, além de outra, mais essencial: a de comer três vezes ao dia. É só andar pelas ruas e ver como está a situação. Voltamos para o Mapa da Fome e em Goiânia ou qualquer cidade deste País e vê a miséria estampada, a falta de perspectiva. O desemprego e a fome amedrontam. O botijão de gás está com um valor absurdo – em 2015, no segundo mandato de Dilma, um salário mínimo daria para comprar mais de 17 botijões; hoje, não passa de 11.
Então, acho que não só a reforma trabalhista, mas também a PEC do Teto dos Gastos, todos os pacotes antipovo, tudo precisa ser revisto. Não temos como desenvolver o País com esse modelo neoliberal, que não é de desenvolvimento coisa nenhuma; é, sim, modelo de entrega das riquezas, modelo de como arrancar o sangue do trabalhador.
Marcos Aurélio Silva – O que o governo do PT faria em relação à agricultura familiar?
Precisamos ter a garantia de acesso ao trabalho, aos meios de produção. Cerca de 70% das propriedades são de pequenos produtores, que produzem 70% dos alimentos também. A grande propriedade produz para exportação. Precisa ter seu espaço, gerar commodities. Mas, fundamentalmente, um governo Lula, como já fez, tem que fomentar o que gera trabalho e renda, o que gera alimento, riqueza. Esse modelo todo vai sendo pensado com um caráter popular, democrático e de inclusão social. Uma amiga resumiu esse futuro governo em três Ts: trabalho, teto e terra.
Euler de França Belém – Em cinco anos, a Enel já recuperou todo o investimento de compra da Celg. A estatal italiana agora planeja vender o serviço por mais de duas vezes o que pagou. Foi um erro privatizar a distribuição de energia elétrica?
Todas as privatizações foram erros. Como deputada, fui quem mais lutou contra as privatizações do setor elétrico, primeiro da usina [Cachoeira Dourada], depois da distribuição. O Estado abre mão de um setor estratégico para o desenvolvimento, até mesmo de sua soberania. Se você não tem poder sobre a produção energética, perde também poder sobre a própria soberania do País. Isso sem contar a falácia de que, privatizando, o serviço vai melhorar e ficar mais barato para o consumidor. Sempre foi o contrário, porque entra o fator lucro, fica sempre pior. O roteiro é vender a preço de banana e, depois, na revenda a empresa já valer muito mais.
Euler de França Belém – Da mesma forma, caiu o investimento em eletrificação rural.
Evidentemente isso aconteceria, porque não há mais subsídio, não existe mais função social. O objetivo é apenas o lucro.
Euler de França Belém – A sra. participou de uma legislatura com sete mulheres na Assembleia. Por que essa representatividade feminina caiu?
Quando entrei para meu primeiro mandato, em 1991, éramos apenas três deputadas: eu, Vanda Melo e Cleuzita de Assis – que havia sido reeleita e tinha tido uma legislatura com apenas outra mulher, Conceição Gayer. Já em meu segundo mandato, éramos sete deputadas: além de mim, Dária Rodrigues, Mara Naves, Onaide Santillo, Vanda Melo, Rose Cruvinel e Nelci Spadoni.
Hoje são apenas duas mulheres na Casa [Adriana Accorsi (PT) e Lêda Borges (PSDB)]. É algo preocupante. Houve um retrocesso violento na presença das mulheres na política em Goiás. A professora Denise Paiva [da Faculdade de Ciências Sociais], da UFG, fez um estudo sobre a questão da mulher no Parlamento e apresentou um dado muito significativo: antes da ditadura militar, três mulheres haviam sido deputadas em Goiás: Almerinda Arantes, Berenice Artiaga e Ana Braga. No período de 21 anos de ditadura, nenhuma mulher foi parlamentar. Nenhuma. Isso demonstra como a questão da mulher está diretamente ligada à democracia. Quanto mais democracia, mais participação feminina; quanto menos democracia, menos participação, porque não há processos coletivos para a eleição, o debate não flui.
Já no período da redemocratização, houve o retorno das mulheres e agora, com a ameaça à democracia, esse número novamente é reduzido. Não é à toa que isso está ocorrendo, precisamos nos preocupar e transformar esse discurso de valorização da mulher em força real aqui em Goiás.
Marcos Aurélio Silva – Durante estes anos, a sra. ficou totalmente afastada da política?
Eu sempre estive nos movimento de base. Para mim, o Parlamento sempre foi uma tarefa. Quando terminou minha tarefa por lá, fui cumprir duas outras tarefas no Executivo – fui secretária de Ciência e Tecnologia por quatro anos e, depois, secretária da Mulher, Igualdade Racial, Juventude e LGBT. Isso de 2007 a 2010. Desde 2011, mergulhei mais no movimento social e em uma frente nova, pela qual me apaixonei, que é o trabalho com a cultura de paz. Fui para dentro da Universidade Internacional da Paz, fiz lá várias formações, comecei a trabalhar alguns projetos nesse sentido, também. É muito apaixonante conseguir aprender métodos, formas de relacionamento entre as pessoas que não sejam pautados pelo ódio, pelo conflito, pelo confronto, mas, sim, pela construção de novas relações humanas. Também me dediquei bastante ao movimento de mulheres, me aprofundando especialmente no caminho da Marcha das Margaridas. Elas têm um plano completo para o Brasil, que fala desde da questão da energia até a relação solidária de trabalho. É uma lindeza, não são apenas marchas, mas entre uma marcha e outra, passam três anos debatendo um projeto para o Brasil e fazendo uma profunda formação de camponeses. Por fim, fui conhecer no cotidiano movimentos os quais tinha contatado apenas na relação da luta, o que enriqueceu demais minha vida também.
Euler de França Belém – A sra. ficou um período afastada da política. Qual foi sua motivação para voltar?
Recuperar o Brasil. Não poderia ficar fora dessa grande batalha, de jeito nenhum. Quando o PCdoB me perguntou, que meu nome foi sugerido, na mesma hora aceitei o desafio. Estamos vivendo um divisor de águas: ou a gente recompõe o caminho democrático – na minha opinião, de uma forma progressista, popular, com pautas avançadas, de reconstrução – ou a gente vai afundar em um rumo do qual eu custo a enxergar uma luz no fim do túnel. Esse divisor de águas se resolve este ano e não é possível ficar apegado a questões menores diante desse risco que o Brasil está correndo, de mergulhar profundamente no obscurantismo, na desesperança, no desmonte do Estado.
Quando Bolsonaro ganhou em 2018, falaram “calma, ele não vai conseguir desmontar muita coisa, porque as instituições não vão deixar”. Pois são as próprias instituições o que ele quer destruir, todas elas.
Euler de França Belém – E só não destruiu mais porque o Supremo está resistindo, ao contrário do Congresso.
É verdade, o Congresso foi cooptado. É uma situação muito difícil, que ameaça até a sobrevivência da imprensa, a liberdade de expressão, os espaços de organização popular. Mas uma situação que me preocupa, em particular, é a do meio ambiente. Fico muita horrorizada com o desmonte da Amazônia, com a fiscalização ambiental totalmente desmontada. Nesse sentido, neste momento que é decisivo para o Brasil, quero colaborar o máximo que for possível e me apresento então para a batalha.
“O melhor antídoto para qualquer golpe é a vitória de Lula no 1º turno”
Euler de França Belém – Qual será o foco de seu eventual mandato como senadora?
Vamos elaborar um plano completo de trabalho, mas creio que aquela questão dos três Ts de que já falei – terra, trabalho e teto. Vou estar no Senado também para aprofundar os avanços necessários para o governo Lula. Porque, como eu disse antes, não basta ganhar: depois de vencer, há muito a fazer. Se, na época da ditadura, houve um entulho autoritário a remover, agora teremos de recuperar o que foi desmontado. Temos ainda o ódio que foi semeado na sociedade, essa visão que questiona a ciência, que nos agride tanto partindo da violência, e não do diálogo. A ideia de que o brasileiro é um povo generoso e cordial eu ainda tenho, mas evidenciou-se neste período também nossa sombra. O governo Lula terá o trabalho de reconstrução de programas, de políticas públicas. Foi um desmonte profundo, não se salvou nem o Conselho de Segurança Alimentar, voltamos ao Mapa da Fome. Vamos ter de recuperar tudo isso, em uma ampla aliança com todos os democratas, sem espaço para sectarismo. Mais do que tudo isso, teremos de cuidar da alma do povo brasileiro, que não pode ficar sequestrada por essa energia do mal.
Marcos Aurélio Silva – A sra. acredita que, diante do atual cenário, há espaço para uma ruptura institucional, um golpe?
Eles podem tentar, mas ainda quero crer que não vão dar conta. É claro que podemos esperar qualquer coisa de um presidente que, quando deputado, saudou o torturador Brilhante Ustra ao votar pelo impeachment de Dilma. Aquilo foi inacreditável, mas também foi uma demonstração clara de que uma parte da turma da caserna que nunca desistiu de seus intentos golpistas. O melhor antídoto para qualquer golpe é a vitória de Lula no primeiro turno. Isso seria muito importante para pacificar a sociedade.